terça-feira, 16 de dezembro de 2014

A verdade sobre a tortura importa

A Presidente Dilma Roussef chorou, no dia 10 de Dezembro, quando recebeu o relatório da Comissão de Verdade sobre tortura, assassinatos e outras violações dos direitos humanos cometidas pela ditadura militar no Brasil entre 1964 e 1985. A Presidente fora uma das vítimas da tortura - mais de 30 anos depois, o seu sofrimento e os nomes dos seus carrascos vieram à luz do dia. Expor a verdade importa, às vítimas e a uma sociedade civilizada.
Importa às vítimas da ditadura em Portugal - como a minha colega de Faculdade, hoje Procuradora da República Aurora Rodrigues, torturada aos 21 anos de idade, pela PIDE em Caxias, em 1973. Elas esperam, há 40 anos, por um relatório para memória da Verdade, que assim, ao menos, faça alguma justiça.
É alguma justiça o que se está a procurar fazer o Congresso americano, com o relatório que o Senado publicou na semana passada sobre tortura, desaparecimentos forçados, detenção ilegal, assassínios e outros crimes e violações dos direitos humanos levados a cabo pela CIA, no programa chamado de "rendições extraordinárias" que foi autorizado pelo Presidente George W. Bush, a pretexto de combater o terrorismo depois do ataque de 11 de setembro de 2001.
O relatório do Senado americano confirma tudo aquilo que o Parlamento Europeu e o Conselho da Europa já haviam exposto em 2007 sobre os chamados "voos da CIA" e acrescenta novos detalhes acabrunhantes, quer sobre tratamentos cruéis e degradantes impostos aos detidos, quer sobre a rede de "prisões secretas" que complementava a prisão de Guantanamo para deslocalizar e subcontratar a tortura a esbirros de Assad, Khadhafy ou Moubarak, quer sobre a extensão da mentira e omissão a que se entregou a CIA para enganar o Congresso e a opinião pública americana.
Quem pode ter sido também ocasionalmente enganado, mas sabia e era conivente com o essencial da operação da CIA foram vários governos europeus - incluindo os lusos, chefiados por Durão Barroso, Santana Lopes e José Sócrates. O relatório do Senado bloqueia os nomes de 54 países colaborantes, dos quais 25 europeus, para não irritar aliados. Mas é uma questão de tempo que se identifiquem todos os países cúmplices, sobrepondo o relato do Senado aos dados recolhidos pelo Parlamento Europeu. E alguns dos cúmplices não se limitaram a autorizar voos e sobrevoos de aviões fretados pela CIA que transportavam os prisioneiros - o Senado confirma que houve prisões secretas na Europa. Polónia, Lituânia e Roménia já são hoje forçadas a admitir aquilo que negaram junto do Parlamento Europeu.
Qual o papel que afinal desempenhou Portugal neste programa de tortura da CIA é o que ainda não sabemos ao certo. Foram as autoridades portuguesas, tolinhas, enganadas pelos EUA, ou foram cúmplices conscientes e participantes? Voos, sobrevoos e escalas dos aviões militares e civis ao serviço da CIA transportando detidos em trânsito entre as prisões secretas e Guantanamo estão documentados por mais de uma centena, entre 2002 e 2007. Se as escalas implicaram detenção e tortura em solo nacional, por exemplo nas Lajes, isso está ainda por apurar.  O Governo de José Sócrates, pela mão do seu Ministro Luis Amado, fez tudo o que podia para obstruir o conhecimento da verdade, incluindo impedir um inquérito parlamentar e sonegar ao Parlamento Europeu e à Assembleia da República listas de voos autorizados, de e para Guantanamo, que eu consegui obter e divulguei. E o Procurador Geral da República Pinto Monteiro fez o lhe pediam para não prejudicar hipóteses de Durão Barroso ser reconduzido na Comissão Europeia - nas vésperas, mandou arquivar o processo de investigação que já era substancial e resultava de queixa minha e de um jornalista.
Confesso que me pareceu desfaçatez cínica, no ano passado, ver o ex-Primeiro Ministro José Sócrates dar à estampa a sua tese filosófica justamente sobre tortura - nada mais contraditório com a actuação do seu governo, obstruindo a investigação dos chamados "voos da CIA". Preferi pensar que a escolha do tema tivesse a ver, justamente, com um exercício de arrependimento, de rebate, de reparação pelo mal que o seu governo andara, nesta matéria.
Porque a tortura e o encobrimento da tortura não se podem justificar politica, legal, ou moralmente, tal como não se pode admitir o comércio de escravos lá por ser rentável comercialmente, nem defender o genocídio como meio de combater a sobrepopulação no mundo.
Apurar a verdade sobre o papel de Portugal nos voos da tortura da CIA continua a importar e o PS, para se limpar do errado que andou, bem pode agora, sob a direcção de António Costa, aproveitar o relatório do Senado americano para propor, finalmente, um inquérito parlamentar.
Apurar a verdade importa, porque uma sociedade que não se importa se os seus governantes, funcionários ou agentes colaboram num programa de tortura violando a Constituição e o Direito Internacional, então não se pode admirar por estar condenada a ver-se corrompida e violentada.

(Transcrição da minha crónica de hoje no Conselho Superior, ANTENA 1)