quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Ubiquidade constitucional


1. Infelizmente, entre nós existe um entendimento generalizado de que tudo tem de ter uma solução na Constituição, pelo que o debate político redunda quase sempre numa esgrima de argumentos constitucionais, em vez de uma troca de argumentos políticos.
Tal é o que sucede agora com a questão da morte assistida, vulgo eutanásia, que acaba capturada por essa "ubiquidade constitucional". Enquanto os apoiantes da despenalização defendem que se trata de uma questão de direitos humanos e de liberdade e dignidade pessoal, sendo por isso inconstitucional a atual criminalização, os seus opositores acham que a eutanásia constitui uma violação do direito à vida, sendo por isso inconstitucional despenalizá-la.
E se a Constituição, corretamente interpretada, não fornecesse nenhuma solução para a eutanásia e deixasse essa questão (tal como o aborto ou a casamento de pessoas do mesmo sexo) ao bom e prudente critério do legislador democrático (ou dos próprios cidadãos em referendo, se tal for opção) após adequado e informado debate público?

2. Ao contrário do referido "totalitarismo constitucional" vulgar, a Constituição não está em toda a parte, nem tem solução para tudo, muito menos pretende cancelar a essencial liberdade de decisão do legislador democrático. A história constitucional mostra que as constituições que muito pretendem abarcar acabam por pouco alcançar.
A primeira regra de interpretação da Constituição numa democracia liberal é a de que a limitação do legislador democrático é a exceção, sendo a regra a liberdade de opção política. É politicamente livre tudo o que a Constituição não proíba ou imponha.
Por isso, antes de serem eventualmente conformes ou desconformes à Constituição, as propostas políticas, como a da despenalização da eutanásia, podem ser boas ou más soluções, de acordo com a perspetiva moral e política de cada um, e é por esses critérios antes de mais que devem ser debatidas e decididas. As boas soluções políticas não precisam de ter bênção constitucional e as más não precisam de ser inconstitucionais.