sexta-feira, 4 de maio de 2018

Rutura

A saída de José Sócrates do PS, de que foi secretário-geral - hoje anunciada num artigo no JN -, era expectável a partir do momento em que o PS decidiu abandonar o "pacto de silêncio" interno sobre as gravíssimas acusações penais e políticas que impendem sobre ele. E é evidente que a sua acertada decisão põe fim a um constrangimento que se vinha tornando altamente nocivo para o partido.
Sócrates não pode queixar-se de "condenação antecipada sem julgamento", visto que o mal-estar do PS (e não só) é independente da condenação, ou não, em sede criminal. Sem necessidade de enunciar todos os factos incontroversos que são política e moralmente comprometedores (como, por exemplo, a publicação de um livro sem mencionar publicamente a colaboração recebida de terceiros), a verdade é que, mesmo na narrativa do antigo primeiro-ministro sobre os generosos e continuados "empréstimos" do amigo empresário - que sempre escondeu -, ela mesma mostra que ele levou uma vida claramente acima das suas possibilidades, a expensas alheias, ainda enquanto primeiro-ministro, e depois de deixar de o ser, o que se não coaduna com o contenção e a discrição (para não falar da não dependência económica de terceiros) que se exigem a um líder e a um primeiro-ministro socialista, ainda menos quando pautou a sua governação por uma exigência de rigor orçamental e, depois da crise, de austeridade orçamental. O rigor financeiro começa nas contas pessoais.
Para além do juízo criminal, que compete exclusivamente aos tribunais, há o juízo político, que cabe à coletividade política. Para além da lei e da sanção pela sua violação, há a "ética republicana" no exercício de cargos políticos e a censura pelo seu incumprimento. Nesses dois foros, todos os cidadãos são juízes.

Adenda
Além de ficar grato pelo autoafastamento do seu ex-líder, libertando-o do constrangimento criado, o PS ganha mais legitimidade e mais autoridade para denunciar publicamente os graves atropelos da Constituição e da lei no processo penal contra ele e para defender a sua ação à frente de um dos governos mais clarividentes e mais reformistas que tivemos (e que integrou vários dos ministros do atual Governo), até ser atropelado pela crise financeira de 2008 e afastado pela aliança entre a direita e a extrema-esquerda parlamentar em 2011.

Adenda 2
A defesa que Sócrates faz de Manuel Pinho revela lealdade e coerência, mas tem um problema: é que, ao contrário dele mesmo, que nega e refuta desde o início, sem desfalecimento, as acusações de que é alvo, Pinho não se deu ao cuidado de desmentir a grave acusação que veio a público. Sob o ponto de vista penal, é obviamente ao Ministério Público que cumpre provar a acusação, mas politicamente o silêncio do ex-ministro é insustentável, até porque, a ter existido, a sua conduta não tem somente eventual relevância penal, constituindo, antes de mais, uma gravíssima violação da ética política.