sexta-feira, 1 de junho de 2018

Imprevisível Itália

Tenho sérias dúvidas não apenas sobre a prudência política mas também sobre a conformidade constitucional da decisão do Presidente da República italiana de rejeitar o ministro das finanças e da economia do Governo inicialmente proposto pela coligação Liga + 5 Estrelas, que levou à renúncia do indigitado primeiro-ministro e à nomeação de um "governo técnico" pelo Presidente, que seria obviamente rejeitado pelo Parlamento, onde aqueles dois partidos dispõem de maioria absoluta.
A Itália é uma democracia parlamentar típica, em que a legitimidade e a sustentação dos governos dependem exclusivamente do Parlamento e em que o Presidente não é diretamente eleito e não tem nenhuma função constitucional autónoma. Num tal sistema de governo, os partidos que têm maioria parlamentar têm o direito de governar, não competindo ao chefe o Estado julgar o seu mérito ou sobrepor a sua posição à vontade dessa maioria, por mais bem-intencionada que seja a sua intervenção.
A Itália não é seguramente um sistema "semipresidencialista", em que a nomeação e a subsistência dos governos dependam da confiança presidencial.Quando muito, em caso de fundamental discordância com o Governo proposto, o Presidente poderia dissolver o Parlamento e convocar novas eleições, poder de que dispõe segundo a Constituição italiana. Coisa bem diferente é a nomeação de um governo de "iniciativa presidencial", em confronto com a maioria parlamentar, como o Presidente ensaiou.

Adenda
Afinal, a exótica fórmula de "governo técnico" de iniciativa presidencial não avançou e os dois partidos que ganharam as eleições apresentaram uma nova solução de governo, com a polémico ministro eurófobo na pasta... dos Assuntos Europeus! Decididamente, só na Itália!

Adenda 2
Um leitor mostra-se surpreendido por eu criticar o Presidente Matarela por ter tentado impedir a formação do Governo de coligação entre a extrema-direita da Liga e o populismo do 5 Estrelas. Mas é fácil explicar: (i) numa democracia parlamentar, quem tem maioria tem o direito de formar governo; (ii) a recusa do Governo levaria a novas eleições imediatas, que só reforçariam os dois partidos; (iii) é melhor deixá-los governar e falhar (porque obviamente vão falhar!) do que dar-lhes capital de queixa contra a democracia representativa. Neste ponto estou de acordo com este editorial do New York Times.