domingo, 26 de abril de 2020

Pandemia (14): Substituir o estado de emergência pelo "estado de calamidade"?

1. O Governo deixou cair na imprensa a hipótese de, após terminado o estado de emergência em vigor, decretar o "estado de calamidade", previsto na Lei de Proteção Civil. A hipótese está a gerar dúvidas de constitucionalidade, e não sem fundamento.
A meu ver, as coordenadas jurídicas da questão são as seguintes: o estado de calamidade, que é decretado pelo Governo, só pode ser instituído em situações suscetíveis de mobilizar a proteção civil - o que levanta desde logo a questão de saber se a pandemia cai tipicamente nessas situações - e não pode permitir fazer aquilo que somente o estado de emergência consente.

2. Admitindo, com reservas, que a primeira condição se verifica, o estado de calamidade não pode, porém, afetar direitos que não podem ser restringidos em situações de normalidade constitucional, como é o caso, por exemplo, da proibição de internamento compulsivo (salvo por anomalia psíquica), da inviolabilidade da habitação, da liberdade de culto ou do direito à greve.
Estes direitos só podem ser afetados por via de declaração do estado de exceção constitucional (estado de sítio ou estado de emergência), decretado pelo PR com aprovação da AR, nos termos constitucionais.

3. Mesmo em relação aos direitos fundamentais que podem ser restringidos em situações de normalidade constitucional, como, por exemplo, a liberdade de circulação, o estado de calamidade não pode restringi-los senão nos termos do art. 18º da CRP, nomeadamente com estrito respeito pelo princípio da necessidade e da proporcionalidade, assim como de intocabilidade do "núcleo essencial" de cada direito, o que não sucederia, por exemplo, com uma medida de confinamento doméstico obrigatório. De novo, só a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência permite a suspensão dos exercício de direitos fundamentais.
A distinção-chave aqui é justamente entre restrição do exercício e suspensão do exercício. O estado de calamidade administrativo não pode fazer o que só o estado de exceção constitucional, por decreto presidencial, pode fazer, ou seja, suspender direitos.
A distinção pode não ser ser fácil de fazer em situações limite. Mas, nesse caso, o mais aconselhável é renunciar a tais restrições ou então repetir o estado de emergência.

Adenda
António Costa declarou que tem de ser assegurado o «afastamento entre as pessoas por causa da pandemia, "diga a Constituição o que diga"». Ora, por um lado, não conheço nenhuma opinião fundamentada segundo a qual a norma de distanciamento social poderia ser contrária à Constituição; por outro lado, num Estado de direito constitucional, o que a Constituição diz importa -, e muito.

Adenda 2
Há quem defenda que o internamento compulsivo de infetados, mesmo fora do estado de emergência, tem cobertura constitucional no direito à proteção da saúde garantido no art. 64º da Constituição. Mas, para além de não haver nenhuma referência, sequer longínqua, nesse longo e pormenorizado preceito constitucional, a medidas de tal gravidade (que aniquilam um direito essencial como o direito à liberdade), considero que o art. 27º, sobre o direito à liberdade, enuncia expressamente os casos em que é permitida a privação da liberdade pessoal, incluindo o internamento por causa de anomalia psíquica (apesar de este também se poder "deduzir" do direito à segurança garantido no mesmos preceito). A privação da liberdade pessoal, que a Constituição cuidou de regular exaustivamente, não pode ser decorrer de fundamentos tão indiretos. Por essa ordem de ideias, o art. 64º poderia justificar todas as restrições de direitos até agora adotadas, sem necessidade de nenhum estado de emergência...

Adenda 3
Dando conta da minha opinião sobre este assunto, o Jornal Económico escreve o seguinte: «Para Vital Moreira há uma série de direitos como a proibição de internamento compulsivo, o direito à greve e a liberdade de circulação que só podem ser afetados por via de declaração do estado de exceção constitucional (estado de sítio ou estado de emergência), decretado pelo PR com aprovação da AR, nos termos constitucionais.» Ora, eu nunca disse que a liberdade de circulação não pode ser restringida fora do estado de emergência. Disse exatamente o contrário! Trata-se de misturar alhos com bugalhos.