terça-feira, 16 de junho de 2020

Praça da República (32): Invocar a Constituição em vão

1. Tal como sucedeu no passado quanto à despenalização do aborto e ao reconhecimento legal de casamentos de pessoas do mesmo sexo, entendo perfeitamente as objeções dos que se opõem à despenalização da eutanásia (ou suicídio medicamente assistido) por razões religiosas ou morais.
Mas, tal como os casos precedentes, não procede invocar a Constituição em apoio dessa oposição, como é o caso deste manifesto de alguns professores de Direito. Tal como as duas referidas questões, também esta deve manter-se no terreno do debate religioso, moral... e político, deixando a decisão aos representantes legítimos da coletividade. Num Estado laico e numa sociedade livre e plural, a Constituição não é o veículo mais apropriado para decidir as grandes aporias morais e religiosas.

2. O direito à vida, tal como todos os direitos individuais, visa antes de mais proteger a vida de cada um contra terceiros (o Estado ou outras pessoas), não propriamente contra o seu próprio titular. Já passou o tempo em que era crime a tentativa de suicídio.
O mesmo sucede com o direito à integridade pessoal ou o direito à liberdade pessoal. Ambos defendem as pessoas contra lesão desses direitos por terceiros, mas não tornam penalmente punível que alguém inflija a si mesmos lesões corporais ou decida estabelecer-se em reclusão absoluta, deitanto a chave fora.
Não se deve subverter a lógica defensiva contra terceiros dos direitos de personalidade e de liberdade, transformado-os em obrigações. Direito à vida significa direito a viver mas não um obrigação de viver em qualquer circunstâncias.

3. Tampouco a invocação da dignidade humana serve para fundamentar a atual criminalização da eutanásia. Pelo contrário, o que a meu ver é manifestamente ofensivo da dignidade humana é forçar a manter-se vivo, contra expressa e reiterada vontade sua, quem, sem nenhuma hipótese de sobrevivência, padece de sofrimento intolerável e deixou de ter qualquer sentido para a vida.
Mais apropriado nesta questão é defender, em sentido contrário, a irredutível liberdade e autonomia pessoal na escolha de uma morte digna.

4. Já no corrente ano, o Tribunal Constitucional alemão, que não pode ser acusado de desvalorizar o direito à vida nem a dignidade humana, considerou inconstitucional a criminalização do suicídio assistido, justamente em nome da liberdade e da autonomia pessoal na opção por uma morte digna, em casos devidamente caracterizados quanto aos pressupostos de facto e quando a liberdade e genuinidade da decisão dos interessados.
Sim, do que se trata é de um conflito entre a liberdade e autonomia pessoal de quem se encontra nessas situações dramáticas e a posição dos que entendem que eles devem beber até ao fim o cálice da dor e do sofrimento.

Adenda
De um leitor: «Como católico que sou, penso que em nenhuma circunstância devo privar-me da vida nem pedir assistência para o fazer. Mas entendo que não tenho o direito de julgar quem, em desespero de causa e na impossibilidade de pôr fim à vida, peça ajuda a outrem, muito menos tenho o direito de mandar para a prisão quem ajude a realizar essa última vontade».

Adenda 2
Outro leitor invoca a atual discriminação económico-social entre quem tem meios e pode obter tranquilamente a eutanásia numa clínica suíça (ou numa discreta clínica doméstica) e todos os demais, que ficam condenados e penar uma vida de dependência, dor e sofrimento, que resolutamente rejeitam.

Adenda 3
Um leitor argumenta que uma coisa é o direito ao suicídio propriamente dito e outra coisa é ser privado da vida por outrem, mesmo que a pedido, "o que equivale a homicídio". Discordo em absoluto. Para além de que a ajuda ao suicídio não é criminalmente equiparada a homicídio - nem poderia ser -, a questão específica da eutanásia refere-se a pessoas que não podem suicidar-se por si mesmas, precisando da ajuda de outrem. Ora, seria uma intolerável discriminação impedi-las de realizar a sua vontade.