quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Concordo (19): O Presidente e o analista político

1. Não acompanho as críticas de alguns comentadores (por exemplo, aqui e aqui) quanto à decisão presidencial de dissolução parlamentar e convocação de eleições antecipadas. No seu lugar, eu teria decidido do mesmo modo.

Primeiro, dados os termos bélicos da rejeição do orçamento na AR, não haveria a mínima hipótese de obter a aprovação de um segundo orçamento. Em segundo lugar, sem orçamento, o Governo não pode executar os investimentos do PRR (ao contrario que alguns defendem infundadamente), estando limitado ao plafond das despesas efetuadas sob o atual orçamento, com graves prejuízos para o País. Terceiro, e mais importante, o chumbo do orçamento socialista às mãos da extrema-esquerda parlamentar implica obviamente o fim da fórmula governativa vigente nesta legislatura (governo minoritário do PS sustentado, em última instância, pela demais esquerda parlamentar), não havendo manifestamente nenhuma solução de governo alternativa no atual quadro parlamentar.

Embora o Governo não se demita (nem tenha de fazê-lo), ficamos, portanto, num situação de crise governativa. Dados os prejuízos desta situação para o País, quanto mais depressa houver novas eleições, novo governo e novo orçamento, melhor.

2. Cumpre reconhecer, aliás, que, tendo advertido desde cedo que, no seu entendimento, uma hipotética rejeição do orçamento implicava a dissolução paramentar, o Presidente definiu claramente o quadro institucional para decisão dos partidos no Parlamento, nomeadamente dos que mais poderiam ser mais penalizados eleitoralmente, se rejeitassem o orçamento, justamente o BE e o PCP.

É óbvio, porém, que MRS não receava seriamente a rejeição do orçamento e contava que o seu pré-aviso de dissolução parlamentar inibisse o aventureirismo do PCP e do BE, para mais tendo em conta as importantes cedências governamentais. É manifesto que se enganou, não tendo previsto devidamente a que grau de irresponsabilidade e de masoquismo político pode descer a extrema-esquerda. 

Se o Presidente andou bem institucionalmente, falhou rotundamente o analista político que com ele coabita em Belém.

Adenda
Também não subscrevo o comentário de um leitor, que acusa MRS de ter "explorado uma oportunidade para afastar um Governo de esquerda e dar chances à direita de regresso ao Governo". Parece-me indiscutível que (i) o PR fez tudo (talvez demais) para "forçar" a aprovação do orçamento e que (ii) a direita, liderada pelo PSD, não dá ainda sinais de poder oferecer a "alternativa forte" que MRS vem defendendo e que claramente antecipava somente para 2023. Infelizmente, estas são umas eleições que ninguém desejava e cujas consequências ninguém pode antecipar.

Adenda 2 
Outro leitor objeta que há uma alternativa de governo no atual quadro parlamentar, que seria uma coligação PS-PSD. Mas trata-se obviamente de uma hipótese politicamente inviável e, mesmo, ilegítima, pois o PS travou a disputa eleitoral de 2019, cuja vitória lhe deu o Governo, na base da rejeição absoluta de qualquer solução de "bloco central". Não havendo uma situação de emergência nacional que justificasse a quebra desse compromisso, seria o total descrédito da política e dos partidos em causa. Não é por acaso que ninguém aventou essa hipótese...

Adenda 3
Um leitor pergunta porque é que o PR não deixa o Governo do PS a governar em duodécimos, prescindindo de orçamento para 2022. Embora tal hipótese tenha sido admitida por alguns comentadores pouco informados, ela não tem base constitucional nem teria legitimidade democrática.  A extensão do orçamento de um ano ao ano seguinte em duodécimos é uma solução de recurso, em caso de atraso do orçamento ou da sua rejeição, tendo neste caso o Governo obrigação de apresentar novo orçamento ato contínuo, salvo demissão ou dissolução parlamentar, em que essa obrigação passa para o Governo seguinte. Ora, como se mostrou acima, a hipótese de aprovação de novo orçamento no atual quadro parlamentar está fora de causa.