terça-feira, 5 de outubro de 2021

Praça da República (56): Reordenar as ordens profissionais

1. Existe finalmente uma iniciativa legislativa destinada a reordenar o regime jurídico das ordens profissionais, cujos principais objetivos são quatro: 

- combater a atávica tendência das ordens, tanto para limitar o acesso à profissão (malthusianismo profissional), sobretudo através de exames e estágios à entrada na profissão, como para expandir a esfera das atividades profissionais reservadas aos seus membros (monopólio profissional)

- admitir a prestação integrada de diferentes serviços profissionais (por exemplo, advocacia e consultoria financeira, economia e engenharia), através de escritórios multidisciplinares;

autonomizar e reforçar a função pública de regulação, supervisão e disciplina das ordens, através de uma reformulação da composição e das competências do conselho de supervisão, que o regime vigente já prevê; 

- reforçar os direitos dos destinatários dos serviços profissionais contra abusos ou más práticas profissionais, através da obrigatoriedade do provedor do utente.

É fácil ver que esta iniciativa legislativa ataca os principais pontos críticos da atual regulação jurídica das ordens e das más práticas de quase todas elas, colocando-as ao serviços do interesse público que as justifica. 

É de saudar e de sufragar, portanto, esperando a sua aprovação parlamentar.

2. Todavia, com o tempo, tenho-me tornado cada vez mais crítico da solução tradicional das ordens profissionais, propendendo cada vez mais para suprimir as suas funções corporativas de representação e defesa de interesse profissionais, reduzindo-as a entidades de regulação e disciplina da profissão, em substituição do Estado. 

Entendo que que num Estado de direito liberal, baseado na separação entre o Estado e a sociedade civil, não compete a entidades públicas, como as ordens são, a tarefa de representação e defesa oficial e unicitária de interesse profissionais, a qual deve caber exclusivamente a sindicatos e associações profissionais de livre iniciativa dos interessados.

Não existe nenhuma razão para conferir a certas profissões o privilégio de ter a representação de defesa dos seus interesses profissionais a cargo de entidades públicas, de inscrição e quotização obrigatórias e de representação unicitária, quando as outras profissões têm de recorrer a sindicatos e associações voluntárias, desprovidas de estatuto e de poderes públicos.

Sem enveredar por essa revolução, é evidente que esta iniciativa legislativa, pelo menos, autonomiza e reforça a função de supervisão e de disciplina profissional,  atenuando o risco da sua captura pela função corporativa paralela das ordens. Um enorme progresso!

Adenda
Concordando com a reforma proposta, um leitor comenta que "o que está em causa é assegurar a confiança dos consumidores dos serviços profissionais (advogados, médicos, etc.) quanto ao cumprimento das obrigações deontológicas e das boas práticas profissionais, pelo que é essencial acreditar que as ordens supervisionam efetivamente os seus membros e os punem devidamente quando incorrerem em qualquer violação daquelas regras".
Nem mais! Trata-se de serviços profissionais em geral caracterizados pela "assimetria de informação" entre quem os presta e quem os recebe, pelo que tem de haver confiança dos segundos em que as ordens se encarregam de impedir abusos e de punir os que ocorram.

Adenda 2
Uma das linhas de ataque das ordens ao projeto de reforma consiste em acusá-lo de «retirar às Ordens a competência para a defesa dos interesses gerais dos beneficiários dos serviços». Trata-se, porém, de uma acusação de todo infundada, pela simples razão de que as ordens nunca tiverem tal poder. Nada na lei confere, por exemplo à Ordem dos Médicos, o poder de efetuar inspeções aos serviços de saúde públicos ou privados, como por vezes tem sucedido, à margem da lei. As ordens têm, sim, o poder (e o dever) de defender os direitos dos destinários de serviços profissionais contra eventuais abusos dos próprios profissionais. Acontece que, perante a passividade do Governo e do Ministério Público, algumas ordens têm preferido usurpar poderes que não têm, em vez de exercerem os poderes que legalmente têm a abrigação de exercer e que justificam a suaa criação pelo Estado. 

Adenda 3 

Outro argumento na "cruzada" das ordens contra a projetada reforma consiste em acusá-la de instituir a "ingerência" do Governo nas ordens, sacrificando a sua independência e a sua autonomia. Também aqui, sem razão. De facto, o projeto não agrava em nada a tutela governamental sobre a ordens nem prevê qualquer outro tipo de ingerência governamental suscetível de pôr em risco o autogoverno e a autonomia funcional das mesmas. Trata-se de lançar areia para os olhos da opinião pública. Mas não deixa de ser curioso que quem denuncia infundadamente um alegado propósito de ingerência governamental nas ordens seja quem pretenda manter uma ilegítima ingerência destas na esfera administrativa do Governo, a pretexto da defesa dos direitos dos cidadãos. Trata-se de "fazer o mal e a caramunha".