segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Sim, mas (5): Tiro pela culatra

1. Parece que, no âmbito das medidas orçamentais para conquistar o voto do PCP, o Governo vai propor o englobamento dos rendimentos patrimoniais, ou pelo menos de alguns deles (nomeadamente os dividendos), para efeitos de cálculo do IRS, deixando de estar sujeitos à "taxa liberatória" de 28% (aliás, comparativamente elevada).

A ideia é atraente sob o ponto de vista dos princípios da equidade fiscal. Mas é de questionar a sua eficácia e os seus "efeitos colaterais". 

2. Como mostra esta reflexão de um especialista e antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais no anterior Governo de António Costa, a tributação desses rendimentos pode ter um efeito contrário, pela migração desses rendimentos para a tributação em IRC ou pela sua deslocação para o exterior, além do aumento da evasão fiscal (no caso do arrendamento), levando assim à perda de receita no IRS, e não ao seu aumento.

Ao que se deve acrescentar o provável efeito negativo sobre o mercado de arrendamento e sobre o investimento na bolsa de valores de Lisboa, um e outro a precisarem de estímulo, mais do que de novos encargos...

3. Por último, a ideia de englobar somente alguma espécie de rendimentos patrimoniais, estabelecendo uma discriminação quanto aos demais, leva seguramente a uma distorção na alocação da poupança nacional (por exemplo, entre imobiliário, ações e obrigações), cuja justificação deve ser politicamente explicada e assumida.

[Declaração de interesses: tenho alguns rendimentos provenientes de rendas e de  dividendos, todos devidamente declarados.]

Adenda
Um leitor comenta, com toda a pertinência, que é vergonhosa a passividade do Governo e da Autoridade Tributária perante a grande evasão do IRS quanto às rendas, distorcendo a informação sobre o mercado de arrendamento e penalizando os contribuintes que cumprem as suas obrigações fiscais. Se não houvesse tanta evasão, poderia haver um alívio fiscal para os cumpridores, sem perda de receita.

Adenda 2
Um leitor contesta que a "taxa liberatória" sobre os dividendos entre nós seja "relativamente elevada", argumentado que vários países europeus têm taxas de 35% e 40%. Mas não tem razão. Como se pode ver aqui < https://taxfoundation.org/dividend-tax-rates-europe-2020/ >, a taxa média de imposto sobre dividendos nos países da OCDE é de 23.5%, bem inferior aos nossos 28%. Nos países do sul da Europa, a taxa é de 24% na Espanha, 26% na Itália e 10% na Grécia, sempre inferior à taxa portuguesa.