quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Sim, mas (7): O mau exemplo da ANACOM

1. António Costa tem toda a razão quando denuncia publicamente o escandaloso arrastamento do concurso sobre as redes de telecomunicações de 5G,  mal lançado e mal gerido pela ANACOM, que ameaça deixar o país como lanterna vermelha na implementação desta revolução tecnológica na UE, em prejuízo dos operadores e utentes e da economia em geral

Mas o PM já não tem razão, quando invoca este caso para questionar a própria noção de regulação independente, que se tornou dominante na Europa, importada dos Estados Unidos, desde os anos 90 do século passado, como parte integrante dos conceitos de "economia de mercado regulada" e de "Estado regulador", em substituição do precedente "Estado intervencionista".

Um mau regulador não basta para matar a regulação independente.

2. Antes de mais, as autoridades reguladoras independentes são autoridades puramente administrativas, pelo que só têm os poderes que lhe são confiados por lei (ou decreto-lei) e têm de respeitar as opções de política regulatória setorial definidas pelo Governo. 

Ora, no caso concreto, começa por ser questionável se, à face da lei das telecomunicações de 2004, o concurso das redes 5G era da competência da ANACOM ou do Governo, sendo certo que na sua Resolução de 2020 sobre o assunto, o atual Governo remeteu essa competência para a autoridade reguladora, sem questionar.

Acresce que o Governo poderia ter acautelado a questão da celeridade do concurso, na tal Resolução que precedeu o Regulamento da ANACOM, o que não fez. E também não se conhece nenhuma objeção ou advertência levantada pelo Ministério competente aquando da consulta pública do referido Regulamento, o que é tanto mais estranho, quanto é certo que este desrespeitava em vários aspetos a referida Resolução governamental, por exemplo quanto ao calendário e à cobertura da implantação das redes de 5G e quanto à não discriminação dos concorrentes, o que, aliás, tem gerado a contestação judicial do concurso.

Por conseguinte, há em todo este processo uma manifesta incúria governamental na definição e imposição da política regulatória para o setor, deixando "à solta" um regulador incompetente.

3. Há três boas razões para desaconselhar a condenação sumária das autoridades reguladoras independentes (ARI) por parte de um Governo do PS. 

Em primeiro lugar, os governos socialistas têm sido consistentemente responsáveis por essa "revolução regulatória", desde os governos de António Guterres (1995 e 1999), tendo a ANACOM sido criada nessa época como autoridade reguladora independente das telecomunicações (e dos serviços postais), então em vias de liberalização e de privatização.

Em segundo lugar, as autoridades reguladoras independentes fazem parte integrante dos instrumentário da UE para integrar as antigas utilities públicas no "mercado interno" da União, submetendo-as à liberdade de entrada e à concorrência, mas sujeitas à regulação pública necessária para corrigir as "falhas de mercado" e para salvaguardar a sua natureza como "serviços de interesse económico geral" (SIEG).

Por último, este ataque do Governo às ARI corre o risco de dar mais um argumento à direita, no sentido de que os governos socialistas convivem mal com instâncias do poder público que fogem ao controlo governamental, mesmo quando se trata de autoridades estritamente administrativas, que, por definição, só podem atuar no quadro da lei e da política regulatória definida pelos governos.

Cabe, alíás, dizer que este mau exemplo da ANACOM não constitui regra na conduta das ARI entre nós, pelo que não deve servir de pretexto para condenação geral destas. 

Adenda 
Um leitor pergunta se o Governo pode destituir a direção da ANACOM. Nos termos da lei, só pode haver destituição em caso de «falta grave, [de] responsabilidade individual ou coletiva, apurada em inquérito devidamente instruído, por entidade independente do Governo, e precedendo parecer do conselho consultivo, quando exista, da entidade reguladora em causa, e da audição da comissão parlamentar competente». Ora, embora o desrespeito da RCM de 2020 possa ser considerada como motivo justificado, é óbvio que se trata de um processo complexo, litigioso e moroso

Adenda (2)
É certo que, como recorda um leitor, o PS votou contra a lei-quadro das entidades reguladoras de 2013, junto com os demais partidos da esquerda parlamentar. Mas depois não manteve nenhum discurso político ou doutrinário contra ela e não tomou nenhuma iniciativa para a revogar ou reformar, desde que é Governo (2015), havendo maioria parlamentar para o fazer.

Adenda (3)
Sobre o racional das ARI, a que tenho dedicado alguma investigação académica, remeto para um anterior texto AQUI no CN.