quinta-feira, 6 de abril de 2023

Revisão constitucional (4): Uma solução problemática

1. Parece que a proposta do PS de incluir na Constituição um direito à alimentação apresenta boas hipóteses de vir a ser aprovada. Embora defensor desde sempre da consagração constitucional do Estado social e dos direitos sociais - capítulo em que a CRP foi além de todas as constituições ocidentais -, não me parece, porém, uma boa solução acrescentar mais este direito em particular.

Em primeiro lugar, salvo o Brasil, desde 2010, não conheço nenhum outro precedente constitucional relevante. No plano do direito internacional dos direitos humanos, o art. 11º do Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas (PIDESC), de 1966, menciona-o, mas somente como uma das componentes do «direito a um nível de vida adequado», a par do vestuário e do alojamento, e não como um direito autónomo

2. Entre nós, tal como em vários outros países, está legalmente consagrado desde 1996 (I Governo Guterres) o direito a um rendimento mínimo, destinado a assegurar a todos um nível de vida decente - mais tarde renomeado como "Rendimento Social de Inserção" -, o qual inclui obviamente a cobertura das necessidades alimentares, entre outras. 

O que se justificaria, portanto, era constitucionalizar explicitamente esse direito geral, em vez de particularizar somente uma das suas manifestações.

3. A constitucionalização autónoma de um direito à alimentação, a assegurar pelo Estado, suscitaria não poucos problemas de construção jurídica e de implementação prática. Sendo um direito separado do direito ao rendimento mínimo, seriam, porém, os mesmos os seus beneficiários? Como deveria o Estado satisfazê-lo: em espécie, através de uma rede de cantinas públicas ou de cantinas sociais subsidiadas, ou por via financeira ("vales" alimentares ou um subsídio adicional para compras alimentares)?

Quando o Estado revela crescentes dificuldades em assegurar adequadamente alguns direitos sociais constitucionais originários, como o direito à saúde e o direito à habitação, cabe perguntar se se justifica abrir mais uma frente particular de fácil litigiosidade política e ideológica.