quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Alhos & bugalhos (4): Faz sentido a dissolução parlamentar?

1. Não dá para entender como é que dois politólogos encartados - por sinal, um deles ligado ao PSD - podem defender que a demissão do PM deve dar lugar a eleições antecipadas, por ser essa alegadamente «a tradição em casos como este». Tal não é simplesmente verdade.

Deixando de lado o despropósito de invocar o caso de Cavaco Silva em 1987 - pois não se demitiu, mas foi demitido por moção de censura da AR - ou da dissolução de 2021 - que não foi desencadeada por nenhuma demissão do PM -, os anteriores casos de demissão do PM por iniciativa própria foram os de Pinto Balsemão (1983), Guterres (2002), Durão Barroso (2004) e Sócrates (2011). Ora, salvo o caso de 2004, nos restantes a solução da crise decorrente da demissão do PM não pôde passar pela formação de novo Governo, ou porque a coligação governante não se entendeu sobre a nomeação de novo PM (1983), ou porque não havia condições para formar novo Governo dos mesmos partidos, por se tratar de governos minoritários (2002 e 2011). 

Por conseguinte, nesses casos não havia outra solução política que não a convocação de eleições, mediante dissolução parlamentar (com o que os próprios demissionários e os seus partidos concordaram, tanto em 2002 como em 2011)

2. O único caso de demissão do PM num quadro político semelhante ao atual é o de 2004, em que havia um Governo de coligação com maioria parlamentar, que defendeu a nomeação de novo Governo, solução que o PR de então (Sampaio) seguiu, respeitando a lógica da democracia parlamentar, até porque não tinha nenhum motivo suficientemente relevante para justificar a dissolução parlamentar. O facto de o Governo de Santana Lopes ter fracassado deve-se à sua própria incapacidade e ao descrédito em que se afundou, o que o PSD pagou pesadamente nas eleições seguintes. 

Se na atual crise política decorrente da demissão do PM o PR optar pela dissolução, recusando a nomeação de um novo Governo PS, que este reclama, invocando a sólida maioria parlamentar que obteve há menos de dois anos, não pode fazê-lo seguramente invocando uma suposta "tradição", que não existe, pelo contrário, dado que o único precedente semelhante apontaria em sentido contrário

3. Se optar pela interrupção da legislatura contra a maioria parlamentar existente, o PR fá-lo ao abrigo do poder discricionário de dissolução parlamentar que a Constituição lhe dá, bastando para isso ter um motivo suficientemente relevante, que é provavelmente o facto de, no entendimento presidencial, a investigação, por alegados ilícitos penais, do próprio PM e várias outras figuras eminentes da atual maioria poder afetar a capacidade e a própria legitimidade política da mesma.

Não sendo constitucionalmente ilícita a utilização de um dos mais severos instrumentos do "poder moderador" do PR neste caso, ela pode sem dúvida ser contestada politicamente, por nada a impor e ela importar custos sensíveis para o País (como argumentei AQUI). Nem tudo o que é constitucionalmente permitido é politicamente justificável, muito menos necessário.

[Alterada a rubrica e o 1º parágrafo]

Adenda
Comentário de um leitor: "O principal argumento contra a dissolução é que as novas eleições vão de certeza levar à substituição de um governo maioritário, capaz de fazer reformas e de contas certas, por um governo minoritário ou de coligação inconsistente, incapaz de uma coisa e de outra". Subscrevo obviamente este argumento, acrescentando a instabilidade governamental inerente a tais soluções governativas. Abdicar das vantagens de um Governo maioritário, a começar pela estabilidade política, é um luxo que o País não se devia permitir nesta altura.

Adenda 2
O PR nem sequer conseguiu convencer o seu órgão consultivo, o Conselho de Estado, sobre a bondade da dissolução, onde o resultado foi um empate. Como pensa convencer o País, sobretudo depois de ficarem à vista as suas nefastas consequências?