1. É inquietante a confusão que vai na cabeça de vários jornalistas e comentadores que imaginam que o saldo orçamental do ano passado, no valor extraordinário de mais de 3 000 milhões de euros, pode ser utilizado no pagamento de despesa pública no corrente ano orçamental, nomeadamente nas prometidas benesses aos professores, polícias, etc.
Trata-se simplesmente de ignorar que o art. 21º da Lei do Enquadramento Orçamental estipula claramente o destino do excedente orçamental geral - para amortização da dívida pública - e do excedente da conta da segurança social - para reforço do respetivo Fundo de Estabilização Financeira -, o que exclui obviamente o pagamento de despesa pública, como, aliás, foi anteriormente assinalado pelo presidente da UTAO.
Um pouco mais de zelo profissional não fazia mal a ninguém.
2. A despesa pública do corrente ano tem de ser coberta com receita cobrada neste ano. Por conseguinte, o novo Governo só pode contar com a previsível folga orçamental resultante de maior receita do que a prevista, cortesia de um crescimento económico e de um emprego de valor superior superior aos valores estimados no orçamento, o que o BP já prevê efetivamente.
Parece, porém seguro que, mesmo sem nova despesa, o excedente orçamental deste ano, embora podendo ser previsivelmente maior do que o previsto no orçamento ("somente" 0,2%), não iria atingir seguramente o valor extraordinário do excedente de 2023.
Adenda
A propósito, é de rejeitar de todo a qualificação do excedente orçamental
como «almofada salazarenta», como faz a comentadora Ana Gomes, não somente pela infelicíssima comparação histórica com a ditadura, mas sobretudo porque nega o evidente mérito da redução da dívida pública (ainda perto dos 100%, 40 pp acima do limite estipulado pela UE), com os inerentes ganhos colateriais (redução dos juros da dívida pública, deixando maior margem para outra despesa pública), bem como do reforço da sustentabilidade da segurança social e do sistema de pensões. De resto, como já escrevi, considero que
uma das grandes mais-valias dos governos de António Costa foi o abandono do tradicional laxismo orçamental e a conversão do PS à ideia de que «a disciplina orçamental é de esquerda», como sustento há muitos anos.
Adenda 2
Um leitor observa que, mesmo assim, o excedente orçamental provável para o corrente ano ainda vai representar muito dinheiro, que o novo Governo vai aproveitar para fazer o brilharete de distribuir pelos vários grupos profissionais, «o que o PS devia ter feito antes, para melhorar as suas hipóteses eleitorais». Concordo que vai ser muito dinheiro, mas se o novo Governo o gastar, aumentando a despesa pública corrente, deixa de ter excedente e de reduzir a dívida pública, este ano e provavelmente nos seguintes, como estava previsto. Quanto ao facto de o PS não ter feito isso no ano passado, reduzindo o excedente de 2023 (e eliminando o deste ano), é uma questão de opinião quanto à justeza dessas benesses - eu, por exemplo, não teria apoiado.