sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Contra a corrente (10): Contra o presidencialismo universitário

1. Decididamente, a proposta governamental de revisão do Regime Jurídico do Ensino Superior (RJIES) não é de mera revisão, mas sim uma demolição da lei de 2007, removendo as suas traves-mestras. Se é assim quando à subversão do sistema binário (como mostrei AQUI), também o é quanto ao sistema de governo das IES públicas, que é virado do avesso.

Com efeito, uma das principais inovações do regime vigente, partindo da conceção das IES como entidades de prestação de serviços, foi a adoção de um sistema de governo de tipo corporate governance, em que um "conselho de administração", composto por representantes dos "acionistas" de cada instituição (professores, investigadores e estudantes) e por um número limitado de elementos externos cooptados, recruta o chefe executivo da instituição, mediante concurso público internacional. Ora, este modelo de board + CEO, tributário da filosofia do new public management, é agora substituído pelo regresso a um antigo modelo "corporativista" de conselho + presidente eletivo da instituição, que não deixou boa recordação.

Trata-se de um monumental recuo, que altera completamente a filosofia do governo das IES.

2. Enquanto no modelo vigente o reitor é um gestor executivo, que implementa as deliberações do Conselho e que responde perante este, podendo ser demitido por ele (embora só por maioria de 4/5), o sistema proposto regressa ao modelo de eleição direta do reitor pelos diferentes corpos da comunidade académica, dos professores aos antigos estudantes, cada um deles com um peso diferenciado.

Embora a eleição incida sobre dois candidatos pré-selecionados pelo Conselho, a verdade é que a eleição direta do reitor vai redundar necessariamente num sistema de governo presidencialista, em que aquele, por passar a gozar de uma legitimidade política própria, vai reforçar o seu poder e deixa de ser responsável perante o Conselho, a pretexto da responsabilidade perante os seus eleitores, podendo gerar conflitos de orientações entre os dois órgaos eletivos, entre o poder deliberativo e o poder executivo, como é frequente nos regimes presidencialistas. 

Mesmo excluindo a hipotése de eleição de personalidades autoritárias, irremovíveis durante quatro anos, o potencial disruptivo desta solução presidencialista é enorme, podendo pôr em causa a estabilidade e regularidade de funcionamento do governo das universidades.

3. A eleição do reitor foi saudada pelos corpos universitários e por quase todos os comentadores do anteprojeto governamental, em nome da "democracia universitária" (que, aliás, não goza de assento constitucional).  

Mas, a meu ver, trata-se de um equívoco: primeiro, o "governo representativo" já está plenamente assegurado pela eleição do Conselho; segundo, na nossa ordem política, salvo os municípios e as ordens profissionais, não existe nenhuma instituição dotada de autogoverno em que haja eleição direta de ambos os órgãos de governo, tanto o deliberativo como o executivo. E, como mostram ambos os casos, a eleição direta dos presidentes, além dos seus confitos com os órgaos deliberativos, redunda no seu protagonismo e na secundarização destes, eliminando a efetivação da responsabilidade dos primeiros perante as segundos, o que não é propriamente um avanço democrático.

Do mesmo modo, o presidencialismo vai aumentar a concentração de poder num órgão uninominal que não responde perante ningém, à custa do debate deliberativo num órgão colegial de representação plural e proporcional, como é o Conselho. Portanto, democracia a menos, e não a mais. Monocracia e democracia só têm de comum a rima; ao invés, da monocracia à autocracia vai um passo...

E aqui está a razão por que  uma solução aparentemente "superdemocrática" de governo das IES, que poderia ser associada a uma visão de esquerda, é proposta por um governo de direita a um parlamento maioritariamente de direita, e pode vir a ser aprovada!

Adenda
Um leitor comenta que há «um elemento positivo na proposta do Governo, [que é] a participação dos antigos estudantes na eleição do reitor». Concordo que é muito positivo incluir os alumni no governo das suas antigas universidades, mas eu creio que mais importante do que participarem de 4 em 4 anos na eleição do reitor, com um peso reduzido, seria terem uma representação permanente no Conselho Geral, junto com os demais corpos académicos aí representados.

Adenda 2
Um leitor sugere uma solução intermédia entre o atual sistema de seleção e a eleição direta, que seria a eleição indireta por um colégio eleitoral ad hoc, composto pelo CG e por representantes adicionais dos corpos académicos, eleitos ao mesmo tempo que o CG. Penso que se tiver de abandonar-se o sistema vigente, do mal o menos... Em todo o caso, com quatro condições, para reduzir o risco de abuso do cargo: (i) eleição na base de um programa de ação apresentado ao colégio eleitoral; (ii) eleição por maioria absoluta; (iii) obrigação de prestação de contas regulares perante o CG e (iv) possibilidade de impeachment, por maioria de 3/4 dos membros do CG, em caso de violação grave das suas obrigações legais ou regulamentares, ou do seu programa de ação. 

Adenda 3
Lamentavelmente, o projetodo de revisão do PS, de que acabo de tomar conhecimento, também abandona o atual regime de designação do reitor e, embora remetendo o modo de eleição para a autonomia estatutária das IES, admite explicitamente a eleição direta (que. não tenho dúvidas, seria  a solução geralmente adotada, sob o falso argumento de ser "mais democrática"). Decididamente, nem a esquerda escapa à errada propensão para favorecer a presidencialização da governação universitária...

Adenda 4
Um leitor objeta que o PR também é diretamente eleito e «não corremos o risco de nenhuma ditadura presidencial». Trata-se, porém, de uma confusão: o PR é diretamente eleito, mas não governa nem tem poder de tutela política sobre o Governo, que é politicamente responsável perante a AR, enquanto o reitor é o órgão executivo da sua universidade, pelo que, se for diretamente eleito, deixa de ser responsável perante outro órgão. A diferença é essencial.