1. O novo bastonário da Ordem dos Advogados - cujo estilo de comunicação marca um assinalável progresso em relação à postura litigiosa da sua antecessora - veio pronunciar-se contra "cisões artificiais" na profissão, mas receio bem que elas não sejam tão artificiais assim. Não sei se vale a pena continuar a ignorar a realidade e tentar "tapar o sol com uma peneira".
A verdade é que a crescente diversificação da advocacia acabou com a antiga homogeneidade de interesses, quando a generalidade dos advogados tinha prática individual generalista. Visto do exterior, parece-me evidente que, fora a designação profissional, não há hoje nada de comum entre um advogado de prática individual, que se dedida essencialmente a defesas oficiosas, e um membro de uma grande sociedade de advocacia de negócios, hierarquizada e especializada, que já nem se dedica somente à advocacia. Aliás, penso que as recentes eleições na OA tornaram evidentes essas clivagens.
Esta evolução das antigas "profissões liberais" - que não se limita à advocacia - vem pôr em causa a tradicional (e controversa) noção corporativista das ordens como entidades oficiais de representação e defesa de interesses profissionais, o que obviamente pressupõe a existência de uma identidade profissional vivida e de um interesse profissional comum, que, porém, têm cada vez menos correspondência na realidade.
2. Defendo há muito que numa democracia liberal não deve haver lugar para a representação e defesa oficial de interesses profissionais, a cargo de entidades públicas de base associativa, necessariamente unicitárias e obrigatórias, por duas razões elementares: (i) o poder público, por definição, só pode representar e defender o interesse geral e (ii) a representação e defesa de interesses profissionais deve caber a associações de livre constituição e adesão. O tendencial desaparecimento de um interesse profissional comum a toda a profissão torna ainda menos justificável a derrogação desses princípios constitucionais em relação às chamadas profissões liberais.
Por isso, defendo que, hoje em dia, as ordens profissionais só fazem sentido como instituições de autorregulação e autodisdisciplina profissional (sem prejuízo da representação dos clientes), fazendo cumprir as obrigações legais e deontológicas dos seus membros.
Quando a ideia de "reforma do Estado" foi relançada na agenda política e anda à procura de conteúdo digno da grandiosa noção, aqui está a minha contribuição: a reconversão das ordens profissionais.