terça-feira, 22 de julho de 2025

Concordo (29): Reforma do governo municipal

 1. Aplauso para esta proposta da Associação das Assembleias Municipais, que vem defender a reforma do sistema de governo municipal, no sentido de o equiparar ao sistema de governo das freguesias. As principais alterações seriam as seguintes

- deixaria de haver eleição direta da câmara municipal (CM);
- a CM seria automaticamente presidida pelo primeiro nome da lista vencedora das eleições para assembleia municipal (AM);
- a equipa de vereadores seria eleita pela AM, sob proposta do presidente da CM.

Com esta proposta, as assembleias municipais subscritoras retomam a ideia de aproveitar a faculdade aberta pela revisão constitucional de 1997, que veio permitir duas alterações de fundo no sistema de governo municipal: (i) o afastamento da eleição direta da CM e (ii) a distinção, dentro das AM, entre os poderes dos deputados municipais diretamente eleitos e os presidentes de junta de freguesia que também as integram.

O que é estranho é que tenham passado quase trinta anos sem que essa possibilidade de reforma de um sistema de governo municipal incongruente e disfuncional tenha sido concretizada.

2. Por coincidência, publiquei há pouco tempo na novel Revista dos Municípios o texto de uma palestra minha em Guimarães, há algumas semanas, intitulado «Pelo resgate das assembleias municipais como genuínos parlamentos locais», onde defendo e justifico, doutrinária e politicamente, posições semelhantes.

Com esta reforma, a legitimidade política da CM passaria a decorrer da eleição do parlamento municipal (como é a regra em todos os níveis do poder político no nosso país), acabaria a bizarra situação atual de coabitação obrigatória do partido (ou coligação ) de governo e da oposição na CM, cessaria a existência de executivos municipais politicamente minoritários, tanto na própria CM como na AM, a CM passaria a ser politicamente responsável perante a AM, como impõe desde sempre a Constituição, e a votação da CM e das moções de censura na AM seria um poder reservado aos deputados municipais diretamente eleitos, com exclusão dos presidentes de junta de freguesia. 

Resta saber se esta mudança do sistema de governo municipal, há muito devida, mas que carece de um maioria de 2/3 na AR, desta vez vai para a frente.»

domingo, 13 de julho de 2025

Privilégios (23): O que é demais é demais

Um dos sindicatos médicos está a reivindicar a declaração da profissão médica como "profissão de desgaste rápido" - aparentemente só no SNS... -, para poderem beneficiar dos benefícios correspondentes, em termos de mais férias e de aposentação mais rápida. 

Face a esta provocação sindical de baixo nível, eu penso que o Governo devia responder com outra provocação, ou seja, responder sim, com quatro condições, sob pena de perda desse regime: (i) adesão ao regime de "dedicação plena"; (ii) sujeição a controlo estrito da assiduidade e da pontualidade ao serviço; (iii) submissão a níveis exigentes de desempenho profissional, em termos de serviços prestados; e (iv) incompatibilidade com a acumulação profissional com o setor privado, antes e depois da aposentação.

Duvido que algum dos subscritores ou apoiantes da referida reivindicação aceitasse este repto.

segunda-feira, 7 de julho de 2025

Memórias acidentais (27): Luanda, 1991

 


1. Estas duas fotos da Galeria do Constitutionalismo Angolano, do Tribunal Constitucional, em Luanda, foram-me enviadas por uma amiga que recentemente por lá passou e são testemunho da minha intervenção (graciosa), junto com o meu colega e amigo J. J. Gomes Canotilho, na transição democrática angolana em 1991-92, encerrando o período da "democracia popular" e do monopólio político do MPLA, que durava desde a independência.

Apraz-me recordar esses dias intensos em Luanda, as sessões de trabalho na Assembleia, as reuniões com o partido, o decisivo encontro com o Presidente José Eduardo dos Santos e, à margem, o reencontro com antigos condiscípulos de Coimbra.

Não voltei a Luanda desde então nem revisitei os meus papéis relativos a essa missão, pelo que foi com alegria e alguma emoção que recebi estas fotos e recordei esse meu contributo pessoal para a história política e constitucional angolana.

2. Não foi o único processo de transição democrática em que participei por essa altura, valendo-me da minha própria experiência e da minha reflexão sobre a anterior transição democrático-constitucional em Portugal. 

No ano anterior tinha estado em Cabo Verde, no início do seu processo de transição, contribuindo para a revisão da Constituição e a elaboração das principais leis políticas (partidos políticos, eleições, etc.) e haveria de ir, pouco depois, à África do Sul, a um seminário de vários dias promovido pelo ANC sobre a futura Constituição democrática do País após o fim do regime do apartheid, que terminou com um jantar surpresa com o próprio Nelson Mandela (pouco antes libertado da sua prolongada prisão em Roben Island), um dos momentos mais emocionantes da minha vida política.

Além da satisfação pessoal pela minha contribuição para a fundação de regimes democráticos bem-sucedidos, que passaram o teste do tempo, foram especialmente gratificantes para mim os encontros com os líderes políticos, como Pedro Pires, José Eduardo e Nelson Mandela, cuja determinação foi decisiva para fazer avançar a complexa transição política em países sem nenhuma tradição nem cultura de democracia constitucional.

Adenda
Um leitor atento e informado nota que 1991 foi o ano de publicação da seminal obra de Samuel Huntington, "The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century", justamente sobre o movimento de democratização no último quartel do século passado, iniciado em Portugal com a Revolução de 25 de Abril de 1974. Alegra-me ter dado uma pequena ajuda nos três países africanos que referi.

Adenda 2
Importa acrescentar que a minha intervenção em processos de edificação de democracias constitucionais não ficou por aqui, pois no final dessa década de 90 do século passado, como membro da "Comissão de Veneza" do Conselho da Europa, vim a participar também na transição democrática de alguns países do antigo bloco soviético, tendo-me deslocado, por exemplo, à Arménia

domingo, 6 de julho de 2025

Não é a mesma coisa (4): Pede-se mais ao Presidente

1. Deixa muito a desejar a posição pública do PR sobre as propostas governamentais de subversão das leis da nacionalidade.

Na verdade, embora pré-anunciando que vai recorrer à fiscalização preventiva da constitucionalidade - o que, a meu ver, será imperioso, dadas as flagrantes inconstitucionalidades em que algumas daquelas soluções incorrem, a começar pela discriminação entre nacionais em matéria de punição penal (como apontei AQUI) -, o Presidente não exprimiu, porém, nenhuma outra reserva crítica sobre a reforma, em desvio à sua tradicional loquacidade em situações semelhantes, deixando entender, portanto, que não vai utilizar o veto político, apesar de ela ser manifestamente inspirada pelo Chega e de pôr em causa uma longa evolução, em geral consensual entre o PS e o PSD, sobre o regime da nacionalidade, no sentido humanista do alargamento do seu acesso pelos imigrantes e sua descendência, a maior parte deles com origem em países de língua portuguesa ou noutros países europeus.

Ora, a necessária correção das inconstitucionalidades não absolve o pecado político capital desta reversão da lei da nacionalidade, que o Presidente da República não devia coonestar, abdicando do veto político, que neste caso (ao contrário de outros...) é plenamente justificável.

2. Sucede, aliás, que a lei da nacionalidade não é uma lei qualquer, não sendo por acaso que ela integra a seleta categoria constitucional das "lei orgânicas", sujeitas a um regime mais exigente, quer quanto ao procedimento e à maioria parlamentar exigida para a sua aprovação, quer quanto ao regime do eventual veto político, pois a AR só pode superá-lo por maioria de 2/3.

Sendo, no fundo, uma lei paraconstitucional - por definir um dos três elementos clássicos da noção de Estado (território, população e soberania), que foi indevidamente deixado omisso na CRP de 1976 -, a revisão da lei da nacionalidade sob inspiração do Chega e implementada pelo Governo, à margem do PS (que obviamente a não pode aprovar), traduz-se efetivamente na entrada do partido nacionalista na (re)definição de aspetos básicos do regime político.

Não é possível ignorar o significado político-constitucional profundo desta operação, sem pré-aviso,  de "cheguização" política e doutrinária do PSD, enterrando o «não-é-não» da campanha eleitoral e apadrinhando a entrada da extrema-direita nacionalista e populista no "arco cosntitucional" material nacional. Também por isso, para testar a consistência da nova supermaioria de direita sob a égide do Chega e sublinhar a gravidade da conversão política do PSD, justificava-se o veto político.

sábado, 5 de julho de 2025

Bloquices (27): Extremismo gera extremismo

Tão estúpida, politicamente, como a proposta do Governo de alargar de um para três anos o requisito de residência para conferir a nacionalidade portuguesa aos filhos de cidadãs estrangeiras nascidos em Portugal é a proposta de Bloco, no sentido oposto, de dispensar qualquer requisito de residência, conferindo a nacionalidade a qualquer criança nascida no País, mesmo sem qualquer vínculo da progenitora ao país, abrindo as portas à corrida de estrangeiras aos partos em Portugal, só para efeitos de aquisição de nacionalidade portuguesa (e de cidadania europeia). 

O extremismo retrógrado do Governo, adotando a postura reacionária do Chega contra a integração dos imigrantes, não justifica o extremismo pseudoprogressista do Bloco. Verdadeiramente irresponsável.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Eleições presidenciais 2026 (17): O candidato Marcelo II?

1. Em declarações a propósito da anunciada queixa de José Sócrates ao TEDH, divulgadas pelo jornal Público, o candidato presidencial Luís Marques Mendes, considerando que a reforma da Justiça é «cada vez mais necessária e urgente», anunciou que ele «enquanto Presidente da República, colocarei esta prioridade na agenda pública, política e mediática» e que ela «será uma das minhas causas enquanto Presidente da República, o que obriga a fazer pontes entre quem está no Governo e partidos da oposição», avançando também com propostas concretas, incluindo o fim dos "megaprocessos" e a concessão de mais poderes aos juízes na condução dos processos.

Sem dúvida, o caso Sócrates pode ser mais uma boa razão a favor da necessidade de uma reforma da justiça (e não apenas quanto à morosidade desta...). Mas, no nosso sistema de governo, a quem compete dar prioridade à reforma da justiça (que se tornou praticamente consensual) e definir o seu conteúdo (que é menos consensual) é ao Governo e à AR, e não ao Presidente da República, que constitucionalmente não é um presidente-governante, mas sim um garante das regras do jogo político, pelo que não pode ser ele próprio um agente político, sob pena de ser ele mesmo a subverter as regras

Não há nada mais perturbador para a compreensão do sistema político pelo cidadão comum do que ver o PR a competir com o PM na marcação da agenda política, que constitucionalmente é matéria exclusiva do segundo.

2. De resto, não vejo nenhuma necessidade destas tiradas de protagonismo "macho" dos candidatos presidenciais, que têm o "pequeno" defeito de não terem nenhum cabimento nas funções e nos poderes constitucionais do Presidente e que, portanto, acabam como proclamações vazias para impressionar eleitores incautos ou como fatores de envenenamento das relações políticas entre os três órgaos políticos da República.

Na verdade, o PR pode intervir na decisão sobre reformas políticas de três modos não despiciendos, embora menos espetaculares e menos intrusivos: (i) a título de aconselhamento discreto do Governo e dos partidos de oposição, em Belém; (ii) a título de "facilitador" entre Governo e oposição, a pedido destes, na negociação dessas reformas; (iii) a título de apoio público ao lançamento de tais reformas.

Tudo seria diferente, se o candidato tivesse dito o seguinte: «Considerando o largo consenso existente quanto à necessidade de reforma da justiça, cumpre-me anunciar que, se for eleito, o Governo e a AR podem contar com o apoio do Presidente para a realizar, naquilo que de mim depender».

Ou seja: o PR não está impedido de ter ideias sobre reformas, desde logo para efeito do seu poder de aconselhamento ao Governo. O que não pode, como neste caso, é definir à partida a prioridade e o  conteúdo de tais reformas, usurpando a competência constitucional da AR e do Governo, e depois "forçar" o Governo e a oposição a um entendimento para as realizar. O PR não tem nenhum poder de tutela política, muito menos de "superintendência", sobre o Governo.

No nosso sistema político-constitucional, em que a condução da política geral do país cabe ao Governo, as reformas políticas não podem ser encomendadas nem comandadas a partir de Belém, nem a AR e o Governo estão submetidos às suas orientações políticas. E, por isso, os candidatos presidenciais não podem apresentar-se, como neste caso, como se fossem candidatos a primeiro-ministro ou a superintendentes de primeiro-ministro.

3. Não deixa de surpreender que Luís Marques Mendes, que começou por marcar algumas claras diferenças em relação ao omnímodo estilo presidencial de Marcelo de Rebelo de Sousa, tenha vindo a adotar crescentemente um entendimento cada vez mais intervencionista do cargo presidencial, que começou pela ideia das suas "causas presidenciais" - como se o Presidente pudesse ter, no exercício do seu mandato, outras causas que não as causas constitucionais -, para terminar neste propósito extremo de dar «prioridade pública, política e mediática» a uma certa reforma política, que desafia a prática expansionista do atual inquilino de Belém. 

Numa expressão do seu entendimento assaz amplo dos poderes presidenciais, Jorge Sampaio substituiu a contida fórmula de Mário Soares, "magistratura de influência", pela de "magistratura de influência e de iniciativa", que dava cobertura à sua ideia de Belém colocar temas e propostas na agenda política. Ora, parece claro que, desta vez, Marques Mendes se propõe ir mais longe, no sentido de uma "magistratura de ingerência", não se limitando a colocar reformas na agenda pública, mas também conferir-lhe prioridade política e definir o seu conteúdo, desafiando a autonomia política do Governo e o seu poder exclusivo na condução da política do país.

Decididamente, a "tentação presidencialista" pode dar a volta à cabeça dos candidatos, mesmo dos aparentemente mais sensatos.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Como era de temer (15): Receita para a confusão

1. Segundo esta notícia do Público, os politécnicos de Leiria e do Porto querem ser convertidos em universidades, mudando de ramo no "sistema binário" do ensino superior vigente entre nós, argumentando que já ministram o número de mestrados e doutoramentos previstos na lei para as universidades. 

Mas é evidente que essa pretensão não pode ser satisfeita, pela simples razão de que no sistema em vigor a diferença entre o ensino universitário e o ensino politécnico não depende dos graus académicos ministrados, mas sim do tipo e áreas de ensino e da vocação de cada instituição. Por isso, a lei não contempla tal hipótese de requalificação administrativa de uma instituição de ensino superior, pelo que seria ilegal.

2. Espero bem que a revisão do RJIES - que ficou pelo caminho com a interrupção da legislatura passada, mas que provavelmente vai ser retomada pelo Governo -  não venha a alterar a lei nesse ponto, rejeitando essa receita magna para a grande confusão no ensino superior.  

De qualquer modo, enquanto a lei for o que é, aquela reivindicação só pode ter uma resposta: rejeição liminar.

Adenda
Um leitor pergunta se não foi já aprovada a designação de "universidades politécnicas". Essa era uma proposta da revisão do RJIES, que aplicava ao ensino politécnico a distinção entre "institutos politécnicos" e "universidades politécnicas", paralela à que hoje existe para o ensino universitário (entre "institutos universitários" e "universidades"), tendo em conta o número de áreas lecionadas. Mas não é isso que estes dois IP pretendem, mas sim ser transferidos do ensino politécnico para o ensino universitário, ou seja, mudarem de "campeonato" no ensino superior, o que o RJIES não permite e que espero que não venha a permitir.