sábado, 17 de fevereiro de 2018

Voltar ao mesmo (16): O crédito hipotecário

1. Um dos fatores que mais contribuíram para a grande penosidade social da crise de 2011 foi o sobre-endividamento dos particulares, sobretudo com o crédito à habitação, que o laxismo do Governos e do Banco de Portugal tinha deixado disparar.
O resultado da crise (subida dos juros, redução de rendimentos ou desemprego de muitos devedores) foi a perda de muitas casas por execução da hipoteca, sem que em muitos casos os bancos recuperassem todo o dinheiro emprestado, por efeito da desvalorização do imobiliário durante a crise. Todos perderam.
Todavia, como mostra o quadro acima (colhido aqui), o crédito à habitação, que sofreu uma drástica redução no auge das recessão, começou a recuperar logo em 2014, com o início da retoma económica, e tem acelerado desde então, por efeito dos juros extremamente baixos, tendo atingido no ano passado o máximo desde 2011, nas vésperas da crise, apesar de o PIB ainda não ter recuperado o nível de antes da crise.

2. Face ao nível extremamente baixo de poupança interna, este disparo do crédito hipotecário não pode deixar de ser preocupante, sobretudo tendo em conta que a taxa de juro há de voltar a aumentar algures num futuro próximo, sobrecarregando os orçamentos familiares dos endividados.
São por isso de aplaudir as orientações agora estabelecidas pelo Banco de Portugal para morigerar a concessão de crédito à habitação pelos bancos. O que se pode questionar é saber se não se trata de medidas demasiado tímidas, desde logo por não serem vinculativas e algumas não serem aplicáveis imediatamente (como o limite de 30 anos à longevidade dos empréstimos).
Claramente, no seu papel de regulador prudencial , o BdP só teve em conta o risco para a estabilidade do sistema bancário, tendo de tomar em consideração a decisiva importância do crédito à habitação para a recuperação da rentabilidade dos bancos.
Pela mesma razão, o tema do excesso de endividamento dos particulares tem estado também fora da agenda governamental, desde logo para não estragar a narrativa do "virar de página da austeridade". Mas, como ensinam os economistas, é quando a economia aquece e o crédito dispara que importa tomar medidas de contenção do endividamento.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Lisbon first (5): Metropolitano de Lisboa contra a ferrovia nacional

Sem surpresa, dados os antecedentes, enquanto não falta dinheiro para o metropolitano de Lisboa (e o mesmo se diga do do Porto) - que nem sequer deveria ser uma responsabilidade do Estado, mais sim dos municípios interessados, sendo um serviço de transporte urbano -, fica-se a saber que do plano ferroviário nacional só está em execução 15% do plano que devia estar em obra.
É certo que, apesar do crescimento exponencial das receitas fiscais e outras (mercê da robusta retoma económica), o orçamento do investimento público tem sido substancialmente sacrificado, em homenagem ao aumento da despesa com salários e  pensões do setor público. Mas, então, isso constitui mais uma razão para dar prioridade às obras de infraestruturas de interesse nacional, como a ferrovia, que são responsabilidade primeira do Estado e que têm a ver com as ligações internacionais do País (valorização das linhas do Minho, da Beira Alta e da Beira Baixa e a nova linha Évora-Caia) e não de obras que deviam ser da responsabilidade municipal, de interesse local.
Como tenho defendido várias vezes, não existe nenhuma razão para que os contribuintes do resto do país sustentem com os seus impostos os transportes urbanos de Lisboa e do Porto, para mais sacrificando obras de interesse nacional!

Adenda
Mais investimento estatal na expansão do metro de Lisboa e do Porto. Prodigalidade eleitoral.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

+ Europa (8): Não há omeletes sem ovos

1. Parece que agora se tornou natural, em Bruxelas e entre nós, defender sem pruridos a criação de impostos da União Europeia, e o Primeiro-Ministro fez bem em manifestar o apoio de Portugal a essa via de reforço da sustentabilidade orçamental da União, secundando a posição da Comissão Europeia nesta matéria em relação ao próximo Quadro Financeiro Multianual para 2020-2027.
Não era assim em 1999, quando Mário Soares ousou propor isso, nem sequer em 2009, quando eu próprio me atrevi a defender o mesmo, na minha candidatura ao Parlamento Europeu desse ano. Pouco faltou para ser politicamente crucificado pela imprensa e pelos meus concorrentes (e com o próprio PS a demarcar-se da ideia!).
Como era de esperar, antes e agora, essa iniciativa defronta a oposição das forças antieuropeístas, à esquerda e à direita, em nome da "soberania fiscal" dos Estados, como se a União não fosse no seu cerne um exercício de partilha e de cedência comum de soberania (legislação, poder judicial, política monetária e cambial, política comercial comum, etc. etc.). O que não explicam é a quadratura do círculo de quererem mais dinheiro e mais ação da União sem lhe proporcionarem mais receita, pelo menos para compensar a que é perdida com a saída do Reino Unido.

2. Nas atuais circunstâncias, a criação de recursos fiscais próprios da União, constitui o único meio de responder à perda da importante contribuição britânica e ao aumento das tarefas da União (imigração, defesa, investigação e inovação, etc.), sem ter de cortar excessivamente nos programas tradicionais e sem ter de aumentar as contribuições financeiras diretas dos Estados-membros, o que é tabu para alguns deles (e que inviabiliza essa solução).
Ao contrário destas, as receitas fiscais próprias não constituem despesa orçamental dos Estados-membros (por isso, não contam para o seu próprio saldo orçamental) e diluem a lógica perversa da distinção entre países "contribuintes líquidos" e países "beneficiários líquidos" do orçamento da União.

3. Penso, porém, que em caso de não haver reforço das receitas próprias da União nem das contribuições financeiras dos Estados-Membros, as poupanças a efetuar nos programas tradicionais não podem deixar de atingir em primeira linha a Política Agrícola Comum.
Primeiro, não se justifica que a União continue a gastar mais de um terço do seu orçamento num só dos seus programas, que aliás beneficia uma pequena parte dos agricultores europeus, já de si uma pequena minoria. Em segundo lugar, não faz muito sentido continuar a subsidiar maciçamente a agricultura europeia, quando os consumidores podem ter acesso a produtos agrícolas mais baratos provindos de terceiros países, nomeadamente o Brasil e os Estados Unidos, se for reduzida a elvada proteção pautal dessas importações (obtendo em troca um acesso preferencial ao mercado desses países para outros produtos e serviços europeus).
Os europeus pagam duas vezes o protecionismo agrícola da União: primeiro, sustentam o enorme envelope orçamental dos subsídios; depois, pagam preços mais caros pelos mesmos produtos, por causa da proteção aduaneira.
É tempo de de acabar com este contrassenso!

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Voltar ao mesmo (15): Reversão permanente

1. Não contentes com a reversão das medidas de austeridade orçamental - que, aliás, só foi possível porque esta foi bem-sucedida e cumpriu os seus objetivos no plano orçamental e económico! -, os partidos "juniores" da Geringonça reclamam agora a reversão de duas das mais importantes reformas do programa de assistência financeira externa, nomeadamente a reforma da lei do arrendamento e a da lei laboral.
É de esperar que o Governo resista desta vez a tais pretensões. Primeiro, porque essas reformas tiveram o apoio do PS na negociação do acordo de assistência em 2011; segundo, porque tal reversão não consta do programa eleitoral do PS nem do programa do Governo em 2015; terceiro, porque essas reformas contribuíram decisivamente para êxito do programa de assistência externa, nomeadamente quanto à retoma económica e do emprego e quanto ao dinamismo do mercado habitacional e da reabilitação urbana em curso.

2. Que a Geringonça justifique a não adoção de novas reformas no campo das políticas económica e social, por causa do veto dos parceiros da protocoligação governamental, pode compreender-se: não há apoios políticos grátis.
Mas que ela justifique a reversão de reformas que estão na base da recuperação da economia e do emprego - que, importa lembrar, começou ainda em 2013, bem antes da reversão da austeridade orçamental - seria um insensato contrassenso político.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Ai, o défice ! (3)

1. Pelo segundo ano consecutivo, verificou-se em 2017 um aumento do défice da balança comercial de mercadorias, com as exportações a ficarem bem abaixo das importações, sendo o maior défice desde 2011 (como mostra a tabela do INE acima). Para isso terá contribuído, apesar de um assinalável incremento das exportações, um ainda maior crescimento das importações, mercê do aumento do investimento (importação de matérias primas e de equipamentos) e do consumo interno, alimentado pelo aumento do poder de compra e do crédito ao consumo.
Só o confortável excedente no comércio externo de serviços (cortesia da vaga turística) permite manter um saldo positivo da balança comercial geral, mesmo assim provavelmente inferior ao do ano anterior (como aqui se antecipou há meses).

2. A manter-se esta tendência, o País pode vir a experimentar de novo um défice comercial geral dentro de algum tempo, situação de que somente saiu há poucos anos, durante o período de assistência financeira externa, em grande parte devido à forte contração da procura interna (e consequentemente das importações), por causa da crise económica e da situação de austeridade orçamental.
Caso se confirme essa involução, tal mostra que o problema da competitividade externa da economia portuguesa continua por resolver de forma sustentável.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Ainda bem! (2)

1. O Parlamento Europeu voltou a defender a apresentação de candidatos a presidente da Comissão Europeia nas eleições europeias (conhecidos pelo termo alemão "Spitzenkandidaten"), abrindo caminho à designação para essa posição do candidato do partido vencedor nas eleições.
Defendo essa ideia desde 2009, e apoiei-a no Parlamento Europeu, tendo ela sido posta em prática pela primeira vez nas eleições de 2014, que levaram à designação de Juncquer como presidente da atual Comissão, por ter sido o candidato do PPE, o partido mais votado nessas eleições. Isso mudou decididamente o modo de seleção do presidente da Comissão, até aí efetuada pelos chefes de governo dos Estados-membros em negociação de bastidores, por vezes ao arrepio dos próprios resultados eleitorais.

2. Ao contrário da lista transnacional, agora justamente rejeitada, a apresentação prévia de candidatos a presidente da Comissão pelos partidos europeus constitui uma real mais-valia para a democracia na UE, valorizando o voto dos cidadãos europeus e as próprias eleições europeias, dando visibilidade aos partidos políticos paneuropeus e combatendo a tradicional "nacionalização" das eleições e, por último (mas não menos importante), conferindo mais legitimidade e autoridade ao chefe de executivo da União.
É lícito esperar que a repetição, nas eleições do ano que vem, da bem-sucedida experiência de 2014 vai consolidar definitivamente essa inovativa prática constitucional, a caminho de uma genuína democracia parlamentar na UE.

Ainda bem!

O Parlamento Europeu rejeitou a proposta de criar um círculo eleitoral transnacional nas eleições europeias.
Pelas razões aqui expostas contra essa proposta, ainda bem! Prevaleceram os príncipios e o bom-senso político.

Observatório do comércio internacional (4): A imparável ascensão comercial da China

«Em 2014, as exportações de mercadorias da UE representaram 15,0 % do total mundial. Pela primeira vez desde a criação da UE, as exportações europeias foram ultrapassadas pelas da China (15,5 %), mas mantiveram-se à frente das dos Estados Unidos (12,2 %), cuja parte das importações mundiais (15,9 %) excedeu quer a da UE (14,8 %) quer a da China (12,9 %).»
1. Apesar de se manter como a maior economia mundial, a UE passou a ser apenas a segunda potência comercial no que respeita ao comércio mundial de mercadorias, tanto nas exportações, agora lideradas pela China, como nas importações, com os Estados Unidos à cabeça (tabela A7 abaixo, segundo a OMC). Todavia, a União mantém uma folgada liderança mundial no comércio de serviços, como mostra a tabela A9 abaixo, o que continua a assegurar-lhe a liderança nas exportações em geral (mercadorias + serviços).


Esta ultrapassagem da UE no comércio de mercadorias é justificada pelo maior dinamismo do crescimento económico da China e dos Estados Unidos, sendo o primeiro voltado especialmente para as exportações, enquanto o aumento da procura nos Estados Unidos faz crescer as importações e agravar o enorme défice comercial do País, que a deriva protecionista de Trump ainda não conseguiu inverter.

2. A elevação da China como principal potência exportadora mundial de mercadorias (e já em 3º lugar no comércio de serviços), apenas quinze anos depois do seu acesso à OMC, testemunha sem margem para dúvida a sua imparável ascensão económica.
Se, em termos económicos, o séc. XIX foi o século britânico e o séc. XX o século norte-americano, o séc. XXI está em vias de ser o século chinês. Não admira por isso que Pequim se tenha tornado um campeão do comércio livre, enquanto Washington recua para posições protecionistas. Trata-se de uma dramática transformação geo-económica.
Como é bom de ver, o Brexit vai acentuar a perda de liderança da UE no comércio internacional em favor da China, dado o importante peso britânico no atual comércio externo da União.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Gostaria de ter escrito isto (20): A contaminação populista

«Populists do not need to win elections to enact their policies and spread their style of politics. They can do so through the very mainstream parties whose votes they threaten to take; infecting them and living off their political blood. “Eventually,” warns Mr Bale, “the parasite may end up consuming the host.”».
(Do The Economist, desta semana


Quando a fortuna sorri a todos, de pouco vale reinvidicar louros próprios

1. Nos últimos meses todos os governos dos países da UE festejam e atribuem a mérito próprio o robusto crescimento económico, acompanhado de quebra do desemprego, do aumento do rendimento disponível e do consumo e do investimento, da subida das bolsas, etc. Os tempos da recessão e da contenção orçamental estão para trás, quase uma década depois. A economia europeia cresce ao ritmo mais elevado desde a crise (até a Grécia e a Itália alinham...). O mesmo sucede um pouco por todo o mundo, aliás.
Ora, sendo comum a todos os países, o bom estado da economia em cada um deles não pode obvimente ser devido primordialmente a nenhuma política económia nacional em particular, tanto mais que na UE há governos de várias orientações políticas (conservadores, centro-direita, liberais, social-democratas e mais à esquerda) com desempenhos semelhantes. De resto, com a crescente integração económica europeia e a cada vez maior abertura económica de todos os países ao exterior, as políticas económicas nacionais contam cada vez menos. O mérito tem de ser creditado sobretudo às instituições europeias, e sobretudo ao BCE, pela sua determinação na defesa da moeda comum e numa política monetária ultra-expansionista, que reduziu substancialmente os custos da financimento público, das empresas e dos consumidores.

2. Por conseguinte, os referidos resultados económicos em cada país seriam conseguidos, sem grandes variações, com qualquer outro governo. Sorte de quem está no poder para beneficiar da boa onda...
A única distinção importante, e não despicienda, é quiçá o que cada país faz com a prosperidade que a retoma económica europeia e mundial trouxe. Há quem mantenha a cabeça fria e tome precauções para o futuro, sabendo que os períodos de crescimento não duram sempre, e há quem entre em euforia autocongratulatória e volte às velhas pechas do "chapa ganha, chapa gasta", confiando levianamente em que desta vez a bem-aventurança económica e financeira veio para ficar indefinidamente.

domingo, 28 de janeiro de 2018

Discordo (4) - Contra a reabertura do mapa das freguesias

A extemporânea reabertura do processo de reordenamento territorial das freguesias, efetuado pelo Governo do PSD/CDS em execução de uma imposição do programa de assistência financeira (que, aliás, se referia às autarquias em geral e não somente às freguesias....), só pode resultar na pressão de toda a gente, incluindo dentro do PS, para a reversão integral da reforma e a reconstituição de todas as freguesias extintas, o que é um grave erro. Vai sobrar a algazarra populista à custa da racionalidade técnica, financeira... e política.
Quando uma das propostas de descentralização territorial é o reforço das competências das freguesias, não se compreende a reconstituição de freguesias sem população suficiente e sem a massa crítica necessária para cumprir essas competências. Face ao despovoamento de grandes áreas do país - quer do país rural, quer dos centros da cidades -, não faz sentido voltar à fragmentação das freguesias. Em vez de reverter a reforma efetuada - quando ela funciona sem grandes problemas, como mostraram as eleições autárquicas -, melhor seria apostar na desconcentração dos serviços das freguesias, de modo a cobrir adequadamente todo o seu território. 
É ilusório pensar que há soluções ótimas para as questões de ordenamento territorial das autarquias locais. Nesta questão da geografia das freguesias era importante seguir a prudência observada na pequena emenda da reordenação judicial. Mas dificilmente a demagogia política vai permitir tal contenção.

Irreversível o declínio da social-democracia?


1. Os números do quadro acima - retirado daqui - não enganam: é evidente o declínio eleitoral dos partidos social-democratas europeus nas últimas duas décadas, traduzido em pesadas perdas nas eleições parlamentares desde 2000 em muitos países, algumas delas devastadoras (Grécia, França), com apenas duas exceções (Bulgária  e Noruega). E em vários países do Leste europeu, a social-democracia praticamente não existe
Perdendo apoio eleitoral e representação parlamentar a social-democracia perde naturalmente poder governamental. Há vinte anos, os governos socialistas detinham a maioria no Conselho da União Europeia; hoje estão em reduzida  minoria. As próximas eleições italianas podem trazer mais uma perda.
As perdas eleitorais dos partidos social-democratas têm beneficiado não somente os partidos à sua esquerda mas também os partidos populistas, incluindo a direita nacionalista.

2. Entre as razões geralmente apontadas - na já vasta literatura sobre o declínio da social-democracia - contam-se a recomposição económica social no países europeus, com redução acentuada do trabalho manual e da filiação sindical, base social tradicional dos principais partidos social-democratas, e a incapacidade da social-democracia tradicional para captar o apoio das novas classes médias (profissionais liberais, quadros médios e técnicos, etc.).
Há talvez outro fator não menos importante. A social-democracia cresceu politicamente na fase da luta pela edificação do Estado social na Europa (direitos dos trabalhadores e direitos sociais gerais, nomeadamente o direito à saúde, à educação, e a segurança e proteção social), de que foi protagonista. Hoje o Estado social está na defensiva, sob o desafio da sua sustentabilidade financeira. Por isso, os partidos social-democratas, quando no Governo, são levados a restringir os níveis de satisfação dos direitos sociais, contrariando a sua herança política e ideológica, o que provoca o afastamento do seu eleitorado tradicional, cativado pelo ativismo protestatário das esquerdas alternativas ou pelas ilusões salvíficas das forças populistas.
Não admira que algumas da maiores perdas foram registadas pelos partidos social-democratas que tiveram de gerir programas de austeridade ou de contenção financeira a seguir à crise da dívida pública de 2009 (Grécia, Espanha, Irlanda), como aqui se assinalou, ou que levaram a cabo reformas a favor da flexibilidade laboral e da competitividade económica (caso da Alemanha).

3. Vítima da recomposição social e da crise do Estado social, a social-democracia tarda em adaptar o seu discurso e prática política a um nova configuração social (pluriclassismo e mobilidade social) e a novas agendas políticas socialmente transversais, onde sofre a competição de outras forças políticas (ambiente e mudanças climáticas, segurança alimentar, igualdade de género, mobilidade e qualidade de vida urbana, imigração e multiculturalismo, globalização e sua regulação, etc.).
Vivemos durante muitas décadas no pressuposto de que a social-democracia era a alternativa de governo natural à direita. Hoje, porém, em muitos países, a social-democracia está inexoravelmente afastada da luta pelo poder e da governação. Ponto é saber se esse declínio é reversível...

Adenda
A posição do PS português é relativamente singular. Embora também tenha reduzido o seu score eleitoral no período assinalado, o PS foi poupado à ordália política de ter de gerir o programa de assistência financeira externa que o seu próprio Governo negociou em 2011 (cortesia da coligação entre a direita e a extrema-esquerda que o afastou do poder pouco antes...), tendo depois voltado ao governo em 2015 já com o programa de austeridade orçamental concluído e com a retoma económica iniciada e o desemprego a diminuir, apoiada no dinamismo da economia da União e em especial dos nosso principais parceiros comerciais. Eis uma conjunção astral favorável de que nenhum outro partido da família socialista beneficiou.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Observatório do comércio internacional (3): Protecionismo à moda da Trump

1. Em vias de se transformar no campeão do protecionismo comercial entre as economias desenvolvidas, Trump anunciou "medidas de salvaguarda comercial" contra a importação de painéis solares e de máquinas de lavar roupa, o que vai prejudicar sobretudo as exportações chinesas e coreanas, respetivamente, mas atinge também todos os demais países exportadores desses produtos, que ficam sujeitos a uma tarifa suplementar na sua importação para os Estados Unidos.
Embora esta medida de proteção de emergência das indústrias nacionais esteja prevista nas regras da OMC, a verdade é que a sua aplicação está sujeita a requisitos muito exigentes, o que as torna excecionais.

2. Com esta iniciativa, os Estados Unidos passam a ser a único país desenvolvido a pôr em vigor "medidas de salvaguarda". De facto, dos 18 países que as têm em vigor (apenas 10% dos membros da OMC), nenhum integra o grupo das economias desenvolvidas, como mostra o quadro abaixo (retirado daqui). Agora passam a ter a surpreendente companhia da segunda maior economia mundial, até há pouco líder do comércio livre.
Como era de esperar, esta iniciativa protecionista suscitou uma ampla crítica, mesmo nos Estados Unidos.  E a Coreia já anunciou que vai contestar essa medida na OMC, não devendo ficar sozinha. Mais um argumento para a guerra de Trump contra a OMC!

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Para ficar na gaveta

1. Tem-se aqui notícia de mais uma proposta de reforma do sistema eleitoral, apresentada pela Associação para uma Democracia de Qualidade, dinamizada pelo antigo deputado e presidente do CDS, Ribeiro e Castro.
Embora não sejam conhecidos os pormenores, visto que a proposta não se encontra disponível online, a informação vinda a público deixa entender que se trata de uma adaptação do sistema eleitoral alemão, sendo uma nova versão da proposta apresentada à AR em 1998, por iniciativa do Governo Socialista, integrando dentro do sistema proporcional a eleição de cerca de metade dos deputados em círculos uninominais, que depois são imputados à quota que cabe ao respetivo partido na repartição proporcional dos mandatos nos círculos plurinominais.

2. O sistema alemão constitui uma das alternativas destinadas a estabelecer a chamada personalização do voto em sistemas proporcionais, dando aos eleitores a possibilidade de votarem em candidatos e não somente em partidos.
As dificuldades da importação de tal sistema entre nós consistem na tarefa de desenhar círculos uninominais de dimensão populacional aproximada - que correm o risco de ser assaz artificiais, sem identidade territorial própria - e a impossibilidade de solução para o eventual caso de um partido conseguir eleger um candidato num dos círculos uninominais mas depois não ter votos suficientes para conseguir o respetivo mandato nem no circulo territorial plurinominal correspondente nem no circulo nacional de compensação.

3. Seja como for, a perspetiva de sucesso de tal iniciativa é pouco ou nada favorável, visto que os dois principais partidos cujo voto é necessário para aprovar reformas eleitorais, o PS e o PSD, não compartilham o mesmo ponto de vista sobre a solução adotar (o PSD prefere agora o "voto preferencial" dentro das listas plurinominais, à maneira belga, por exemplo).
Além disso, enquanto houver governos de coligação ou acordos de governo à direita ou à esquerda, é impossível qualquer reforma eleitoral como a agora reequacionada, visto que os partidos mais pequenos temem que os círculos uninominais sejam (quase) todos ganhos pelos dois grandes partidos (o que é provável) e que o voto dos eleitores nessa eleição contamine o seu voto nas listas plurinominais, que atribuem os mandatos, favorecendo os mesmos partidos (o que é menos provável).
Enquanto forem necessários para formar ou apoiar soluções de governo, os pequenos partidos têm poder de veto nessa matéria, impossibilitando qualquer entendimento entre os dois grandes partidos, pelo que a reforma eleitoral vai continuar fora da agenda política, como tem estado nos últimos 20 anos.

Adenda
J. Ribeiro e Castro enviou-me um email, que agradeço, a indicar que a proposta se encontra disponível online, aqui:
https://drive.google.com/file/d/1ZrQUKDgFJYmt58YVFqu5WFAdOXQXhOiN/view

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Pobre Língua (12)

«Sérgio Sousa Pinto falou em "vestais" e não em "vegetais", como inicialmente foi entendido pela comunicação social dada a semelhança na fonética da palavra. Pelo erro, pedimos desculpa.»
Ora, a confusão de "vestais" com "vegetais" só é possível no pronúncia de Lisboa, o que revela que a versão lisboeta da Língua, cada vez mais dominante no País, mesmo na fala de pessoas cultas, por efeito da televisão e da rádio, está a estropiar a norma fonética erudita tradicional.

"Business and human rights" (1)

1. Desde há muito que a União Europeia condiciona as vantagens comerciais que concede a outros países (nomeadamente a entrada das suas exportações sem tarifas ou com tarifas reduzidas no enorme mercado da União) ao reconhecimento e efetivação dos chamados "core labour standards" da OIT por parte dos países beneficiários, nomeadamente proibição de trabalho forçado e infantil, liberdade sindical e contratação coletiva e não discriminação no trabalho e no emprego.
Sucede, porém, que, ao contrário dos Estados Unidos, a União não estabelece sanções para o incumprimento dessa obrigação nos seus acordos comerciais, pelo que a chamada "cláusula laboral" fica "sem dentes".
Critiquei fundadamente esta posição de fraqueza da União no meu livro Trabalho Digno para Todos: A Cláusula Laboral no Comércio Externo da União Europeia (2014) e propus a revisão desta posição. Mas até agora a Comissão Europeia - a quem compete negociar os acordos comerciais da União - não avançou com essa necessária revisão.

2. O problema volta a ser suscitado agora com o acordo comercial com o Vietname, dada a desproteção dos direitos laborais mais elementares nesse país (supostamente comunista), que se tornou um forte exportador não somente de têxteis mas também de dispositivos electrónicos, incluindo smartphones, em grande parte à custa desse baixo nível de proteção dos direitos laborais.
Na falta de uma cláusula laboral dotada de sanções no tratado já concluído, a posição do Parlamento Europeu - a quem cabe aprovar o acordo -, deve ser, como defendi no referido livro, a de recusar essa aprovação enquanto o país em causa não tomar medidas corretivas. Tal é também a posição do presidente da Comissão de Comércio Internacional do Parlamento Europeu (o social-democrata Bernd Lange, meu sucessor nesse cargo), que é a de reter a aprovação do acordo enquanto o Vietname não proceder à revisão do Código Laboral.
A União não pode continuar a conceder acesso privilegiado ao mercado europeu a produtos fabricados com violação dos mais elementares direitos laborais, em concorrência desleal não somente com produtos europeus mas também com produtos oriundos de outros países que os cumprem.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Qualidade da democracia (III)

Uma das medidas do pacote da transparência que pode vir a ser aprovada consiste em criminalizar o incumprimento da obrigação de declaração património e de rendimentos dos titulares de cargos políticos e equiparados, que passará a constituir crime de desobediência qualificada.
Discordo. Há entre nós um notório abuso de tal crime para punir o incumprimento de obrigações legais ou administrativas. E não funciona. Entendo que é desnecessário e inconveniente usar meios penais nestes casos, devendo aqueles ser reservados para a violação de valores fundamentais da coletividade. Penso que na maior parte destes casos, incluindo na nova situação que se pretende criar, os melhores instrumentos punitivos seriam uma sanção pecuniária compulsória (uma "multa" por cada dia de atraso na entrega da declaração) e a perda do mandato em causa, ambas muito mais céleres e eficazes.

Qualidade da democracia (II)

No prestigiado índice democrático do The Economist, relativo a 2016 - cujo ranking é encabeçado pelos países escandinavos -, Portugal ocupa um modesto 28º lugar, abaixo de países como Cabo Verde e Costa Rica, por causa da baixa classificação em três dos cinco indicadores utilizados na classificação (funcionamento do Estado, participação política e cultura política).
Há que melhorar estes indicadores. Entre outras medidas, o pacote da transparência referido em post anterior, pode aumentar a confiança nas instituições políticas e o funcionamento do sistema político. Mais uma razão par a sua aprovação e implementação tão depressa quanto antes.

Qualidade da democracia

1. Tão importante como a democracia em si mesma é a sua qualidade.
Hoje em dia as democracias liberais distinguem-se, entre outros fatores, pela transparência no exercício da função política e pelas medidas adotadas para prevenir os conflitos de interesses e a corrupção, o que influencia enormemente a credibilidade e a confiança que as instituições inspiram nos cidadãos.
Por isso, só peca por por tardia a aprovação do conjunto de iniciativas legislativas sobre o assunto em curso na Assembleia da República e que estão na agenda das jornadas parlamentares do PS que hoje decorrem em Coimbra.

2. A regulação da atividade de representação e defesa de interesses junto dos decisores políticos (conhecido vulgarmente por lobbying) constitui um instrumento fundamental de transparência e de integridade da atividade política, devendo abranger todos os níveis de poder e todos os decisores, desde os legisladores aos dirigentes dos institutos e agências públicos, passando obviamente pelo Governo.
Alem do registo oficial dos profissionais dessa atividade, a regulação deve incluir o registo público de todas as suas interações com todos os decisores políticos. Pretender excluir os deputados dessa obrigação de registo e de reporte, como alguns pretendem, é um contrassenso. Além do mais, estabelecer exceções injustificáveis ao cumprimento de obrigações públicas em beneficio próprio é muito feio.

3. As incompatibilidades são o meio institucional de prevenção de conflitos de interesse, impedindo a contaminação da função política pelos interesses privados dos decisores públicos. Por isso, devem abranger todas as situações susceptíveis de inquinar a confiança pública na dedicação exclusiva à causa pública.
No caso dos advogados, cuja incompatibilidade com a função parlamentar há muito defendo, há outro motivo para a justificar, que é a separação de poderes. Os advogados participam na função judicial de aplicação das leis (tal como prevê, aliás, a Constituição) e podem ter obviamente interesse em alterar ou manter legislação em função dos interesses do seus clientes. Ficou célebre a história de deputados que alegadamente promoveram e defenderam a aprovação de amnistias para beneficiar clientes seus.
Ora, como demonstraram os pais fundadores da teoria da separação de poderes (de Locke a Montesquieu), é essencial que quem faz as leis não participe na sua execução, e vice-versa. Os advogados-deputados infringem claramente essa regra essencial da teoria constitucional.

4. Nunca defendi a exclusividade ou a profissionalização integral da função parlamentar, por a considerar excessiva (embora sempre tenha estado em dedicação exclusiva no meus vários mandatos parlamentares). Mas entendo que hoje em dia os parlamentos ganham em qualidade e capacidade de desempenho, se tiverem o maior número possível de deputados em dedicação exclusiva, dada a enorme exigência da função parlamentar na atualidade.
Por isso, penso que deveria haver uma clara distinção remuneratória entre a dedicação exclusiva e o tempo parcial (o qual, aliás, só beneficia quem exerce outra atividade em Lisboa ou nos arredores). O atual diferencial de 10% é puramente ridículo; deveria ser de pelo menos o triplo, premiando a dedicação exclusiva e dissuadindo o tempo parcial.

Portucaliptal (27) - Interesses intocáveis

1. Só posso apoiar a nova estratégia florestal de diversificação das espécies e de aposta nas espécies autóctones e de crescimento mais lento e mais resistente aos fogos. Não tem sido outro o objectivo da minha longa luta contra a eucaliptização galopante do País.
Foi preciso um ano de catástrofes de incêndios florestais, com perdas de muitas vidas e enormes prejuízos materiais, para tornar evidente o barril de pólvora que criámos ao longo dos anos com a florestação extensiva e desordenada de montes e vales, assente no pinheiro e cada vez mais no eucalipto. Ainda há menos de um ano eram anunciados nutridos subsídios públicos à plantação florestal que incluíam o pinheiro e o eucalipto. Um absurdo, como aqui assinalei!

2. O que mantenho, porém, é que não basta subsidiar e investir dinheiros públicos na plantação dessas espécies. Torna-se necessário reverter a atual extensão do eucaliptal e fazê-lo pagar as "externalidades negativas" que a coletividade até agora tem pago - em termos de fogos, de degradação da paisagem, de predação de recursos hídricos, de perda de biodiversidade -, através de meios fiscais apropriados, como já propus antes (aqui e aqui).
O preço do eucalipto deve refletir por via fiscal todos os seus custos, incluindo os custos sociais, contribuindo para pagar o enorme investimento exigido pela expansão dos sobreirais, carvalhais, etc. Mas pelos vistos, tal medida continua fora da agenda política. Os interesses da fileira agro-industrial da celulose acabam sempre por prevalecer...

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Este País não tem emenda (18): O império do automóvel

«(...) a velocidade mínima na autoestrada portuguesa parece ser 140 km/h, a velocidade média de 160 km/h e a velocidade máxima o que o carro permite.»
Tilo Wagner, Diário de Noticias de 18/1/2018.
1. O cronista tem inteira razão. Nas autoestradas portuguesas, o limite legal de 120 km/h é fictício, sendo ignorado pela generalidade dos automobilistas, muitos dos quais se dão ao gozo de viajar a 180 km/h ou mais, pondo em causa a segurança rodoviária e aumentando os níveis de poluição sonora e ambiental (por causa do maior consumo de combustível).
Este incumprimento generalizado não revela somente o típico défice de civismo nacional mas também a falta de fiscalização e de punição. Pelo que se sabe, o risco de serem apanhados é baixo (por falta de fiscalização) e a possibilidade de fuga ao pagamento da coima é elevado (por deficiência do sistema de aplicação e de cobrança). A impunidade geral convida à infração.
Pode considerar-se que o atual limite é demasiado baixo, mas a verdade é que, mesmo se fosse mais alto (como defendo), não deixaria por isso de haver a mesma violação maciça que hoje existe, se não houve mudança de atitude e de fiscalização.

2. O incumprimento generalizado dos limites de velocidade (e não somente nas autoestradas!) é apenas uma vertente do império do automóvel entre nós, também caracterizado pelo estacionamento caótico (invadindo passeios e lugares reservados às paragens de transportes urbanos), pelos crescentes engarrafamentos urbanos e pela reivindicação de um pretenso direito ao aparcamento gratuito no espaço público.
Entretanto, as cidades e o país geral continuam a ser invadidos por cada vez mais automóveis, para além de todos os limites de sustentabilidade, sem que os poderes públicos revelem a mínima intenção de penalizar o uso do automóvel privado e de investirem a sério no transporte público.
O direito universal à mobilidade não equivale à universalização do transporte automóvel particular, pelo contrário!

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Impostos virtuosos

Acaba de ser criada, por iniciativa da Fundação Bloomberg, uma task force sobre a "política tributária para a saúde", advogando a aplicação de impostos elevados sobre produtos especialmente prejudiciais à saúde, nomeadamente o tabaco, o álcool e os produtos com excesso de açúcar. O New York Times saúda a iniciativa.
Por minha parte, não é a primeira vez que apoio estes impostos entre nós. Por isso, a saúdo também.

Adenda
Ver também o artigo de Lawrence Summers (que é um dos promotores das iniciativa) no Financial Times: «Para melhorar a saúde global é preciso tributar as coisas que nos estão a matar». Segundo os dados por ele invocados, o tabaco é responsável por 7 milhões de mortes anualmente, a obesidade por 4 milhões e o álcool por 3,3 milhões!
É um massacre! E o impacto estimados das doenças que causam estas mortes sobre as despesas dos sistemas de saúde é gigantesco. Tal como sucede com a poluição, os responsáveis diretos por estes custos devem dar a sua própria contribuição financeira para custear essa despesa adicional, para não sobrecarregar excessivamente os demais contribuintes. É uma questão de justiça tributária!

sábado, 13 de janeiro de 2018

Não concordo (3): Decisão precipitada

1. Sempre me opus à ideia de criação de uma círculo eleitoral transnacional nas eleições para o Parlamento Europeu (por exemplo, aqui), por várias razões:
  - primeiro, os lugares atribuídos a tal lista transnacional seriam retirados aos círculos nacionais, implicando portanto uma redução do número de deputados eleitos em cada país, incluindo em Portugal;
  - segundo, a lista transnacional favoreceria naturalmente a posição dos países mais populosos, nomeadamente Alemanha e a França, reforçando a sua representação parlamentar;
  - terceiro, passaria a haver duas categorias de deputados, a saber os eleitos a nível da União e os eleitos a nível nacional, com o perigo de uma perda de status político dos segundos face aos primeiros.

2. Sucede, aliás, que essa solução nem sequer se pode defender sob um ponto de vista da construção federal da UE, de que aliás compartilho, pois ela não existe na generalidade dos Estados federais (como os Estados Unidos ou o Brasil). Acresce que as listas de base nacional já dispõem, elas mesmas, de natureza "transnacional", visto que nelas votam e podem ser eleitos cidadãos de qualquer outro Estado-membro da União que seja residente noutro país.
Por isso não se compreende como é que a recente cimeira dos governos dos países do sul da União, entre os quais Portugal, acordou em apoiar tal ideia (ponto 9 do comunicado final), quando ela nem sequer está na agenda do debate político, muito menos do debate parlamentar, pelo menos entre nós. O mínimo que se pode dizer é que se trata de uma posição precipitada e inadvertida sobre uma questão de perigosas consequências, que se impõe seja reconsiderada.

Adenda
Já depois deste post Rui Tavares veio defender a lista supranacional e atacar os seus críticos (onde não me inclui), deixando entender que os opositores se situam à direita e temem a "democratização da UE". Sucede que eu não sou de direita, tenho defendido o aprofundamento democrático da UE e até sou confessadamente federalista. Nada disso me leva a concordar com tal ideia. Entretanto, outras vozes na área socialista, como Manuel Alegre, vieram juntar-se à crítica à lista supranacional. Decididamente, está lançado o debate público que faltava. Mas ainda não chegou ao Parlamento, seu lugar natural.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

A disputa no PSD

Não pretendo obviamente manifestar nenhuma preferência pessoal na disputa pela presidência do PSD, que não é a minha área política. Mas ocorrem-me duas notas:
  - primeiro, qualquer que seja o resultado, dificilmente isso fará qualquer diferença quanto ao previsível desfecho das eleições parlamentares do próximo ano, que, tudo indica, não se vai traduzir numa vitória do PSD, dado que o ciclo económico - ajudado pela forte retoma da economia europeia e mundial - favorece claramente o Governo e o PS, como argumentei aqui;
  - segundo, em qualquer caso, dado que Santana Lopes se situa manifestamente mais à direita do que Rio, é de admitir que um PSD liderado pelo primeiro terá mais dificuldade em disputar o eleitorado do centro político - que é quem decide as eleições -, o que tende a favorecer o PS, que vai apelar a  tal eleitorado em condições particularmente favoráveis.
Em suma, seja quem for o novo líder do PSD, a seu futuro político não se afigura esperançoso, pelo menos no horizonte temporal imediato.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Direito de resposta nos média

1. Reeditando uma iniciativa realizada no ano passado com assinalado êxito, o Instituto Jurídico da Comunicação da FDUC vai voltar a apresentar o curso breve de direito de resposta na comunicação social, cuja coordenação científica me cabe, na qualidade de autor de uma monografia sobre o assunto, a qual, apesar de de ter sido publicada há mais de vinte anos (Coimbra, 1994), se mantém no essencial plenamente atual (e que hoje se encontra hoje disponível online).
2. Tratando-se de um direito fundamental constitucionalmente reconhecido, o direito de resposta garante aos interessados a publicação de uma retificação ou comentário no caso de qualquer notícia ou imputação relativa a uma pessoa (ou instituição). Cabendo recurso para a Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC), em caso de denegação, sem necessidade de recurso aos tribunais, o direito de resposta goza entre nós de uma proteção assaz forte.
Quanto os média se tornam cada vez mais intrusivos na vida pessoal, tantas vezes em termos incorretos ou ofensivos, o direito de reposta oferece um meio expedito de retificação ou defesa dos interessados no mesmo órgão de comunicação social e, em princípio, nos mesmos termos e condições do texto que motiva a resposta.

3. Os direitos fundamentais existem antes de mais para defender as pessoas contra o poder, e não apenas o poder político.
Ora, os média são hoje inegavelmente um poder (o "quarto poder". como sói dizer-se) com uma enorme capacidade de afetar a esfera da liberdade pessoal e o direito ao bom nome e reputação. Daí a plena justificação do direito de reposta e da sua efetivação contra os média recalcitrantes.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Invocar a Constituição em vão

Entre nós há uma tentação fatal para "constitucionalizar" todas as questões políticas, como mostra a polémica sobre a possibilidade, ou não, de recondução da Procuradora-Geral da República, uma vez terminado o seu mandato.
Parece óbvio que, na falta de expressa proibição constitucional, nada impede a recondução nem, muito menos, confere um direito à recondução nesse cargo. O Governo tem plena liberdade de decisão quanto à proposta a fazer ao PR, podendo naturalmente optar por um novo titular, sem necessidade de justificação, tal como aliás fizeram os governos anteriores. Trata-se de uma questão do exclusivo foro da discricionariedade política, não de uma questão constitucional.
A Constituição não pode ser invocada em vão nem para fundamentar uma alegada impossibilidade de recondução nem para contestar a incontornável liberdade governamental de seleção de um novo PGR. À Constituição o que é do foro constitucional, à política o que releva da esfera da livre decisão governamental. O resto são futilidades constitucionais...

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

"Direitos Humanos e Negócios"

No próximo dia 17 tem lugar o lançamento público do Coimbra Business and Human Rights Centre, uma parceria inovadora entre o Ius Gentium Conimbrigae / Centro de Direitos Humanos da FDUC (ao qual presido), e a Coimbra Business School, do Instituto Politécnico de Coimbra.
O novo centro visa a investigação e o ensino da temática dos direitos humanos na atividade económica, sobretudo no âmbito das relações económicas internacionais - ou seja, o comércio internacional e investimento direto estrangeiro -, que têm como atores principais as empresas multinacionais e as cadeias de produção globais.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Nem taxa, nem turística!

1. Depois de declarada a inconstitucionalidade da alegada taxa de proteção civil (ver post antecedente), igual destino parece traçado para a chamada taxa turística, já cobrada em Lisboa e instituída entretanto noutros municípios, como no Porto. Como aqui se mostrou anteriormente (aqui e aqui), a mesma conclusão vale aqui, por maioria de razão, aliás!
De facto, a chamada taxa turística é uma ficção, pois não é taxa nem é turística. Não é "taxa" porque não tem fundamento em nenhuma contrapartida concreta individualizada por parte dos sujeitos ao seu pagamento, faltando-lhe a natureza bilateral que é essencial à noção jurídica de taxa, como tributo distinto dos impostos. Não é "turística", porque não incide sobre todos os turistas (deixando de fora os que não pernoitam em hotéis) e incide sobre muitos não turistas (como as pessoas que se deslocam àquelas cidades em trabalho ou em outra atividade profissional).
Por conseguinte, além de ser uma ficção jurídica, a alegada taxa turística é também um óbvio contrassenso.

2. Na verdade, substantivamente estamos perante um imposto municipal sobre serviços de hotelaria, que acresce ao IVA cobrado pelo Estado. Mas, sendo, como é, um imposto, só pode ser instituído pela AR (ou pelo Governo com autorização legislativa), não por cada município sem base legal.
De resto, beneficiando os serviços de hotelaria do privilégio de uma ridícula taxa de IVA de 6%, como se fossem um serviço essencial, até nem será injusto que a lei possa autorizar os municípios (mas todos eles) a criar um tal imposto, seja como nova figura fiscal autónoma, seja como uma espécie de "derrama" municipal sobre o IVA (como sucede com a derrama municipal sobre o IRC). Mas deve ser o legislador nacional a assumir essa medida.
No nosso sistema constitucional a autonomia municipal inclui o poder de beneficiar dos impostos que lhe sejam conferidos por lei (impostos municipais hoc sensu), mas não o poder de os criar à margem do legislador.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Obviamente, chumbada!

1. A nova declaração de inconstitucionalidade da chamada taxa municipal de proteção civil  (desta vez em relação a Lisboa) só pode surpreender os distraídos. Neste blogue a questão das "falsas taxas" foi abordada mais do que uma vez (aqui e aqui), contestando fundadamente a sua conformidade constitucional.  O Tribunal Constitucional veio perfilhar inteiramente essa posição.
Na verdade, não se trata de uma taxa mas sim de um imposto, que só poderia ser criado por lei da AR (por decreto-lei autorizado), não por decisão municipal. De facto, não há nenhum contrapartida concreta individualizada do pagamento dessa pseudotaxa, tratando-se de um serviço de proteção universal, independentemente do pagamento da pretensa taxa. Pela mesma razão, também não pode existir uma "taxa" de iluminação pública (para financiar os respetivos gastos de eletricidade), nem uma "taxa"de segurança municipal (para financiar a polícia municipal), nem uma "taxa" ambiental (para financiar os parques e jardins municipais), nem uma "taxa" cultural (para financiar os serviços culturais), etc.
Por definição, os bens públicos, que abertos à fruição de toda a gente, não são financiáveis por via de taxas em sentido próprio, salvo nos casos em que se admite restringir a sua fruição a quem pague (por exemplo, entrada paga em certos parques ou museus). O que se estranha é que, perante um caso tão óbvio, o município de Lisboa tenha insistido sobre a sua pretensa "robustez" jurídica...

2. O Presidente da Câmara Municipal de Lisboa faz recair sobre o legislador nacional a responsabilidade de encontrar uma via para o financiamento da proteção civil municipal.
Mas, a não ser que a AR decida criar um imposto municipal especialmente dedicado a tal fim - o que vai contra o princípio orçamental clássico da não consignação de impostos -, o município de Lisboa só pode financiar esse serviço como financia os demais serviços gerais referidos, ou seja, através das suas receitas gerais, como aliás fazem os demais municípios.
Não se vê porque é que Lisboa há de ser diferente.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Este país não tem emenda (17): Prodigalidade corporativa

1. Por via de regra, os membros da mesa da assembleia geral das pessoas coletivas, desde as associações às empresas, não têm remuneração permanente, dada a natureza ocasional da sua atividade (poucas reuniões por ano). Não assim os afortunados membros da mesa da assembleia geral da Ordem do Contabilistas, que recebem generosa remuneração permanente pela sinecura. Certamente não alheio a essa prodigalidade corporativa é o facto de os beneficiários serem ex-titulares cargos políticos. Também nas ordens profissionais há membros mais iguais do que outros...
Mais insólita é a notícia de que um deles também recebeu durante vários anos uma compensação adicional de milhares de euros da Ordem pelo facto de ter deixado de receber, por decisão governamental, a subvenção vitalícia de ex-titular de cargo político, como se a Ordem tivesse alguma responsabilidade por isso ou alguma obrigação de manter a seu nível de rendimento. Um caso manifesto de abuso de poder e de enriquecimento sem justa causa! Disgusting!

2. Está provado pela teoria e pela experiência que quem tem o poder de decidir sobre as suas próprias remunerações ou outras vantagens pecuniárias tende a abusar desse poder em beneficio próprio, sobretudo se o puder fazer discretamente. Isso é assim nas empresas privadas ou nas instituições públicas.
Por isso, impõe-se que as remunerações dos cargos de governo em organizações sejam fixadas pelo órgão representativo dos pagadores, sejam os acionistas das empresas ou os associados das associações, ou pelo menos por um órgão independente dos beneficiários. E justifica-se igualmente que entre as obrigações de transparência deva incluir-se a publicidade das remunerações dos membros dos corpos gerentes.
Está visto que a lei-quadro das ordens profissionais carece de uma revisão quanto a esses pontos.