quarta-feira, 18 de fevereiro de 2004

Privilégios nada canónicos

Lia-se há dias no Diário Económico:
«A Universidade Católica Portuguesa (UCP) pode abrir a Faculdade de Medicina em Sintra, sem qualquer autorização do Ministério da Ciência e Ensino Superior (MCES), garantiu ao DE uma fonte ministerial.
Tem também liberdade para transformar o curso de Medicina Dentária da UCP, em Viseu, num curso de Medicina, sem necessitar de qualquer autorização. O decreto-lei nº 128/90, aprovado pelo então Ministro da Educação, Roberto Carneiro, estabelece que a UCP goza de “autonomia, estatutária, científica, pedagógica e patrimonial”. (...) Este regime excepcional foi garantido ao abrigo da Concordata assinada entre o Estado português e o Vaticano.»

A “fonte ministerial” invocada nesta notícia só pode ser algum estipendiário da Universidade Católica. De facto, a história do “ensino concordatário” é uma invenção ainda mais indecorosa do que a das armas de destruição maciça do Iraque. Depois de mil vezes desmontada a patranha, ela continua regularmente a ser ressuscitada. A Concordata não prevê nenhum regime especial para as escolas da Igreja Católica, antes estabelecendo expressamente (art. 20º) que elas se integram no ensino particular, estando sujeitas à fiscalização do Estado como as demais (aliás como estabelece a Constituição). Por isso o tal diploma de Roberto Carneiro, feito por encomenda da interessada, cria um regime excepcional de favor para ela, em total violação do princípio da igualdade e da neutralidade do Estado. Ainda por cima com uma falsa fundamentação na Concordata, que só pessoas ignorantes ou de má fé insistem em repetir.
É claro que a lei pode dispensar de autorização os cursos das universidades particulares, limitando-se a estabelecer requisitos objectivos e a verificar "a posteriori" o seu preenchimento pelos interessados. Contudo, de duas uma: ou a Universidade Católica pode criar cursos universitários sem autorização oficial, e então todas as universidades particulares têm o mesmo direito; ou as demais não o têm, e aquela também não o pode ter. O que se não pode admitir é um privilégio singular, ao arrepio da moral e da Constituição.
No caso dos cursos de medicina, seria um escandaloso atentado ao Estado de Direito que, enquanto as candidaturas das demais universidades estão a ser analisadas por uma comissão independente antes de os cursos serem aprovados (ou não), a Universidade Católica pudesse criar o seu, ocupando o espaço das demais, sem qualquer verificação oficial.

Vital Moreira