Tendo participado nos "Estados Gerais" de 1994-95, fui contudo um dos primeiros críticos da governação de Guterres, especialmente no segundo governo. Basta recordar as minhas crónicas da época no Público. Por isso estou particularmente à vontade para discordar dos que consideram uma imperdoável "fuga" a sua demissão no seguimento da derrota das eleições locais de Dezembro de 2001, como insiste António Barreto no Público de hoje. Na altura defendi mesmo a demissão, como exercício de responsabilidade democrática. Parece-me evidente que nas circunstâncias -- sem maioria parlamentar, à mercê das oposições, perante uma crise financeira já declarada, depois do descrédito dos orçamentos "limianos" --, já não existiam condições mínimas de governação. A pesada derrota das autárquicas -- que foi uma inequívoca moção de censura popular ao Governo -- tornaria insuportável a posição do Governo, sujeitando-o a uma permanente flagelação pela falta de apoio político e arrastando por mais um ano (talvez até ao chumbo do orçamento seguinte) uma agonia governativa de que a primeira vítima seria o País.
Talvez ele devesse ter submetido uma moção de confiança ao Parlamento, obrigando as oposições a derrubá-lo (ou a proporcionar a formação de outro governo com condições de governabilidade), mas não compreendo como é que se lhe poderia exigir que permanecesse em funções nessas condições, contribuindo desse modo para agravar a crise de confiança política e a crise das finanças públicas, por falta de apoio parlamentar para adoptar medidas de disciplina financeira, como se tinha mostrado em relação às severas medidas de controlo da despesa pública propostas por Pina Moura no verão de 2001.
As culpas de Guterres estão antes, no mau governo, e não na demissão. Ele pagou com a demissão o seu insucesso governativo, e o PS com a derrota nas eleições subsequentes, como é próprio da democracia. Não creio que se deva reescrever a história desse período especialmente contra ele, em vista da disputa presidencial que se aproxima.