sexta-feira, 1 de maio de 2020

Pandemia (17): O que distingue o estado de emergência do "estado de calamidade"?

Eis as respostas por escrito que dei a um questionário do Jornal Económico, publicadas na sua edição deste fim de semana. As minhas respostas vão em itálico; acrescentei alguns esclarecimentos adicionais, entre parêntesis retos [...].

“Estado de calamidade não é uma espécie de estado de emergência ‘soft’”
Lígia Simões / 30 Abr 2020
Vital Moreira alerta que “só a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência permite a suspensão do exercício de direitos fundamentais”.

O Governo prepara-se para decretar a situação de calamidade pública quando cessar a vigência do terceiro período do estado de emergência em Portugal. Vital Moreira alertou num post no blogue “Causa Nossa" que “a hipótese está a gerar dúvidas de constitucionalidade, e não sem fundamento”, pelo que o JE foi ouvir a opinião do constitucionalista sobre o instrumento legal que o Governo poderá acionar, e se este permite impor o confinamento domiciliário ou restrição total ou parcial dos movimentos da população.

Questiona a eficácia da situação de calamidade para combater a pandemia da Covid-19?

Não. Se se entende que a situação é agora menos exigente, então o condicionamento da vida das pessoas também pode ser menor.

Se o estado de emergência não vier a ser renovado, isso significa que o Governo não pode continuar a decretar medidas de restrição excecionais, como as limitações à circulação entre concelhos ?

Não defendi isso. Disse no Causa Nossa que o “estado de calamidade” não pode “suspender” direitos (o que somente o estado emergência pode fazer), mas não disse que não pode “restringir” direitos. Não é mesma coisa, constitucionalmente falando. Independentemente do estado de emergência, a Constituição permite a restrição de vários direitos fundamentais, se justificadas e proporcionadas. Não considero ilegítimas as que refere, nas condições excecionais da epidemia.

O Governo defende que um conjunto de outros instrumentos legais permite manter normas de confinamento, restrição à circulação ou condicionamento no funcionamento de determinados estabelecimentos. Concorda?

Concordo, desde que não sejam afetadas as liberdades que, segundo a Constituição, não podem ser restringidas senão em estado de exceção constitucional (como, a meu ver, sucede com o confinamento obrigatório) e desde que respeitadas os requisitos da restrição de direitos fundamentais enunciados no art. 18.º da Constituição, designadamente a base legal, a necessidade e proporcionalidade e a salvaguarda do núcleo essencial dos direitos restringidos.

O estado de calamidade não está previsto para situações de pandemia?

O estado de calamidade, que não tem previsão constitucional, está legalmente previsto para situações de acionamento da proteção civil. A pandemia pode eventualmente configurar essa situação. Mas observo que a “calamidade pública” constitui um dos fundamentos [constitucionais] do estado de emergência, o que cria uma desnecessária confusão conceptual.

Permite limites à circulação, mas a lógica da aplicação da lei é a delimitação geográfica. Podem aplicar-se determinadas medidas a nível nacional?

Pode, desde que os fundamentos digam respeito a todo o território.

Em termos nacionais o Governo pode, por exemplo, limitar o número de pessoas presentes num restaurante, cinema ou espaço público?

A meu ver, pode.

Caso venha a ser esta a opção, antevê que o isolamento profilático de cidadãos idosos, contra sua vontade, passe a ser um problema?

É um real problema, como digo no post, porque o confinamento domiciliário obrigatório afeta o núcleo essencial da liberdade pessoal, pelo que só pode ser decretado em estado de emergência.[É mais do que uma restrição da liberdade de circulação.]

A declaração de calamidade tem força suficiente para impor que as pessoas permaneçam em casa?

A resposta é igual à anterior.

As cercas de segurança, e ao nível das fronteiras, podem aplicar-se a todo o território?

A meu ver, podem [se estritamente necessárias].

E no caso das praias, também podem ser impostos limites?

Podem.


A Lei de Bases da Saúde prevê o internamento compulsivo, ou tomar as medidas de exceção indispensáveis. Com o estado de calamidade pode ser restringido o direito da proibição de internamento compulsivo?

É outro dos casos que não tem cobertura constitucional [por anular a liberdade pessoal], salvo em estado de emergência. A Constituição define explicitamente os casos em que pode haver internamento compulsivo [no art. 27º da Constituição], sem incluir esse caso. Há muito que defendo uma alteração constitucional para permitir o internamento compulsivo em caso de doenças infeto-contagiosas, com as devidas garantias, incluindo autorização ou confirmação judicial, em caso de recusa. Mas essa alteração não foi feita.

Que outros direitos não podem ser restringidos caso venha a ser decretado o estado de calamidade?

Todos aqueles cuja restrição a Constituição não proíba e desde que respeitados os requisitos constitucionais de restrição de direitos.

O primeiro-ministro alertou que “ninguém pode ter a ideia de que o fim do estado de emergência significa o fim das regras de confinamento”. Na sua opinião, que tipo de regras se podem manter sem ser decretado o estado de emergência?

Já respondi. Mas penso que é necessário sublinhar que o “estado de calamidade”, sem base constitucional, mas somente legislativa, e decretado pelo Governo, sem intervenção do Presidente da República e da Assembleia da República, não é uma espécie de estado de emergência soft. Não é definitivamente a mesma coisa.