quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Pandemia (39): Inconstitucionalite aguda

1. Há quem pense que os constitucionalistas são tanto melhores quanto mais inconstitucionalidades descortinarem e, observando as acusações de inconstitucionalidade desde ao início da pandemia, é caso para dizer que nenhuma das medidas tomadas para a combater, fora do estado de emergência, escapou a essa acusação.

Também se dá erradamente por assente que, uma vez denunciada uma inconstitucionalidade, por menos evidente que seja, é ao legislador ou ao Governo que incumbe provar que ela não existe, como se lhes coubesse o "ónus da prova" da conformidade constitucional dos seus atos. Ora, não é assim. Os atos do poder público não são inconstitucionais enquanto não se provar concludentemente que o são. Portanto, quem invoca uma inconstitucionalidade é que tem de justificar convincentemente a sua tese. Não basta alegar que ela existe. Na dúvida, não prevalece a inconstitucionalidade.

2. A Ordem dos Advogados também resolveu entrar na liça, anunciando publicamente que apoia o recurso de uma advogada que, tendo pedido a suspensão judicial da aplicação da restrição da liberdade de circulação na semana passada e tendo perdido, resolveu recorrer da decisão do STA  para o Tribunal Constitucional.

Nada contra, obviamente. O problema é que, no seu apressado zelo, a OA invoca em seu apoio uma passagem da CRP Anotada de que sou coautor (junto com J. J. Gomes Canotilho), sobre a regra constitucional de que as restrições legais aos direitos fundamentais precisam de uma explícita credencial constitucional, o que não se verifica no caso da liberdade de circulação, "esquecendo", porém, de citar outra passagem da mesma obra, em que se explica que essa autorização constitucional de restrição de cada direito não é exigível quando se trate de situações de colisão de direitos fundamentais, em que necessariamente um deles ou ambos têm de sofrer alguma restrição, para defender o outro (como já expliquei anteriormente em adenda a este post).

Ora, como argumentou o Governo, a referida restrição da circulação, aliás muito mitigada pelas exceções estabelecidas, visou limitar o perigo de contaminação comunitária, assim defendendo o direito de todos a não verem lesada a sua saúde (e a sua vida!) por ação ou omissão de terceiros. Portanto, restrição de um direito fundamental para defender outro.

3. De resto, se essas "restrições não expressamente previstas", como são conhecidas, fossem constitucionalmente ilícitas, então seriam ilegítimas todas as demais restrições à liberdade de circulação ao abrigo da Lei da Proteção Civil, obrigando à declaração do estado de emergência, sempre que fosse necessário tomá-las. 

O mesmo sucederia, de resto, em muitas outras situações de colisão entre direitos fundamentais, para os quais a Constituição não prevê explicitamente a possibilidade de restrição legal. E são muitos.