segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Eleições parlamentares 2022 (16): Comprometedora leviandade

1. Chega a ser chocante é a extrema ligeireza com que, nesta entrevista à Antena 1, o líder do PSD e candidato a primeiro-ministro explica a inesperada proposta de abandonar a gratuitidade constitucional do SNS e tenta desvalorizar o seu alcance, como se fosse pequena coisa passar a exigir a quem tenha meios um pagamento maior ou menor pelos cuidados de saúde de que necessite, de valor deixado à discricionariedade da maioria de cada momento. 

É evidente que o pagamento dos cuidados afastaria muita gente do SNS, pondo em causa a sua universalidade, e afrontaria a valor primacial da igualdade dos portugueses perante a saúde, independentemente dos meios. Tal como no caso da escola pública, também no caso do SNS a gratuitidade é penhor da universalidade e da igualdade no acesso a um bem essencial numa sociedade decente.

2. É verdade que o PSD nunca se deu muito bem com o SNS tal como previsto na Constituição, ou seja, universal e (tendencialmente) gratuito para todos, quanto aos cuidados recebidos. Votou contra na Assembleia Constituinte; revogou-o mal chegou ao poder, num Governo da AD, e só Tribunal Constitucional o resgatou desse "assasssinato" político a frio; muito mais tarde, Passos Coelho propôs numa revisão constitucional abolir a gratuitidade, salvo para quem não tivesse meios, sujeitando as pessoas a "teste de recursos". 

O que não deixa de supreender é que tal proposta - que vai bem com a lógica da direita liberal, de que "quem quer saúde paga-a", da "liberdade de escolha" e da redução de impostos - tenha sido levianamente recuperada por alguém que protesta "não ser de direita". Pelos vistos, entre a proclamação e a convicção vai uma longa distância.

A questão crucial suscitada por esta comprometedora proposta, que subverte um dos pilares do "Estado social" configurado na Constituição, é a de saber que confiança é que PSD pode inspirar quanto à manutenção dos outros pilares, como o ensino público e a segurança social pública.

Adenda
O problema - objeta um leitor - é que muitas pessoas das classes média e alta já pagam os seus cuidados de saúde através da ADSE e de seguros de saúde, pelo que entendem que não devem ser chamados a pagar com os seus impostos também a gratuitidade do SNS, mesmo para quem dispõe de meios para pagar os cuidados de saúde, no todo ou em parte. A este argumento respondo: (i) embora sendo pessoalmente financiador, beneficiário e copagador da ADSE, trata-se de uma opção pessoal, que a todo o tempo posso rever; (ii) por essa lógica, quem opta por escolas privadas também não deveria financiar a gratuitidade da escola pública - que deveria obedecer igualmente ao princípio do "utente-pagador" - e os lisboetas que pagam o uso do seu automóvel privado deveriam recusar-se a financiar com os seus impostos e taxas muncipais a gratuitidade dos transportes públicos que a CM do PSD vai instituir na capital. Haja coerência!