quinta-feira, 31 de março de 2022

Não concordo (31): Contra o boicote institucional

1. Os deputados da nova AR só conseguiram eleger dois dos quatro vice-presidentes constitucionalmente previstos - os candidatos dos dois maiores partidos (PS e PSD) -, tendo falhado a eleição os candidatos dos dois partidos mais à direita, da IL e do Chega (este em segunda tentativa). 

Sendo a rejeição inatacável sob o ponto de vista constitucional e regimental - pois, segundo a Constituição, os vice-presidentes precisam de uma maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções -, já sob o ponto de visto político e institucional a questão é menos evidente. Se, quando o 3ª e 4ª maiores partidos parlamentares eram o BE e o PCP, não foi posto em causa o seu direito a assumirem as correspondentes vice-presidências, pode não ser fácil explicar porque é que as coisas mudam quando eles são substituídos por partidos de direita.

A verdade é que a mesa da AR só fica constitucionalmente completa com os quatro vice-presidentes, pelo que os dois referidos partidos têm um direito constitucional a apresentar sucessivas candidaturas, com os mesmos ou outros candidatos, enquanto os seus lugares continuarem vagos. O arrastamento do processo, mantendo uma composição politicamente desequilibrada e constitucionalmente incompleta da mesa, não prestigiaria a AR.

2. É certo que em relação ao Chega, há manifestamente uma posição concertada à esquerda para boicotar o seu acesso ao governo da AR.

No entanto, se pode compreender-se um boicote político, dadas as posições ultra desse partido, já outro tanto não sucede com a ideia do boicote institucional, o qual, além de proporcionar ao Chega um fácil argumento de perseguição e de vitimização política, lhe retira o direito constitucional de participar no autogoverno parlamentar, incluindo o direito de integração qualificada na Comissão Permanente da AR, onde os vice-presidentes têm lugar por inerência (o que pode inclusivamente suscitar dúvidas sobre a regularidade do seu funcionamento). 

Uma coisa é a rejeição de qualquer negociação ou acordo político com o partido de extrema-direita populista; outra coisa é a sua exclusão institucional. Mesmo os partidos que não respeitam a democracia liberal têm direito a invocá-la em seu favor...

Adenda
É um dislate o deputado Mithá Ribeiro insinuar que foi por "questões raciais" que foi rejeitado, sabendo bem que só o foi por ser candidato do Chega. De resto, até teve mais votos do que o primeiro candidato rejeitado do mesmo partido, que é um genuíno-branco-europeu-de-autêntica-cepa-"caucasiana"! Inventar "questões raciais" em benefício próprio não dignifica ninguém, muito menos um deputado...

Adenda 2
Um leitor pergunta se a questão pode acabar no Tribunal Constitucional. Poder, pode, mas duvido que haja solução judicial para esta questão. A Constituição prevê recurso dos atos eleitorais realizados na AR, mas não há nenhuma ilicitude nas votações realizadas - os deputados são livres de votar como querem e o voto é secreto. Por outro lado, as decisões políticas, como o boicote ao Chega, não são suscetíveis de escrutínio pelo TC. Por isso, a solução do impasse só pode ser política, por exemplo através de recomendação dos grupos parlamentares aos seus deputados.