quinta-feira, 31 de março de 2022

Praça da República (65): O Primeiro-ministro não é infungível

1. Mesmo que o não diga explicitamente, a frase "assassina" do PR no discurso de tomada de posse de PM sobre a "pessoalidade" da vitória eleitoral de António Costa e consequente impossibilidade de deixar o lugar a meio do mandato e ser substituído por outro (como os comentadores se apressaram a ler) vai ser naturalmente aproveitada pelos poucos adeptos da qualificação do sistema de governo português como "primo-ministerial", baseado na legitimidade eleitoral pessoal própria do PM.

Mas não é assim. Por mais pessoalizadas que sejam as eleições, hoje em dia, em todos os sistemas de governo parlamentar, António Costa é primeiro-ministro por ser (i) líder do partido que ganhou as eleições e que (ii) detém uma maioria de deputados na AR, pelo que (iii) goza da indispensável confiança parlamentar para governar.

Lamento informar, mas, por mais poderes que tenha, o Presidente da República não tem seguramente o poder de mudar a Constituição e decretar a substituição do sistema de governo.

2. Em caso de interrupção do mandato do primeiro-ministro em funções (por morte, renúncia ou candidatura a outro outro cargo político), nem a Constituição nem a lógica do sistema de governo impedem a sua substituição por outro candidato do partido de governo, como, aliás, sucedeu em 2004 (Santana Lopes). Todos os anos há casos de substituição tranquila do primeiro-ministro em sistemas de tipo parlamentar como o nosso.

É claro que no nosso sistema político, o PR pode preferir usar o seu poder politicamente discricionário de dissolução parlamentar, interrompendo a legislatura e o mandato governamental. Mas se o fizer, fá-lo por sua conta e responsabilidade política, não podendo invocar nenhuma caducidade "automática" do mandato supostamente pessoal do PM que deixa funções. 

Ao contrário do mandato presidencial - esse, sim, de natureza incontornavelmente pessoal -, o mandato do primeiro-ministro é, por definição, fungível (ou seja, substituível). 

3. Por conseguinte de duas, uma: ou o próprio Costa já decidiu levar o mandato até ao fim, como parece resultar de declarações próprias (incluindo uma passagem do seu discurso de posse, sobre a «estabilidade politica até outubro de 2026»), renunciando antecipadamente a um cargo europeu que pode vir a estar ao seu alcance, ou pode ver-se constrangido a fazê-lo, por receio de o PR preferir interromper a legislatura e a estabilidade governativa, à custa da continuidade do governo do PS.

Em qualquer caso, por vontade própria ou alheia, parece ficar fora de causa a hipótese de presidente do Conselho Europeu, para o qual o prestígio e a autoridade política em Bruxelas o credenciam. Uma perda para a União e para Portugal!

[Revisto: mudança na rubrica do post]

Adenda 
De um leitor "provocador": «Ao querer limitar o futuro europeu de AC, o PR conferiu-lhe uma legitimidade [de] que até agora só o próprio PR dispunha, a de eleito pessoal e diretamente pelos portugueses. Agora PR e PM têm politicamente a mesma legitimidade, só se distinguindo nas competências. A maldade presidencial fez notícia, mas a parificação das legitimidades confere ao atual PM um poder a que nenhum dos seus antecessores foi conferido. Ou seja, a maldade pela culatra!». Bem congeminado: com a vantagem adicional de Costa ter as rédeas do poder...

Adenda 2
Acrescente-se que os únicos cargos políticos executivos que entre nós gozam de legitimidade eleitoral pessoal direta, podendo inclusivamente não ser candidatos de partidos políticos - ou seja, os presidentes de câmara municipal -, são automaticamente substituídos, em caso de vagatura, pelos candidatos seguintes na lista de candidatura, que obviamente não gozam, nem de perto nem de longe, da sua legitimidade eleitoral.

Adenda 3
Um professor de Direito Constitucional lembra que nos próprios regimes presidencialistas - em que o Presidente é cumulativamente chefe do Estado e chefe do governo e goza de legitimidade eleitoral direta (ou semidireta, como nos Estados Unidos) fortemente personalizada -, a vagatura do cargo (por morte, renúncia ou destituição) não acarreta novas eleições, sendo o período restante do mandato desempenhado pelo vice-presidente e, no caso de falta deste, por outros titulares de cargos políticos (como o presidente do parlamento), que não gozam obviamente da legitimidade eleitoral pessoal do Presidente.

Adenda 4
Entre nós, a prova de que o PM não é infungível não está somente na legislatura de 2002-04 (em que o PM inicial, Durão Barroso, do PSD, foi substituído por um PM do mesmo partido, Santana Lopes), mas também na legislatura de 2015-19, em que houve dois governos de diferentes partidos, pois o PM inicial, Passos Coelho, líder do partido vencedor das eleições (PSD), foi rejeitado na AR e substituído pelo líder do segundo partido mais votado (PS), António Costa. Nenhum deles tinha sido supostamente "eleito" para o cargo...

Adenda 5
De resto, se a saída do PM (voluntária ou não) se der nos primeiros seis meses da legislatura ou nos últimos seis meses do mandato presidencial, o PR está constitucionalmente impedido de dissolver o Parlamento, sendo, portanto, obrigado a aceitar a substuição do chefe do Governo, sem novas eleições.