quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Não é bem assim (13): "O fascismo nunca existiu"

1. Há mais um académico que se propõe negar a natureza fascista da ditadura salazarista (e do franquismo).

Na verdade, é fácil fazê-lo, se se adotar uma definição tão estreita de fascismo, por referência aos regimes mussoliniano e hitleriano, que o chamado Estado Novo deixa de preencher algumas dessas características. É, porém, uma tarefa mais difícil, se se perfilhar a ideia de que a noção se conjuga no plural - fascismos -, com diferentes declinações nacionais, cabendo nessa qualificação todos os regimes que compartilharam os seus traços essenciais.

É claramente uma opção doutrinária com evidentes conotações políticas quanto ao juízo sobre o regime salazarista.

2. A meu ver, de entre os traços comummente identificados com o fascismo em sentido geral, o Estado Novo compartilhou pelo menos os seguintes:

- a ideologia e a prática militantemente antiliberal, antidemocrática e anticomunista, anti-individualista e organicista;

- o nacionalismo radical, a exaltação da "Raça" e a ideia imperial (só abandonada entre nós nos anos 50);

- o culto do chefe, da disciplina e da hierarquia social;

- o enquadramento paramilitar da juventude (Mocidade Portuguesa e Legião Portuguesa);

- a institucionalização oficial da propaganda do regime como tarefa primordial do Estado (SPN e SNI);

- a instrumentalização da história nacional pré-liberal ao serviço da legitimação do regime;

- a criação de uma organização política oficial de recrutamento e enquadramento político, chefiada pelo próprio Salazar (UN/ANP);

- a negação absoluta da liberdade política, a começar pelas liberdades públicas a ela inerentes (de expressão, de reunião e de associação), a abolição dos partidos políticos e o papel decisivo da censura jornalística e literária;

- a negação da liberdade de criação intelectual e artística e a instrumentalização política da cultura e do desporto;

- a vigilância intensa e a repressão da oposição intelectual e política (demissão, interdição profissional, exílio, prisão, tortura policial);

- a existência de uma poderosa política política secreta (PIDE/DGS), apoiada numa ampla rede de informadores;

- a criação de tribunais criminais especiais (os "Plenários"), sem as mínimas garantias de defesa, para condenação dos acusados de crimes políticos e sociais;

- o enquadramento corporativo oficial das atividades económicas e sociais (Estatuto do Trabalho Nacional, "grémios" e "sindicatos nacionais", corporações);

- a negação e repressão penal da liberdade sindical e do direito à greve;

- o forte controlo estadual da vida económica, sacrificando a liberdade de iniciativa e a concorrência no mercado ("condicionamento industrial", "organismos de coordenação económica", "grémios obrigatórios");

- o casamento estreito entre o regime e os grandes interesses económicos.

Ainda que possivelmente incompleto, não deixa de ser um elenco impressionante!

3. Sem dúvida, além de nunca se ter assumido como tal, o salazarisno não replicou alguns outros traços típicos dos modelos italiano e alemão, nomeadamente nos seguintes pontos: o racismo explícito, a suspensão/abolição da ordem constitucional, a rejeição de qualquer forma de consulta eleitoral e de representação parlamentar, o culto da mobilização de massas e da via plebiscitária, a exaltação belicista, a idolatria do Estado e do poder (substituída entre nós pelo culto da "Nação" transcendental).

São diferenças que não podem ser ignoradas nem desvalorizadas. Mas, por um lado, algumas delas são assaz ilusórias, como é o caso da Constituição de 1933 (em muitos aspetos puramente "semântica") ou das eleições periódicas para Presidente da República e para a Assembleia Nacional, que eram pura ficção destinada a dar uma aparência de normalidade constitucional ao regime. E, por outro lado, bastarão essas diferenças para desqualificar as muitas afinidades acima referidas e para afastar o "Estado Novo" da família dos fascismos?

4. A leitura político-doutrinária do salazarismo como autocracia autoritária diferente do fascismo tornou-se obrigatória depois da II Guerra Mundial, com a Guerra Fria e a entrada de Portugal na NATO, quando para as potências ocidentais a luta contra o comunismo e a União Soviética era prioritária e valia bem o abandono de uma transição liberal-democrática das duas velhas ditaduras ibéricas.

A operação de diferenciação passava obviamente por duas vias: (i) optar por uma grelha de definição de fascismo tão estrita que o salazarismo a não preenchesse integralmente; (ii) sublinhar na caracterização do salazarismo os traços nacionais arcaicos de "tradicionalismo" e de "conservadorismo", simbolizados na trilogia "Deus, pátria e família".

Foi uma operação duradoura tão bem sucedida, que, hoje em dia, só a historiografia política de esquerda mantém a qualificação fascista do Estado Novo (apesar de ela constar no preâmbulo da Constituição vigente...). Razão tinha Eduardo Lourenço quando, logo em 1976, veio proclamar ironicamente que "o fascismo nunca existiu"!

O problema está em saber se basta a negação da qualificação fascista para mudar a verdadeira natureza do regime do "Estado Novo".

Adenda 
Se a colocação do Estado Novo fora do campo dos fascismos é pelo menos discutível, já a qualificação da Rússia atual como fascista, como defende o mesmo autor, não faz nenhum sentido. Como vários outros países de regime híbrido, a Rússia apresenta inequívocos traços autocráticos e autoritários, mais o nacionalismo, mas não apresenta as manifestações mais características do fascismo histórico, acima enunciadas. A banalização da noção de fascismo e de neofascismo não pode servir de arma no debate político-ideológico contemporâneo.

Adenda
Sobre o mesmo tema, vale a pena ler este artigo de Irene F. Pimentel.