domingo, 6 de novembro de 2022

Rasto no tempo: Jerónimo de Sousa

1. Jerónimo de Sousa, que agora deixa a liderança do PCP, aos 75 anos, conta-se seguramente entre os atores políticos nascidos com o 25 de Abril de 1974 que deixa um assinalável rasto da sua intervenção política no tempo que lhe coube (desde a Assembleia Constituinte de 1975-76). 

Por um lado, embora sem abandonar a linguagem marxista-leninista e continuando a prestar fidelidade verbal à utópica revolução comunista, a vir algures num futuro indefinido, Jerónimo de Sousa adotou um discurso e uma prática política inteiramente reformistas, dentro dos quadros da democracia constitucional e das instituições vigentes, focada sobre a defesa das "conquistas do 25 de Abril" e sobre reivindicações e lutas sociais concretas. 

O PCP assumiu-se explicitamente como "partido do regime", o que culminou com a viabilização do governo do PS em 2015 (Geringonça).

2. Por outro lado, mercê da sua serenidade política, a sua energia e empatia pessoal e o seu discurso popular, Jerónimo contribuiu muito para travar o ritmo de declínio político do seu partido, preservando a sua unidade (apesar das prováveis diferenças internas) e dando-lhe uma inesperada sobrevida ao longo das duas últimas décadas. 

Apesar das consideráveis perdas eleitorais e da correspondente redução do seu espaço político, o PCP manteve-se um caso singular de resistência à queda na irrelevância política que vitimou os demais partidos comunistas na Europa ocidental.

Adenda

Um leitor pergunta como eram as minhas relações pessoais com Jerónimo no tempo em que eu também fui membro do PCP. Conhecemo-nos na Assembleia Constituinte em 1975 e desde o princípio estabelecemos uma relação de mútua simpatia, apesar das diferenças pessoais e políticas (nunca fui "marxista-leninista"). Lamentou a minha dissidência e saída do Partido (1987-89), mas não "cortou relações" comigo, como outros. Nas raras vezes em que nos cruzámos ocasionalmente, nestas mais de três décadas, saudámo-nos amistosamente. Politicamente, penso que o PCP vai perder com a sua saída da liderança.

Adenda (2)
Um leitor argumenta que há «uma importante norma constitucional que o PCP não respeita: a da organização e funcionamento democrático do próprio partido». Tem razão, visto que o chamado princípio do "centralismo democrático", conforme à ortodoxia leninista, não comporta nenhuma disputa política dos cargos dirigentes, pois não existe liberdade de candidatura nem de escolha eleitoral entre alternativas (sendo a rejeição do tal "centralismo democrático" um ponto crucial na minha proposta de reforma do PCP aquando da minha dissidência). Mas, como é evidente, no texto acima eu referia-me somente à prática política externa do PCP.