1. Com a promulgação da nova lei-quadro das ordens profissionais, consuma-se uma etapa essencial na reforma da regulação das profissões "ordenadas", numa perspectiva menos corporativista e mais aberta ao escrutínio público, incluindo a participação de personalidades externas na respetiva supervisão e disciplina profissional e um mecanismo de queixa dos clientes dos referidos serviços contra falhas e abusos na sua prestação.
Mas para concluir esta reforma torna-se obviamente necessário proceder à adaptação das leis orgânicas de todas as ordens existentes e, depois, fazê-las implementar no terreno, sendo de esperar que, desta vez, nenhuma das ordens consiga obter importantes derrogações singulares da nova lei-quadro, como sucedeu em relação à lei que ainda está em vigor, aprovada em 2013, com a conivência do Governo e da maioria parlamentar da altura.
2. Mas, embora resolvendo alguns dos graves problemas da regulação profissional entre nós - nomeadamente o défice de supervisão e de disciplina, a pulsão malthusiana na restrição do acesso às profissões e a falha na proteção dos direitos dos clientes -, esta substancial revisão legislativa dos poderes e da organização das ordens profissionais não enfrenta outro dos grandes vícios do regime vigente, que é o âmbito excessivo dos chamados "atos próprios" de cada profissão, vedados a outros profissionais, que as principais ordens conseguiram alargar a atividades fora do núcleo duro das respetivas profissões.
Como restrições que são à liberdade de exercício profisssional de categorias profisssionais confinantes, os exclusivos profissionais têm de limitar-se ao minimo necessário, o que manifestamente não acontece desigadamente no que respeita aos advogados e aos médicos.
Ora, enquanto se mantiverem esses amplos monopólios profissionais, mantém-se plenamente válida a crítica da OCDE e da Comissão Europeia contra a indevida restrição à concorrência na prestação de serviços profissionais entre nós. Por isso, impõe-se aproveitar a reforma das ordens profissionais para rever também tais exclusivos profissionais.
3. Acresce que nenhuma reforma legislativa vingará, se não houver uma mudança de atitude política quer da AR, quanto à contenção na criação de novas ordens sem nenhuma justificação, quer do Governo, no que respeita aos seus poderes de tutela sobre os abusos das ordens.
Por um lado, não se compreende que as ordens profissionais - que representam um casamento "contra natura" entre associações profissionais e regulação pública, com as contradições inerentes - tenham proliferado entre nós desde a implantação da democracia liberal (que convive mal com associações obrigatórias e com a representação oficial de interesses profissionais) e da economia de mercado (que assenta na liberdade e na concorrência profissional). Por outro lado, não se percebe como é que, ao longo destes anos todos, apesar da evidência generalizada das omissões e dos abusos das ordens profissionais (que fui denunciando neste blogue), os sucessivos Governos só tenham visto motivo para abrir uma inspeção a uma delas num único caso (à Ordem dos Enfermeiros).
A continuar esta "captura" estrutural do Estado pelas corporações profissionais, nenhuma reforma legislativa nos vale, por mais bem-intencionada que se apresente à partida.