terça-feira, 21 de março de 2023

Um pouco mais de jornalismo, sff (20): Uma acusação infundada

1. O Diário de Notícias acusa hoje o Presidente do Tribunal Constitucional, que acaba de terminar o seu mandato mas não foi substituído até à data, de se «recusar sair pelo próprio pé», como se ele tivesse uma obrigação de sair e estivesse indevidamente agarrado ao lugar, juntando-se assim a dois outros juízes que já terminaram o seu mandato há muito mais tempo e também não foram atempadamente substituídos.

Trata-se, porém, de uma acusação totalmente infundada, baseada num manifesto erro de análise, que põe em causa injustificadamente a honorabilidade pessoal e cívica do Presidente e dos demais juízes.

2. Com efeito, ao abrigo de um princípio constitucional aplicável aos titulares de cargos públicos em geral, a começar pelo Presidente da República, os juízes do Tribunal Constitucional, chegados ao fim do seu mandato sem serem devidamente substituídos, não só não têm de deixar os cargos, como têm, pelo contrário, a obrigação institucional de se manterem no exercício de funções, em prorrogação do mandato, até serem efetivamente substituídos. Trata-se, obviamente, de não afetar o funcionamento regular do Tribunal. 

Sucede, aliás, que no caso específico dos juízes do Tribunal Constitucional, tal princípio está explicitamente consagrado num preceito legal, segundo o qual eles «cessam funções com a posse do juiz designado para ocupar o respetivo lugar» (art. 21º da Lei do TC), não podendo, portanto, abandonar o cargo antes disso, por sua livre decisão. Por isso, nessas situações, a renúncia, embora possível, deve ser uma ocorrência excecional, por indisponibilidade, mas não por capricho, pessoal.

Ora, embora o Presidente do TC tenha invocado explicitamente esse preceito legal, que o jornalista transcreve, este preferiu ignorá-lo, apesar de ele destruir todo o seu "caso".

3.  A lamentável conclusão a retirar deste episódio é que estes "passos em falso" podem ocorrer mesmo em "jornais de referência", quando o zelo e a isenção jornalística entram em pausa, cedendo à fácil tentação jornalística de "arrasar" um membro proemiente da "elite do poder".

Não é costume os titulares de cargos públicos recorrerem ao direito de resposta, aliás constitucionalmente protegido, mesmo quando ele se justifica, como seria manifestamente o caso. Mas não ficaria mal a um jornal com os pergaminhos do DN, voltar ao caso e corrigir oficiosamente o erro e a ofensa

[Texto pontualmente revisto]

Adenda
Um leitor argumenta que, se os juízes que estão em prorrogação do mandato renunciassem, libertar-se-iam da obrigação de continuarem em funções e forçariam o preenchimento das vagas. Duvido que isso servisse de alguma coisa, salvo libertá-los de encargos e criar dificuldades ao funcionamento do Tribunal, o que não se afigura intitucionalmente muito responsável por parte dos seus juízes, em especial do Presidente.

Adenda
Outro leitor diz ter lido que os juízes do TC querem continuar em funções para além do termo do seu mandato, para assim «obterem o direito a aposentarem-se com uma pensão igual à sua elevada remuneração». Sim, essa acusação contra a prorrogação dos mandatos já foi veiculada em alguns jornais, mas não passa de uma atoarda, sem nenhum fundamento. Como mostrei AQUI, o direito a pedir a aposentação com tal pensão "majorada" - regalia de que, aliás, discordo - obtém-se com a simples conclusão do mandato, sem necessidade de nenhum prologamento, pelos que os juízes que ficam em prorrogação, continuando em funções, apenas adiam o momento de a requererem, sem nenhuma vantagem adicional.