quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

O que o Presidente não deve fazer (42): Instrumentalização do poder de veto

1. Depois de ter suscitado a fiscalização preventiva da constitucionalidade da lei-quadro da reforma das ordens profissionais - que o Tribunal Constitucional, porém, veio convalidar, sem problemas -, o PR decidiu entrar agora numa verdadeira caça aos estatutos de cada uma das muitas ordens, vetando políticamente grande parte deles, incluindo os das mais importantes, como a dos advogados e a dos médicos.

Sucede que, tal como na contestação preventiva da constitucionalidade da lei-quadro, o PR fundamenta ostensivamente os sucessivos vetos com recurso às objeções das próprias ordens, cujos bastonários fez questão de ouvir antes de decidir (mas não ouvindo a Autoridade da Concorrência, principal inspiradora da reforma). 

Provavelmente, para além da banalização daquilo que deveria ser excecional (por efeito da separação de poderes), não há precedente entre nós de um caso de lobbying político tão bem-sucedido como este das corporações profissionais, em que o decisor político faz suas por inteiro as posições destas.

2. Ora,  depois de ter promulgado a lei-quadro - de que os estatutos de cada ordem são pouco mais do que uma concretização -, não se vê como é que o PR pode apostar convincentemente nos mesmos argumentos, ou afins.

De facto, os fundamentos mais relevantes dos vetos, ou põem em causa a própria razão-de-ser política, liberalizadora e pró-conconrrencial, da reforma (como é o caso das objeções relativas à duração dos estágios ou aos "atos exclusivos" de cada profissão) ou recuperam o argumento de um suposto direito à "autorregulação" das ordens, que o Tribunal Cosntitucional se encarregou de denegar.

Além de baseado em argumentos inconsistentes, o recurso maciço ao veto das leis da AR também é politicamente inconsequente, pois não pode duvidar-se de que a mesma maioria parlamentar que aprovou a referida legislação a vai confirmar de plano, sem qualquer reconsideração, antes da dissolução da AR, obrigando o PR a promulgá-la, assim  completando a reforma, quanto mais não seja porque sem ela ficaria em causa o desembolso do PRR da UE. 

Por isso, para além de uma enventual "vingança" da desfeita sofrida quanto à lei-quadro, a que justifica então este insólito massacre legislativo de Belém?

3. Inventariadas as possíveis explicações para este "frete" político às corporações profissionais, vejo três hipóteses, aliás cumulativas: (i) dar às ordens mais umas semanas de "justa luta" pública contra a revisão; (ii) reivindicar para o Presidente o prémio de melhor e mais persistente "amigo das ordens", na  luta destas pela defesa dos seus privilégios corporativos, postos em causa pela reforma; (iii) alimentar a esperança das ordens numa futura revisão/reversão da reforma, caso haja mudança de maioria parlamentar nas próximas eleições.

Resta saber se tais motivações bastam para justificar a abrangente ofensiva presidencial contra o poder legislativo da AR, numa imprescindível reforma estrutural do mercado de serviços profissionais entre nós (ainda que assaz moderada), ou se não estamos perante um caso qualificado de "desvio do poder" presidencial, instrumentalizando o poder de veto para fins alheios à sua justificação constitucional.