quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Não concordo (52): Abandono de cargo público

1. Discordo desta decisão de um juiz (e vice-presidente) do Tribunal Constitucional, cujo mandato terminou em julho, de "renunciar ao mandato", a fim de deixar o exercício do cargo, antes de ser devidamente substituído.

Em primeiro lugar, a lei estabelece explicitamente que os juízes do TC só «cessam funções com a posse do juiz designado para ocupar o respetivo lugar», e não exceciona o caso de renúncia (de resto, não faz sentido renunciar a um mandato que já terminou, estando em "prorrogação"). Aliás, defendo há muito que a prorogatio de cargos públicos constitui um princípio constitucional geral e não apenas uma obrigação legal pontual, quando expressamente estabelecida, como é o caso.

Em segundo lugar, sempre entendi que, por uma questão de responsabilidade republicana, quem aceita um cargo público de duração temporária, deve estar preparado para continuar no exercício de funções para além do termo do mandato, enquanto não for substituído.

2. Acresce que, por propósito político deliberado desde a sua origem na revisão constitucional de 1982 (eu estive lá!), no sentido de fundamentar a legitimidade democrática do Tribunal Constitucional, a sua composição dá expressão equilibrada às principais correntes ou "sensibilidades" constitucionais, que podem divergir na interpretação do texto constitucional e gerar decisões por maioria tangencial em litígios constitucionais mais sensíveis político-doutrinariamente.

Por isso, ao deixar o cargo antes de ser substituído por um juiz da mesma sensibilidade constitucional, o referido juiz abre uma vaga no Tribunal que pode causar um desequilíbrio no statu quo quanto a esse aspeto crucial do funcionamento do colégio de juízes, podendo originar inoportunas tensões internas e indesejáveis acusações externas quanto à autoridade pública das suas decisões.

Adenda
Um leitor discorda dessa obrigação, que equipara a «trabalho forçado», mas não tem razão, pois: (i) ninguém é obrigado a aceitar cargos públicos; (ii) quem aceita exercê-los, aceita as condições legais do seu exercício, incluindo a prorrogação até à substituição; (iii) pelo que a cessação de atividade antes disso constitui violação da obrigação livremente assumida.

Adenda 2
Em sentido inverso, outro leitor defende que quem abandona ilicitamente o exercício de um cargo público, deveria «ficar impedido de desempenhar qualquer outro durante um período prolongado de tempo, por motivo de irresponsabilidade cívica». Concordando com o argumento, entendo que uma tal solução carece de credencial constitucional -, o que não é o caso.

Adenda 3
O mesmo leitor, em resposta, pergunta se o caso «não configura o crime de abandono de funções previsto e punido no Código Penal» (art. 385º). Entendo que não: mesmo que a noção de "funcionário" da lei penal pudesse compreender os titulares de cargos públicos, o referido tipo penal exige a «intenção de impedir ou de interromper o serviço público», o que não é manifestamente o caso. Resta a responsabilidade disciplinar e a censura pública.

Adenda 4
Uma leitora observa que o encargo de continuar em funções para além do termo do mandato, sem limite de tempo, «pode tornar-se excessivo, pela insegurança que cria, inibindo muitos candidatos de aceitarem o lugar». Tem razão: se perdurarem e se multiplicarem os impasses na AR quanto à designação de novos titulares deste e de outros cargos públicos, há que equacionar uma solução razoável.

sábado, 20 de setembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (19): Obviamente excluído à partida

1. Para excluir à partida o voto de qualquer cidadão minimamente sensato no líder do Chega nas eleições presidenciais - a que acabou por candidatar-se, alegadamente a contragosto - não é preciso sequer invocar as suas ideias caraterizadamente nacionalistas e reacionárias, nem o seu desprezo pelas instituições e pelo regime democrático-constitucional, nem o seu estilo arrogante, mentiroso, sectário e provocador. 

Na verdade, basta, em primeiro lugar, o facto de se candidatar à presidência enquanto líder partidário, sem sequer suspender o seu mandato - ao arrepio da natureza apartidária das candidaturas presidenciais e da magistratura presidencial (como tenho sublinhado, por exemplo AQUI e AQUI ) - e, em segundo lugar, a sua conceção autoritária do mandato presidencial, à margem da Constituição, com manifesto desprezo da separação de poderes e da autonomia do Governo na condução da política nacional, como tem sido observado (por exemplo, AQUI).

2. Sem excluir de todo em todo a hipótese de ele poder chegar à 2ª volta, dada a multiplicidade de candidaturas - nenhuma delas com destacado ascendente à partida -, não creio que haja sério risco de ele vir a ser eleito.

Com efeito, não se afigura provável que ele pudesse ir muito além do eleitorado do Chega, dada a sua elevada taxa de rejeição pessoal no restante eleitorado, sendo de esperar que, naquela hipótese, houvesse concentração de votos no outro candidato que chegasse à 2ª volta, qualquer que ele fosse, como sucedeu em França em 2002 na eleição de Chirac contra Le Pen.

Na verdade, embora o PR não tenha em Portugal os poderes do Presidente francês, nada garante (pelo contrário!) que ele respeitasse os limites constitucionais, o que seria tanto mais grave quanto é certo que entre nós o PR não é politicamente responsável no exercício do seu mandato, por mais arbitrário que seja o seu desempenho, nem os seus atos são suscetíveis de fiscalização judicial, por mais atentatórios da Constituição que sejam, pelo que ele constituiria um gravíssimo perigo para o regime democrático-constitucional.

3. A CRP pressupõe um Presidente naturalmente disposto a respeitar, por convicção e responsabilidade republicana, a Constituição e os limites dos seus poderes, sem necessidade de garantias, não tendo os constituintes de 1976 configurado a hipótese de um inquilino de Belém nos antípodas desse modelo.

Sendo evidente, porém, o propósito explícito de chefe do Chega de estoirar com o sistema constitucional, o que faria aplicadamente se lá entrasse, constitui obrigação de todas as forças políticas do "arco constitucional" e de todos os cidadãos que se identificam com elas de fechar bem a porta à sua voracidade destrutiva.

Adenda
Um leitor argumenta que o PR «pode ser julgado por crimes praticados no exercício de funções», sendo destituído em caso de condenação. É verdade, mas para rebentar com o sistema constitucional não seria  preciso cometer nenhum crime, bastando bombas políticas, como, por exemplo, não promulgar leis, usando o "veto de gaveta", nomear um Governo sem apoio parlamentar e, depois de rejeitado na AR, mantê-lo em funções de gestão indefinidamente, demitir o Governo e dissolver a AR por capricho, etc.
Como a Constituição não tem salvaguardas contra candidatos a ditador em Belém, o único seguro de vida do regime constitucional é não os deixar lá entrar.

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Corporativismo (60): Abuso de poder

1. Como se pode ver no seu website, a Ordem dos Psicólogos veio pronunciar-se sobre a proposta de reforma laboral do Governo, criticando várias soluções e avançando com propostas de correção, como se fora um sindicato.

Ora, as questões laborais não são da competência das ordens profissionais, que não representam nem trabalhadores nem entidades patronais, e cujas atribuições oficiais consistem somente na representação oficial da profissão, independentemente da condição laboral dos profissionais, e na supervisão e disciplina do seu exercício.

Na verdade, ao contrário das entidades privadas, as ordens profissionais, como entidades públicas que são, só têm as atribuições e os poderes conferidos por lei.

2. Infelizmente, a OP não é a primeira ordem a extravazar das suas missões estatutárias, havendo vários precedentes de outras no mesmo sentido. Mas, além de dever desconsiderar estas intervenções fora do seu mandato legislativo, a tutela governamental devia advertir explicitamente a OP e as demais sobre os limites da sua ação.

É tempo de o Governo, nas suas funções de tutela, e a AR, na sua missão de escrutínio parlamentar da administração pública, deixarem de continuar a tolerar condescendentemente estes abusos das ordens profissionais, que nem por serem recorrentes se podem tornar desculpáveis.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Quando os tribunais erram (4): Desvalorizar os ataques à integridade moral

1. A condenação penal dos "negacionistas" das vacinas por injúrias pessoais a Ferro Rodrigues (nessa altura, presidente da AR) e a Gouveia e Melo (nessa altura, comissário para a campanha anti-Covid) tem um aspeto positivo e outro assaz negativo, que esvazia o primeiro.

O primeiro consiste em que essa condenação judicial, por acusação do Ministério Público, mostra que, rejeitando as conceções absolutistas da liberdade de expressão contra os titulares de cargos políticos, esta tem como limite a integridade moral dos visados, pelo que os ataques pessoais à sua honra não podem gozar de imunidade penal, só por se tratar de políticos. O aspeto negativo está na manifesta leniência da pena aplicada (multas de muito baixo montante), o que, além de nem servir de dissuasor de crimes semelhantes, revela que, no entender do tribunal, embora a honra dos visados mereça proteção penal, ela não vale muito, pelo que se justifica uma boa atenuante quanto à sanção.

Não sendo imunidade, fica lá perto: os grupos radicais não têm razão para se preocupar com esta sentença.

2.  Ora, justamente por causa do agravamento do extremismo agressivo, é tempo de a justiça penal passar a dar o peso devido a dois aspetos que têm vindo a ser indevidamente secundarizados.

Em 1º lugar, a integridade moral das pessoas não é menos valiosa nem é menos digna de proteção do que a sua integridade física - bastando para isso ler a Constituição -, pelo que não pode comprender-se que um grave insulto ao presidente da AR, que é a 2ª figura no protocolo do Estado, seja menos grave do que puxar os cabelos a uma agente da PSP (crime que no caso foi punido com pena de prisão, embora suspensa). 

Em 2º lugar, caso sejam alvo de ataques à sua honra pessoal, os titulares de cargos públicos não merecem menos proteção, só por o serem, como parece resultar desta sentença. Pelo contrário, o facto de serem titulares de cargos públicos deveria constituir uma agravante, porque as injúrias públicas contra eles também lesam a autoridade e o respeito pela democracia representativa de que elas são servidores.

É também a honra da República que fica lesada.

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Rasto no tempo (4): 50 anos depois

1. Segundo esta notícia, que entretanto confirmei, conto-me entre um pequeno grupo de cidadãos portugueses a serem homenageados, junto com muitos angolanos, pelo presidente da República de Angola, no final deste mês, pela sua contribuição para a independência do País, há 50 anos.

Apesar de as minhas conhecidas objeções pessoais a distinções honoríficas me impedirem de receber a condecoração, não quero deixar de dizer que me sinto muito grato e feliz por esta lembrança da minha pequena contribuição para essa efeméride histórica na vida do jovem País, seguramente bem modesta, quando comparada com a dos demais portugueses distinguidos (todos infelizmente já falecidos), cuja homenagem póstuma por parte de Luanda considero inteiramente merecida

2. A independência de Angola, nas condições difíceis em que se concretizou, em 1975, sob a égide do MPLA, também foi uma causa de muitos portugueses, entre os quais me conto. Orgulho-me disso!

Parabéns Angola e longa vida, em paz e prosperidade!

Adenda
Minha resposta a uma senhora que, no Linkedin (onde publiquei um excerto deste post), me acusou de ter apoiado a «humilhante descolonização» de Angola: «"Humilhante" e estúpida foi a opção da ditadura - que a Senhora parece apoiar - por uma querra colonial de 12 anos, que vitimou tanta gente (africanos e portugueses), isolou internacionalmente o país e tornou inevitável o traumático desenlace de 1975, em vez de uma aposta numa transição suave e pacífica para a independência, como fizeram atempadamente outras potências coloniais (salvo a França na Argélia, com os mesmos resultados trágicos)».

terça-feira, 16 de setembro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (58): Insistir no erro

1. Insistindo na sua veste de comentador político, Marcelo Rebelo de Sousa anuncia ir fazer proximamente um juízo público sobre a Ministra da Saúde

Ora, num Estado constitucional os órgãos do poder político só tem os poderes enunciados na Constituição, e entre os poderes do Presidente não consta o de comentar nem de avaliar publicamente o desempenho político do Governo ou dos seus membros (salvo para justificar o eventual recurso a um dos seus poderes extremos, como seria a dissolução da AR ou a demissão do próprio Governo, o que não é seguramente o caso).

O Presidente não é eleito como comentador-mor da República.

2. Como tenho escrito repetidamente, o Governo não depende da confiança política do PR nem está sujeito à sua tutela política, pelo que a avaliação política da sua atividade só cabe aos partidos da oposição (na AR e fora dela), aos comentadores e aos cidadãos e grupos da sociedade civil. O PR não se encontra em Belém em nenhuma dessas capacidades. Como cidadão crítico, protesto contra esta "concorrência desleal" de Belém.

É pena que até o fim do seu mandato, daqui a poucos meses, MRS não se tenha dado conta de que estas incursões em seara alheia não atentam somente contra a Constituição - que jurou cumprir e fazer cumprir -, mas também que a sua banalização lhes retira eficácia e degrada a imagem do próprio Presidente, pondo em causa a integridade do cargo e expondo a sua impotência .

Adenda
Uma leitora pergunta se, «no caso de chegar a um juízo muito negativo sobre a Ministra, MRS virá defender a demissão dela, como fez quanto ao ministro Galamba, no último Governo PS». Creio que a questão não se vai colocar, porque a condição posta - o "mau juízo" presidencial sobre a ministra - não se vai verificar. Amigo não ataca amigo... 

Adenda 2
Um leitor pergunta se o Presidente "não pode formar uma opinião negativa sobre um ministro". Pode,  sem dúvida, e também pode transmiti-la ao PM, nos seus encontros semanais em Belém, mas não deve exprimi-la em público, condicionando o chefe do Governo na sua liberdade de formar e gerir a sua equipa governativa, assumindo a responsabilidade política pelo seu desempenho, que só a ele cabe. O PR não é um "treinador de bancada".

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Aplauso (41): Pela valorização das assembleias municipais

1. Tendo eu defendido há pouco tempo (AQUI), a reforma do sistema de governo municipal - passando as câmaras municipais a ser eleitas pelas assembleias municipais (salvo o presidente, que seria o primeiro nome da lista mais votada para o parlamento municipal) e a serem politicamente responsáveis perante elas -, apraz-me saber que essa ideia é perfilhada pelo líder do PS, que a vai propor como parte de uma reforma mais ampla do poder local.

Só é de esperar que esta proposta venha a colher o amplo apoio partidário necessário na AR (maioria de 2/3), para ver finalmente o afastamento de uma das soluções politicamente mais desequilibradas do regime constitucional originário do poder local - de que as assembleias muncipais foram a principal vítima -, que a revisão constitucional de 1997 veio permitir corrigir, mas que inércia política e legislativa deixou arrastar até ao presente.

2. Não tem razão o jornalista que assina a referida notícia no Expresso, quando diz que essa reforma visa «retirar a oposição dos executivos municipais, tornando-os politicamente monocolores». Se a primeira parte é verdadeira - pois o lugar da oposição é obviamente na assembleia municipal, onde deve gozar dos meios apropriados para isso, que hoje são insuficientes -, já assim não sucede com a 2ª parte, sobre executivos politicamente «monocolores»

Na verdade, isso só será assim, se o partido vencedor tiver maioria absoluta no parlamento municipal, pois, na falta dela, terá de procurar o apoio de outro(s) partido(s), através de acordos de coligação governativa, ou, pelo menos, de apoio político na AM. Ora, com a crescente fragmentação da representação política, também ao nível local (que as candidaturas independentes aumentam), as situações de maioria absoluta tenderão a diminuir, obrigando a procurar soluções de governo municipal negociadas às claras com outros partidos (em vez dos atuais expedientes de "compra" de vereadores da oposição...). 

Com o que ganha a democracia local e, em especial, as assembleias municipais.

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (18): Nem no Estado Novo!

1. O candidato presidencial Cotrim de Figueiredo, oriundo da IL, veio defender o introdução de veto legislativo absoluto do PR - portanto, sem possibilidade de ser superado pela AR por maioria qualificada, como hoje sucede -, em relação a certas leis, que não especificou. 

Seja como for, trata-se de uma ideia peregrina, absolutamente inadmissivel. Na nossa história constitucional desde 1822, que compreende seis constituições, só havia veto absoluto na Carta Constitucional, mas aí o rei era cotitular do poder legislativo, através da sanção régia. Nenhuma outra Constituição adotou essa ideia autoritária, que afronta o princípio essencial do constitucionalismo, que é a separação de poderes e a soberania legislativa do parlamento. 

Nem a Constituição autoritária, antidemocrática e antiparlamentar do Estado Novo ia por aí!

2.  Tal como nas eleições legislativas, também nas eleições parlamentares é mais fácil saber em que não votamos do que em quem votamos no final. 

Com esta insólita proposta de impensável retrocesso constitucional -  que, além de uma lamentável incultura constitucional, revela um inadmissível projeto de autoritarismo presidencial, aliás indigno de um liberal-democrata -, Cotrim de Figueiredo merece ser riscado à partida na disputa presidencial de janeiro do ano que vem. Menos um - RIP...

Ditadores legislativos em Belém, não - definitivamente!