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segunda-feira, 11 de março de 2024

Eleiçoes parlamentares 2024 (37): Uma questão em aberto

1. Mesmo antes do apuramento final dos resultados (neste momento estão por apurar  os círculos do exterior, que elegem 4 deputados), tanto Montenegro como Pedro Nuno Santos deram como certa a vitória eleitoral da AD e a formação de governo pelo PSD. Ora, se a primeira parece assegurada, dada a vantagem existente, já não há certeza sobre se o PSD terá mais deputados do que o PS, dado o igual número neste momento existente (descontados os dois deputados do CDS no total da AD) e o número de mandatos ainda em aberto.

Sucede que as coligações eleitorais se extinguem com o apuramento dos resultados eleitorais, que os mandatos parlamentares são atribuídos aos partidos, e não às coligações, e que - mesmo que os deputados do PSD e do CDS se viessem a juntar num único grupo parlamentar (o que nunca aconteceu) -, quem é convidado a formar os governos são os partidos - como expliquei AQUI já em 2015 -, pelo que, se o PS viesse a ser o maior partido parlamentar, deveria ser ele a ser chamado a formar Governo em primeiro lugar

2. Aparentemente, porém, PNS não equaciona tal hipótese e, mesmo que ela que se viesse a verificar, tudo indica que preferiria não formar Governo, porque este seria, quase de certeza, chumbado pela direita reunida e, na falta de alternativa parlamentar, correria o risco de ficar como governo de gestão durante mais de seis meses, sem condições de governabilidade, até serem possíveis novas eleições. 

É uma hipótese decididamente pouco atraente para o líder socialista, mais interessado em liderar a oposição a um frágil governo da AD, eventualmente "aditivado" pela IL, mas politicamente dependente do Chega. Em todo o caso, ao assumir a derrota no encerramento da jornada eleitoral de ontem, PNS renunciou antecipadamente a tal solução, mesmo que o PS venha a ter mais mandatos do que o PSD.

Adenda
Não faz sentido considerar a AD na distribuição dos mandatos parlamentares, como o Observador faz (e também o Público e o Expresso), por duas razões: (i) como coligação eleitoral, a AD terminou ontem: (ii) os mandatos parlamentares são atribuídos aos partidos, e não às coligações. Portanto, em vez de atribuir 79 deputados à AD, o correto é atribuir 77 à PSD (empate com o PS) e 2 ao CDS. De resto, optando por apresentar as coligações, deveriam separar a AD, que não concorreu na Madeira, da coligação PSD-CDS, sem o PPM, que concorreu no Funchal. Um pouco mais de rigor jornalístico, sff!

Adenda 2
Um leitor observa que a AD nem sequer ganhou as eleições, se descontarmos os votos da Madeira, onde a AD não concorreu, sendo substituída por uma coligação PSD-CDS, pelo que «os seus votos e os deputados têm de ser contabilizados separadamente, e não somados aos da AD». Tudo somado, «neste momento, sem contar os votos da emigração, a AD não ganhou as eleições, por ter menos votos e menos deputados do que o PS a nível nacional». É verdade que nos resultados oficiais das eleições, os votos da AD vão aparecer separados dos da coligação PSD-CDS na Madeira, por se tratar de duas candidaturas diferentes, não somente quanto ao nome mas também quanto à sua composição.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

O que o Presidente não deve fazer (38): Um pernicioso equívoco

1. Este artigo, de pretensa legitimação do atual intervencionismo governativo do PR, constitui um exemplo claro dos equívocos a que pode conduzir uma leitura pouco cuidada do sistema de governo português numa chave "semipresidencialista" (que analisei e critiquei devidamente AQUI). Sucede que num Estado de direito constitucional, como o nosso, os poderes do PR são os definidos na Constituição (poder de nomeação de certos cargos públicos, poder de veto legislativo, poder de dissolução parlamentar, etc.), e não os que decorrem de um pré-conceito político sem base constitucional.

Ora, como tenho escrito muitas vezes, ao criticar os abusos de poder do PR, muitos sem precedentes entre nós, há duas coisas incontroversas à face da CRP (desde a revisão constitucional de 1982): (i) é ao Governo, sob direção do PM, que cabe a função governativa, sem nenhuma sujeição a orientações presidenciais; (ii) o Governo não é politicamente responsável perante o PR, pelo que não pode ser demitido por este por divergência política, mas somente perante a AR (e, naturalmente, perante a oposição e a opinião pública). 

Nenhuma pré-compreensão do sistema de governo pode prevalecer sobre estas duas regras constitucionais fundamentais.

2. Daqui decorre que não existe nenhum poder de superintendência nem de tutela política de Belém sobre São Bento, nem expresso nem implícito, pelo que não têm cabimento as incursões presidenciais que tenho apontado na esfera governativa, quer na definição presidencial de orientações para o Governo, quer na censura sobre os atos ou omissões governativas (salvo quando ponham em causa o "regular funcionamento das instituições", que cabe ao PR assegurar). A sobreposição e a confusão de poderes arrastam a indefinição da repartição de responsabilidades, que pode ser fatal ao funcionamento do sistema político.

O PR tem o poder de fiscalizar a observância das regras constitucionais e das obrigações institucionais do Governo, não a de definir ou de controlar as políticas governativas. A separação de poderes, esteio fundamental do moderno constitucionalismo, ainda conta.

Adenda
Um leitor objeta que a caracterização do nosso regime político como "semipresidencialismo" se generalizou desde 1976, pelo que considera «praticamente impossível abandoná-la». Já foi uma tese mais sufragada do que hoje, pelo menos entre os constitucionalistas, onde nunca foi pacífica, desde a revisão constitucional de 1982, como mostro no meu estudo acima referido. Acresce que uma coisa é usar essa controversa noção para qualificar, sem o devido rigor, o sistema de governo, outra é utilizá-la para defender poderes presidenciais sem base constitucional. Em vez de partir das soluções constitucionais para chegar à qualificação mais apropriada, parte-se de uma certa qualificação, apesar de, no mínimo, litigiosa, para dela deduzir soluções constitucionalmente inconsistentes. Chama-se a isso "conceitualismo", no seu pior... 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Um pouco mais de rigor sff (71): Hipótese absurda

1. Tomada à letra, a manchete de hoje do Público é um enganador contrassenso, pois é geralmente sabido, contra o que nela se lê, que nenhum veto político presidencial resiste a uma maioria parlamentar de 2/3, bastando em geral a maioria absoluta.

Lendo a notícia subsequente, vê-se que o jornal se refere a um eventual "veto por inconstitucionalidade", que é coisa bem distinta, sendo a recusa de publicação obrigatória para o PR, caso o Tribunal Constitucional se tenha pronunciado pela inconstitucionalidade de um diploma em "fiscalização preventiva". Mas é evidente que nesse caso, a hipótese de reaprovação parlamentar do diploma vetado por inconstitucionalidade não está, nem poderia estar politicamente em cima da mesa.

2. Tal nunca sucedeu, e compreende-se bem porquê: (i) porque não se vê como é que se poderia reunir 2/3 de deputados, mesmo entre os que tenham votado a lei, para desafiar o juízo de inconstitucionalidade do TC; (ii) porque, mesmo que, por absurdo, tal decisão viesse a ser adotada, o PR seguramente não promulgaria o diploma, como guardião da Constituição que deve ser; (iii) porque, mesmo que o diploma viesse a ser promulgado, por deslealdade constitucional de Belém, ele continuaria a ser inconstitucional, podendo ser judicialmente impugnado ato contínuo, não chegando a ser aplicado.

Resta saber porque é que se fazem manchetes jornalísticas em "jornais de referência" com hipóteses politicamente absurdas.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Não concordo (27): Sobre o veto presidencial da despenalização da eutanásia

1. Embora lamentando o veto presidencial do novo diploma da despenalização da morte medicamente assistida (abreviadamente conhecida como eutanásia), não consigo acompanhar os protestos contra ele. Na verdade, ainda que se possa discutir se as razões invocadas pelo PR (aliás, nem todas pertinentes) bastam para justificar o veto legislativo, ele tem, porém, razão quanto à inconsistência conceptual do diploma

De facto, apesar de o art. 2º conter supostamente a definição das noções depois utilizadas, assim não sucede, todavia. O preceito-chave do diploma, que é o art. 3º, despenaliza a morte medicamente assistida, a pedido do interessado quando «em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença incurável e fatal» [negrito acrescentado]. Ora, o conceito de "doença incurável e fatal" não consta do art. 2º  (que define o conceito de "doença grave ou incurável", o que não é a mesma coisa). Acima de tudo, não faz sentido na intenção do diploma o requisito de "doença fatal", quando tal não se requere no caso de "lesão definitiva de gravidade extrema"; de resto, no nº 3 do mesmo artigo já se prescinde do requisito da "doença fatal". Em que ficamos?

Não dá para entender esta falha de rigor num diploma destes, já em segunda edição.

2. É certo que estas incongruências conceptuais poderiam não resistir a uma cuidada tarefa de interpretação jurídica e judiciária, pelo que o PR as utilizou como pretexto para um veto político, de fundo claramente ideológico, indo ao encontro da direita mais conservadora e travando a despenalização da eutanásia durante mais algum tempo.

Mas não deixa de ser igualmente evidente que os deputados que reformularam o diploma depois do juízo de inconstitucionalidade do TC deveriam saber que não podiam deixar margem ou pretexto a Belém para se prevalecer ostentatoriamente do poder de veto (que o atual Presidente tem exercido de forma assaz discricionária). Pouco cuidadosos foram e só de si mesmos se podem queixar.

Adenda
Um leitor pergunta o que vai a AR fazer do veto. Embora teoricamente o parlamento pudesse superar o veto, confirmando a lei por maioria absoluta, entendo que, dadas as razões do veto, se impõe a correção do diploma, aprovando uma terceira versão. Tudo depende evidentemente de se manter uma maioria favorável às despenalização da eutanásia no próximo parlamento -, o que nada faz temer que não aconteça.

Adenda 2
Saúde-se a reação da bancada parlamentar do PS, a dar a mão à palmatória presidencial.

Adenda 3 (1/12)
No seu editorial do Público de hoje, Manuel Carvalho destaca no veto a "astúcia" do PR; eu preferiria destacar a imperdoável incúria dos deputados.

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Um pouco mais de rigor (70): Narrativa infundada

1. Variados comentadores, incluindo Marques Mendes, erigiram a suposta promessa de uma nova maternidade em Coimbra, que António Costa teria feito numa sessão de campanha eleitoral nessa cidade, em caso exemplar de abuso de promessas eleitorais pelo Governo nas eleiçoes autárquicas. Mas é um mau exemplo.

Sucede, de facto, que a construção da nova maternidade - que visa substituir as duas existentes na cidade - está decidida há muito pelo Governo e só não tem avançado por divergência, que se mantém pelo menos há três anos,  entre o Ministério da Saúde e a Câmara Municipal de Coimbra quanto à sua localização. O que Costa fez na referida sessão pública foi instar Machado, na perspetiva da sua reeleição, a superar essa divergência rapidamente, para a obra poder ser concretizada.

É de supor, aliás, que os demais investimentos públicos que o líder do PS tem referido noutros lugares também já estão previstos, nomeadamente no PRR nacional. Nem se compreenderia que o líder do partido de Governo andasse a prometer ad hoc novos investimentos públicos sem financiamento assegurado. 

A realidade não corresponde, portanto, à narrativa dos apressados comentadores políticos. 

2. A Comissão Nacional de Eleições resolveu contribuir para essa narrativa, ao aprovar uma "advertência" contra o o líder do PS (que é também primeiro-ministro) por estar alegadamente a pôr em causa a "neutralidade" dos órgãos do Estado nas disputas eleitorais, prescindindo, porém, de citar exemplos (estranhamente, a CNE não publica, como devia, as suas decisões no seu site).

Ora, não consta que alguma das intervenções de António Costa na campanha eleitoral tenha sido feita na capacidade de chefe do Governo ou que as deslocações tenham sido efetudas com meios do Estado, e seria totalmente despropositado e ilegítimo que o líder do PS, enquanto tal, visse diminuída a sua capacidade de intervenção na campanha eleitoral e de defesa das cores do seu partido, pelo facto de ser o primeiro-ministro.

Por um lado, nas eleições locais não se joga somente o ranking dos partidos políticos no poder local, visto que elas têm sempre uma leitura nacional em relação ao Governo em funções (dois governos demitiram-se em consequência de eleições locais). Por outro lado, como já aqui escrevi, AC tem toda a legitimidade para alertar os atuais candidatos ao poder local, nomeadamente os socialistas, para os novos poderes e os novos desafios que vão ter no próximo mandato, em virtude, respetivamente, da lei da descentralização e do PRR.

Em suma, a CNE não tem razão e interferiu indevidamente na campanha eleitoral, desrespeitando, ela sim, o dever qualificado de imparcialidade que se lhe impõe em relação às forças políticas em disputa nas eleições...

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Regionalização (4): Um pouco mais de rigor, sff

 

1. Como mostra a imagem junta, o Jornal de Notícias vai promovar mais um debate político sobre a descentralização territorial, especialmente centrado sobre a regionalização. No entanto, todo o programa está erradamente construído com base numa pretensa contraposição entre "descentralização ou regionalização" (tal é a rubrica do último painel do colóquio).

Ora, a regionalização É UMA FORMA DE DESCENTRALIZAÇÃO, pelo que não podem opor-se as duas noções. O que há é diversos níveis de descentralização territorial, a saber, as freguesias, os municípios e as regiões. Na sua configuração constitucional, as regiões são autarquias territoriais de nível supramunicipal. 

O que faz sentido é saber se os limites de escala da descentralização municipal não tornam obrigatória a descentralização regional, sob pena de continuar a manter nas mão do Estado central tarefas que bem podem e devem ser descentralizadas, ao abrigo do princípio constitucional da subsidiariedade do Estado.

2. É para evitar estas confusões conceptuais - que as posições antirregionalização cultivam -,  que há muito venho preconizando substituir a noção de "regionalização" pela de descentralização regional e a noção de "regiões administrativas" pela de autarquias regionais

Assim se acabam os equívocos atávicos, que em nada favorecem, pelo contrário, a luta pela descentralização regional. É estranho é que eles também sejam acriticamente perfilhados pelos adeptos da descentralização regional, incluindo, neste caso, por um jornal tradicionalmente apoiante da causa regional.

sábado, 3 de outubro de 2020

Um pouco mais de rigor sff (69): A "geringonça"

Há quem continue a usar a noção de "Geringonça" para designar um eventual acordo de governo duradouro do PS com os partidos à sua esquerda, ou seja, com o BE, ou o PCP, ou ambos. 
No entanto, eu penso que o principal motivo para essa designação de "governo esquisito" ou "fora do normal" em 2015 era o facto de a aliança entre os três partidos ter visado afastar o Governo do partido (e coligação) que tinha ganhado as eleições (PSD+CDS), fazendo aprovar pela primeira vez na nossa história constitucional e parlamentar um governo minoritário do segundo maior partido parlamentar (o PS) e que, portanto, só se sustinha por ter o apoio dos partidos da Geringonça. 
Tal não é o caso agora, sendo o governo do PS apenas mais um "normal" governo minoritário do partido que ganhou as eleições sem maioria absoluta, solução com vários precedentes desde 1976. De facto, são nada menos do que cinco os governos desse tipo, antes do ataul (1976, 1985, 1995, 1999, 2009), sendo quatro deles do PS (agora cinco), que é assim o campeão dos governos minoritários. Por conseguinte, julgo ser de abandonar a noção de "geringonça", por deixar entender erradamente que se trataria de repetir a solução de 2015-19.

Adenda
Parecendo evidente que o PCP não está agora disponível para nenhum acordo de apoio ao governo - basta ver as suas propostas propositadamente inviáveis -, a hipótese de um acordo fica limitada ao BE (o que, aliás, não facilita a sua conclusão, visto que os bloquistas tenderão a ser mais exigentes, para não serem acusados pelo PCP de "cedências à direita"). Sendo assim, mais uma razão para deixar de utilizar a noção de "geringonça". Falar em "meia geringonça" faz ainda menos sentido...

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Um pouco mais de rigor sff (69): Legitimidade democrática da UE

1. Perguntado pelo Jornal de Negócios sobre se a imposição de restrições orçamentais pelos Tratados da UE aos Estados-membros não limita as democracias nacionais, o Prof. Ginsburg, coordenador de uma obra "Constituições em tempos de crise", recentemente publicada, respondeu assim:
«Esse é um dos aspetos focados no livro. Normalmente, os governos são legitimados democraticamente pela escolha dos eleitores. O governo da União Europeia retira a sua legitimidade do funcionalismo, da tecnocracia. As pessoas ficam naturalmente insatisfeitas em serem governadas por tecnocratas que lhes dizem que não há alternativa, que a via para resolver os problemas é uma via única. Vimos o efeito que esse discurso teve na Grécia, onde as pessoas ficaram efetivamente zangadas. [sublinhado acrescentado]».
2. Esta reposta é um disparate. Os Tratados da União, bem como o chamado Tratado Orçamental, foram negociados, aprovados e ratificados respetivamente pelos governos, parlamentos e chefes de Estado nacionais, gozando, portanto,de plena legitimidade democrática interna. Também tiveram o apoio do Parlamento Europeu, que é diretamente eleito pelos cidadãos europeus. Ao contrário da afirmação sublinhada, o Governo da União assenta na dupla legitimidade democrática das eleições nacionais, que elegem os governos ancionais (que integram o Conselho da União e o Conselho Europeu), e das eleições europeias, que elegem o Parlamento Europeu.
Por sua vez, a Comissão Europeia, que é o "governo da União", e que implementa os referidos Tratados, é nomeada pelo Conselho da União, com a aprovação do PE; além disso, está sujeita às orientações definidas pelo Conselho Europeu, e à responsabilidade política permanente perante o Parlamento Europeu.

3. A democracia da UE pede meças a muitas democracias nacionais, por exemplo quanto ao controlo da Comissão pelo PE ou quanto à condução da política comercial externa.
Um pouco de conhecimento sobre a constituição da União não faria mal a um especialista de direito constitucional comparado, mesmo americano...

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Um pouco mais de rigor, sff (68): Difícil entender

Não sei onde é que os deputados do PSD foram buscar a ideia de que a AR não pode legislar sobre a proposta do PS para atalhar o "nepotismo" nas nomeações de gabinetes ministeriais e outros, por ser alegadamente matéria da competência exclusiva do Governo. Porém, sem nenhuma razão.
Primeiro, a referida legislação não diz respeito somente ao pessoal dos gabinetes ministeriais, mas sim a todos os gabinetes de pessoal de apoio a dirigentes políticos e equiparados (desde o PR aos presidentes de câmara municipal). Segundo, a Constituição só reserva ao Governo a legislação sobre a sua própria organização e funcionamento, fórmula que, além de não dever ser interpretada extensivamente, não abrange manifestamente o regime do pessoal dos gabinetes ministeriais, quanto a incompatibilidades, o que, por natureza, só poder ser competência da AR.
O que se não compreende é qual é o interesse político do PSD em se manter à margem dessa legislação e da regulação dessa sensível matéria política...

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Um pouco mais de rigor sff (67): Moção de censura

Nesta boa peça jornalística sobre a história das moções de censura parlamentar em Portugal sob a Constituição de 1976 há, porém, um lapso que, embora secundário, importa ser corrigido.
Lê-se que «para ser aprovada [uma moção de censura], é necessária uma maioria absoluta de deputados, ou seja, 116 dos 230 deputados». Mas não é bem assim. Para aprovar uma MC basta ter mais votos a favor do que contra. A maioria absoluta só é condição para demissão automática do Governo, obrigando a nova solução governativa no quadro parlamentar existente ou a eleições antecipadas. Todavia, a aprovação da censura por maioria simples não é politicamente despicienda, mostrando que o Governo em causa tem menos apoio do que rejeição parlamentar...
Como é evidente, esta distinção não é relevante no caso da moção do CDS, pois ela vai ser rejeitada pela base parlamentar do Governo. Mas em abstrato a hipótese de uma MC aprovada sem maioria absoluta não é de descartar no caso de governos minoritários.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Um pouco mais de rigor sff (66): "Portinglês"


É evidente que nesta notícia do Público a referência a "taxas" está rotundamente errada, devendo ler-se "impostos", que é coisa bem diversa em português. É o que faz traduzir notícias apressadamente do inglês, sem ter em conta os "falsos amigos", como sucede tantas vezes em Portugal, mesmo por parte de pessoas com educação superior. O "portinglês" está cada vez mais difundido!
Pode argumentar-se que um jornalista não tem de saber tudo, o que é verdade. Mas neste caso o tema dos impostos europeus (e não das "taxas europeias") tem estado no debate público há algumas semanas, pelo que não se justifica o referido lapso jornalístico.
Lamentavelmente, deixou de haver revisores nos jornais e o trabalho editorial sobre os títulos também desapareceu. A edição online direta tem um preço alto em termos de rigor linguístico. Mas um jornal com as responsabilidade do Público não pode incorrer em lapsos destes com a frequência com isso ocorre nas suas páginas.

domingo, 12 de março de 2017

Um pouco mais de rigor sff

A rubrica desta notícia de ontem diz que «Jorge Miranda defende que deputados podem ver SMS de Domingues». Mas o que a notícia diz é que os deputados (em comissão de inquérito) podem ver não somente os SMS de Domingues mas sim toda a correspondência (SMS e emails) trocada entre ele e o Ministério das Finanças, o que é coisa bem diferente. Portanto, a rubrica não é fiel ao conteúdo da notícia.
Cabe dizer que eu próprio já tinha defendido essa posição, há algum tempo.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Um pouco mais de rigor sff

Na sua edição impressa de hoje, o Diário de Notícias relata um alegado "ataque antissemita" a um restaurante no Porto, cujo dono e chef participou num encontro gastronómico em Israel.
Ora, o mais que se recolhe da notícia é que se tratou de uma ação de protesto anti-israelita em solidariedade com a causa palestina. Mas, sendo assim, é descabido caraterizar essa ação como "antissemita", ou seja, uma manifestação contra os judeus, com toda a carga de ódio histórico que isso suscita.
Uma coisa é o Estado de Israel e outra o povo judeu. Pode-se ser contra a política do primeiro quanto à ocupação da Palestina, sem ter nada contra o segundo, como sucede aliás com muitos judeus em Israel e fora dele. Israel não é imune à crítica e à condenação internacional pela violação do direito internacional, como qualquer outro país.
Um pouco de rigor, que se exige num jornal de referência, teria evitado a lamentável confusão.

Adenda
Na sua edição eletrónica o DN corrigiu a referida expressão "ataque antissemita" para "ataque radical". Mas a edição impressa já não se pode corrigir...

Adenda 2
Verifico que há outros outros jornais que, seguindo a usual propaganda oficial israelita nestas ocorrências, alinham com a conotação "antissemta", como, por exemplo, neste texto do Expresso. Lastimável!

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Um pouco mais de rigor, sff

O jornal "i" de hoje faz manchete com a frase "Emails desmentem versão do Ministro da Educação".
Lido sem mais, esse título deixa entender que a tal correspondência eletrónica desmentia a versão do ministro sobre o seu desconhecimento de que um membro do gabinete do Secretário de Estado da Juventude não possuía a licenciatura que lhe tinha sido atribuída no despacho oficial de nomeação. De facto, foi esse alegado conhecimento, insinuado pelo anterior Secretário de Estado, Wengorowius - de que o próprio "i" tinha feito grande eco -, que levou alguns partidos a pedir a demissão do Ministro. Ora, na agora invocada correspondência, obviamente disponibilizada pelo tal Secretário de Estado, absolutamente nada desmente a versão do Ministro quanto a esse ponto-chave.
Lida a notícia, afinal o que é alegadamente provado é somente que o Ministro procurou interferir na composição do gabinete do Secretário de Estado, o que teria levado à demissão deste. Mas obviamente não era isso que estava em causa na polémica política em que tinha procurado envolver o Ministro. E de qualquer modo pode perguntar-se o que é que haveria de politicamente censurável nessa tal "ingerência". Afinal, os secretários de Estado não são mais do que colaboradores de confiança dos Ministros. Quando ela se rompe, só resta a demissão. E a conduta posterior do Secretário de Estado, incluindo esta revelação de correspondência, só prova que ele não era digno de confiança...

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Um pouco mais de rigor, sff

Esta notícia de que «Receitas aumentaram em três autoestradas após descontos nas portagens» é grosseiramente enganadora, na medida em que dá a entender que foi a redução das portagens que produziu o aumento de receita, pela atração de mais utentes.
Ora, esse argumento só faria sentido se os resultados tivessem sido menos favoráveis nas autoestradas que não tiveram redução. Mas não foi isso que se verificou, pelo contrário. A cobrança de portagens em todas as autoestradas teve um aumento médio de 9% - em consequência de um acréscimo generalizado de utentes -, enquanto nas que tiveram redução de portagens cresceu somente 2,2% em média (tendo mesmo havido quebra de receita numa delas). Portanto, a tal redução das portagens resultou numa perda de receita, o que aliás era fácil de antecipar.
Parece que os antigos defensores das SCUTs - a maior leviandade financeira cometida nos últimos 20 anos - ainda não desistiram de voltar a pôr a cargo dos contribuintes (mesmo os que não têm automóvel) o pagamento das autoestradas, em substituição da regra utente-pagador.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Um pouco mais de rigor, sff

«O objetivo de reduzir os entraves regulatórios e a burocracia para potenciar ao máximo as trocas entre os EUA e a EU tem sido negociado [no TTIP] longe de qualquer olhar».
1. É isto que o "Expresso curto" publica hoje (o destaque a negro está no original), entre outras considerações factuais infundadas, sobre as negociações de um acordo de comércio e investimento entre a UE e os Estados Unidos, conhecido por TTIP

2. Ora, essas negociações decorrem sob o escrutínio dos seguintes olhares:
- dos governos de todos os Estados-membros (incluindo o do Syriza), que recebem todas as informações, quer através do Conselho da União quer através do Comité de Política Comercial, especificamente previsto no Tratado de Funcionamento da UE, onde todos estão representados e que acompanha especificamente e ao pormenor a negociação de todos os acordos comerciais da União;
- os deputados ao Parlamento Europeu, tendo todos eles acesso aos documentos confidenciais da negociação (obviamente com o compromisso de não divulgação do seu teor);
- os deputados dos parlamentos nacionais, que têm acesso aos mesmo documentos, nas mesmas condições;
-  os representantes dos stakeholders (empresários, sindicatos, consumidores, etc.) na comissão de acompanhamento criada pela Comissão Europeia, que são informados pela Comissão após cada ronda de negociações e que têm acesso também a informação confidencial;
- o público em geral, que tem acesso a todos os documentos com posições e propostas da União, que têm sido todos publicados.

3. O Expresso não tem nenhuma desculpa para desconhecer estes factos públicos e notórios. Basta ir ao site da Comissão Europeia sobre o TTIP. onde constam os documentos tornados públicos e a lista dos documentos confidenciais que estão acessíveis aos deputados europeus e nacionais. A lista dos documentos encontra-se aqui, com indicação dos chamados "textos consolidados" no final.

4. Importa dizer, sem margem para contestação, que não há no mundo negociações comerciais mais transparentes e mais escrutinadas do que as da UE e que nenhuma negociação comercial jamais foi tão transparente e tão escrutinada como a do TTIP.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Um pouco mais de rigor, sff

Há quem defenda que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa pode vir a "forçar" a sujeição da eutanásia a referendo. Mas, mesmo que quisesse, não pode fazê-lo.
Um eventual referendo nessa matéria só poderia ter lugar sob proposta da própria Assembleia da República, antes da votação da lei, não por iniciativa de Belém. O PR pode obviamente sugerir, pedir, recomendar, instar a realização do referendo. Porém, depois de eventualmente aprovada uma  lei nesse sentido, só resta ao PR, além da possibilidade de suscitar a fiscalização preventiva da sua constitucionalidade, optar entre promulgá-la ou vetá-la, sujeitando-se neste caso a ter de a promulgar se ela for depois confirmada na AR.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Um pouco mais de rigor, sff


Tenho discordado tanto do Governo que me apraz desta vez defender o Primeiro-Ministro de uma acusação injusta, como este título do Expresso digital.
De facto, como se recolhe da próprio corpo da notícia, Costa nunca disse que não aumentaria nenhum imposto, tendo falado somente em «não aumentar os impostos sobre o trabalho, nem os impostos indiretos sobre alguns bens essenciais». Por conseguinte, excluindo o IRS e o IVA sobre bens "alguns" bens  essenciais, o Governo pode aumentar todos os demais impostos sem ir contra o referido compromisso (o que, aliás, já anunciou há dias em relação aos impostos especiais sobre os combustíveis e o tabaco).
Além desses impostos protegidos, só há que contar com a promessa eleitoral de não aumentar a carga fiscal geral. Mas com a já decidida redução da sobretaxa do IRS e do IVA na restauração, há margem para subir outros impostos num montante equivalente à descida daqueles.
Resta saber quais...

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Um pouco mais de rigor, sff


Não pode ser "escondido" o que ainda não existe, visto que o acordo ainda não está concluído, como toda a gente sabe (e como a própria notícia refere). E as negociações para o concluir não podem decorrer propriamente na praça pública.
Além disso, mesmo depois de concluído o acordo, faz todo o sentido não o abrir ao público antes de o apresentar aos órgãos próprios do Partido nem talvez mesmo antes de concluído o debate parlamentar sobre o programa de governo do PSD e do CDS, sob pena de este se tornar um debate antecipado sobre o programa de governo PS e não sobre o da coligação de direita, como deve ser.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Um pouco mais de rigor, sff

Uma das maiores ficções económicas da propaganda da coligação de direita diz respeito às exportações e ao saldo da balança comercial externa.

a) É verdade que todos os anos Portugal bate o record das exportações. Mas, com exceção de 2009 (em que a crise internacional deprimiu o comércio internacional), Portugal bate o record de exportações todos os anos desde há duas décadas, como se vê pela tabela junta (copiada daqui)
Há duas coisas a sublinhar: (i) ao contrário do mantra repetido à exaustão pela direita, Portugal manteve consistentemente ganhos de competitividade externa, com especial intensidade nos anos que precederam a crise entre 2005 e 2008 (por acaso, os primeiros anos do governos Sócrates...); (ii) aparentemente, a "desvalorização interna" promovida pelo programa de ajustamento da troika conseguiu recuperar o ritmo de crescimento das exportações apesar da recessão interna, aumentando por isso o peso das exportações no PIB.

b) É verdade que desde 2013 foi conseguido, pela primeira vez em décadas, um saldo positivo da balança comercial (exportações versus importações de bens e serviços). Mas importa ter em conta dois dados menos reconfortantes: (i) esse resultado foi menos consequência do aumento das exportações (cujo ritmo se mantém idêntico ao período antes da crise e parece mesmo estar a perder força) mas sim à conteção das importações, em consequência da depressão da procura interna entre 2009 e 2013; (ii) os últimos dados revelam que, em consequência do disparo da procura interna, as importações estão a crescer bem mais do que as exportações, pondo em risco o saldo da balança comercial externa, que começa a ceder a olhos vistos. Por isso, a convicção governamental de que em 2015 vai continuar a verificar-se um saldo positivo da balança comercial poderá revelar-se demasiado ousada.