segunda-feira, 12 de abril de 2004

Um episódio soviético

Entrevista no Público com Arnold Kalinin, que foi o primeiro embaixador da antiga União Soviética em Portugal (1974-1982). Nunca o conheci pessoalmente, nem frequentei as habituais recepções da embaixada, mas tive com ele um episódio francamente desagradável, que aqui recordo em público pela primeira vez. Faço-o de memória, por não ter podido procurar os documentos correspondentes (os quais porém guardo algures entre os meus papéis do meu tempo de deputado), e que a seu tempo poderei publicar.
Aí por 1980, era eu há muito vice-presidente da bancada parlamentar do PCP, e porventura o mais conhecido dos seus deputados, dei uma entrevista ao Expresso. A uma pergunta sobre o que pensava da União Soviética, dei a resposta habitual para contornar perguntas desse tipo, dizendo que não conhecia bem a realidade soviética, desde logo porque nunca lá tinha estado. (O que era verdade, tal como em relação a qualquer outro dos países “socialistas”, devendo eu ser um dos poucos membros proeminentes do PCP nessa situação.)
Poucos dias depois recebi na Assembleia uma grande encomenda proveniente da Embaixada soviética. Lá dentro vinha uma colecção de livros e folhetos de propaganda soviética básica. Qual não foi a minha surpresa quando descobri lá dentro uma carta manuscrita em papel timbrado da Embaixada, redigida e assinada pelo próprio embaixador, em Português mascavado, onde se me dirigia como “camarada” e me dizia que, tendo eu “mostrado interesse em conhecer a URSS”, decidira enviar-me aquela literatura onde eu poderia ficar a conhecer melhor a realidade soviética. Não sei se o que me irritou mais foi o abusivo tratamento de “camarada” (dado que ele confundia o seu papel de embaixador com a suposta camaradagem partidária) ou a provocação do envio daquela subliteratura política a pretexto de um interesse que eu não tinha manifestado.
Perante o atarantado João Amaral, que era então chefe de gabinete do Grupo parlamentar do PCP, dei ordens de devolução imediata da encomenda à procedência, enquanto redigia uma indignada carta de resposta, dirigida ao Embaixador da URSS, dizendo-lhe que devolvia o material enviado, que eu não tinha solicitado, e que somente o respeito pelo País “que ele tão mal representava” me impedia de lhe retorquir com o envio de um “manual de boas maneiras diplomáticas” sobre como o embaixador de uma “potência estrangeira” se deveria dirigir aos deputados do “país soberano” em que cumpria a sua missão.
Já depois de escrita e remetida esta carta, dei conhecimento do sucedido, incluindo cópia dos dois documentos, ao presidente do Grupo Parlamentar, Carlos Brito, com explícito pedido de o relatar ao Secretário-Geral do Partido, Álvaro Cunhal. Presumo que isso foi feito. Mas não tive nenhuma reacção nem dele nem do Embaixador Kalinine.
As minhas relações com a União Soviética resumiram-se a este edificante episódio. Quero crer que ninguém perdeu nada com esse desencontro...

Vital Moreira

Oriana Fallaci ataca de novo

A célebre jornalista italiana, agora a residir em Nova York, que apoiou a invasão do Iraque, acaba de publicar em Itália mais um livro – A Força da Razão – na sua campanha contra a “invasão” da Europa pelo Islão. Desta vez a novidade é o ataque em forma à Igreja Católica, incluída entre os principais responsáveis por esta islamização da Europa, que ela rebaptiza como “Eurábia”, em vias de se tornar uma “colónia do Islão”. Desnecessário será alertar para a contributo que um panfleto como este poderá ter no fomento da islamofobia que cresce em alguns círculos europeus, para mais num ambiente crispado pelo temor e pela insegurança causada pelo terrorismo islâmico.

sábado, 10 de abril de 2004

O passado e o futuro da Microsoft

1. Revisitando o passado da Microsoft
A propósito da ideia de separação da Microsoft em duas empresas [como pretendeu o Juiz Jackson na primeira decisão sobre o processo de investigação de certas práticas da Microsoft nos EUA] penso que é útil visitar o passado para ver de que forma esta empresa utilizou a sua posição enquanto fornecedor de sistemas de operação para arrasar a concorrência nas chamadas ferramentas de produtividade individual (processamento de texto, folhas de cálculo, software de apresentações).
Estamos no inicio da década de 90 - a MS concorre com a Lotus (líder na área das folhas de cálculo), a WordPerfect (líder no processamento texto), e a Harvard Graphics (referência incontornável nas apresentações). Poder-se-ia ainda juntar a este grupo a FoxPro que tinha alcançado uma posição de destaque nas bases de dados MS-DOS. Embora a Microsoft tenha já uma posição importante na área dos sistemas de operação, a concorrência da NOVELL nos ambientes rede é importante. De que forma vai agir a Microsoft? Introduz o Windows versão 3. Ao fim de 3 tentativas a Microsoft consegue oferecer aos utilizadores dos PCs o tipo de convivialidade que caracterizava desde há vários anos o Apple MacIntosh. Face ao sucesso do novo ambiente gráfico todos os fornecedores de aplicações (LOTUS, WORDPERFECT, ...) lançam-se na sua rápida conversão para o ambiente Windows. Ao fim de alguns meses verifica-se que a Microsoft é a única empresa com uma oferta completa neste domínio. Através da oferta integrada (as chamadas "suites" Office) esvazia os ninhos que tinham sido criados pelos anteriores líderes. Os concorrentes chegam tarde ao mercado e finalmente quando conseguem lançar as suas versões são confrontados com problemas insuperáveis de (falta de) fiabilidade e robustez. Dir-se-á que a MS assumiu o risco ao apostar no novo ambiente enquanto os anteriores líderes assumiram uma atitude mais conservadora. Este argumento não colhe porque a WORDPERFECT dispunha na altura duma versão para Mac – simplesmente a MS sonegou informação vital aos seus concorrentes.


2. A Comissão Europeia não tem razão no caso do Windows Media Player
Os browsers ou os media players não constituem hoje mercados autónomos. Estas funcionalidades são peças fundamentais de um sistema informático. A sua integração nas funções nativas do sistema de operação é inelutável por duas razões: as funções multimidia são essenciais em qualquer plataforma computacional; a coexistência de múltiplas variantes de código numa mesma plataforma só pode ser prejudicial em termos de fiabilidade e conduz a uma ineficiente utilização dos recursos computacionais. Esta análise é válida tanto para o browser (que hoje constitui o interface universal adoptado pela nova geração de aplicações distribuídas). Basta verificar o que se passa no caso de outras plataformas de características semelhantes (caso da Apple). Apenas o motor de busca poderá considerar-se uma aplicação de carácter relativamente autónomo.
Além disso, o Windows Media Player não eliminou os concorrentes, tal como tinha acontecido com browser Internet Explorer. O sucesso do RealPlayer, do Apple IPOD e da multitude de utilitários usados para MP3 são a prova evidente de que este é um mercado muito disputado. Acresce que a utilização preponderante de equipamentos móveis tenderão a remeter a prazo o Media Player para uma posição (ainda mais) secundária. A integração destas funções (tal como outras de inegável importância ligadas a serviços de segurança) é de uma lógica inatacável do ponto de vista tecnológico.
A verdadeira discussão situa-se noutro plano: a Windows Media Player poderá vir a permitir à Microsoft adquirir uma posição importante no mercado emergente dos "Digital Rights Management". Neste domínio a decisão da Comissão poderá efectivamente fazer sentido.


3. Um solução para o abuso de posição dominante da Microsoft
E certo que a Microsoft tem efectivamente abusado da sua posição dominante. Mas isto deve-se sobretudo à natureza do mercado (veja-se a evolução do mercado em sectores como os sistemas de gestão de bases de dados, ERPs, onde a consolidação é norma - naquilo que os analistas anglo-saxónicos designam como "the winner takes all"). As medidas que efectivamente se impõem são de outra ordem:
- decretar a separação entre o sector desenvolvimento de sistemas de operação do sector desenvolvimento de aplicações (Office e afins);
- limitar no tempo a patente sobre o sistema operativo (e.g. 4 anos após os quais todo o código e documentação passam ao domínio público)

Os prazos actualmente consignados para a protecção da propriedade intelectual estão totalmente desajustados duma indústria que é ainda relativamente recente. Basta notar que todos os 4 a 5 anos a MS lança uma nova geração de sistemas de operação.


Carlos Oliveira (Luxemburgo)

PS - Pela sua extensa e cuidadosa fundamentação, penso que estas críticas e sugestões merecem uma leitura atenta. Destaco, o argumento que mais me deixou a pensar. O da limitação dos direitos de propriedade intelectual, adequando-os ao ritmo da inovação próprios da nova economia e mesmo de certos domínios da velha.
MMLM

quinta-feira, 8 de abril de 2004

«O caos no Iraque»

«Quando o caos parece instalar-se no Iraque, ameaçando sobretudo os incautos que resolveram alinhar na aventura guerreira à última hora, o "Causa Nossa" parece distraído com a pequenez da política caseira. No entretanto os canais de televisão voltam a encher-se dos “especialistas” de sempre, que nos garantem terem previsto aquilo que ninguém lhes havia ouvido antes, enquanto falam do óbvio ou repetem as mesmas mentiras de sempre. Já não há pachorra. Vou de férias e volto na 4ª feira com esperança de voltar com mais paciência ou deixo de ver TV de vez. Com o Expresso resultou.»
(J.J.N.T.M., Matosinhos)

«Uma ideia cujo tempo chegou»

Como se pode ver neste artigo do New York Times, também nos Estados Unidos, existem propostas para reconhecer o direito de voto nas eleições locais aos imigrantes, particularmente em Nova York, onde existe um considerável número de residentes sem a nacionalidade norte-americana, sobretudo de origem asiática ou latino-americana (cerca de um milhão, equivalente a 1/5 do total dos actuais eleitores).
A ideia está longe de ser nova na tradição política dos Estados Unidos, havendo vários municípios onde ela vigora, designadamente nos estados mais politicamente “abertos”, como o Maryland. Tal como na Europa, os defensores desta extensão dos direitos políticos dos imigrantes argumentam sobretudo com o potencial de participação e inclusão cívica dessa medida.
Como é sabido, em Portugal o direito de voto dos residentes estrangeiros nas eleições locais é reconhecido aos cidadãos dos demais estados-membros da UE (“cidadania europeia”) e aos cidadãos de outros países, a começar pelos países lusófonos (“cidadania lusófona”), mas desde que em condições de reciprocidade, ou seja, desde que os respectivos países reconheçam os mesmos direitos aos cidadãos portugueses neles residentes. É relativamente reduzido o número de imigrantes que beneficiam dessa regalia.

"Forum Comunitário"

Benvindo o novo blogue de Walter Rodrigues, Fórum Comunitário, incluindo uma análise da blogosfera portuguesa («O elogio da blogosfera» de 5 de Abril), com uma benévola referência ao Causa Nossa.
Já agora, a propósito do seu comentário («A democracia e as fronteiras entre negócios e política», de 8 de Abril) sobre o meu post acerca do sucesso económico de certos políticos (não o contrário), devo esclarecer que na minha opinião numa democracia deve ser especialmente forte a exigência de transparência e de explicação das fortunas não originárias dos políticos. Não preciso explicar porquê, pois não?

Más notícias de Bruxelas

Ao contrário do que tinha sido insinuado pelo Governo, são muito más as notícias vindas da Comissão Europeia sobre as perspectivas económicas e financeiras do País nos próximos dois anos. Embora superada a recessão do ano passado, o crescimento económico previsto (0,8% este ano e 2,2% em 2005) fica bem aquém do esperado, sendo o pior de todos os países da UE, incluindo os novos membros. Portugal continuará a distanciar-se da média europeia pelo sexto ano consecutivo, recuando à situação de 1997. O défice orçamental previsto, já com a incorporação de receitas extraordinárias, vai ficar acima do limite dos 3%, tanto em 2004 como em 2005, obrigando portanto a medidas excepcionais adicionais e revelando que a consolidação orçamental está longe de estar alcançada. A dívida pública voltará a superar pela primeira vez desde 1966 o tecto de 60% do PIB, previsto no Pacto de Estabilidade e Crescimento da UE. O desemprego mantém-se em alta no corrente ano, com estabilização no próximo.
Perante estes números, compreende-se o nervosismo dos círculos governamentais, bem como a súbita mudança de agulha no discurso oficial para a segunda metade da legislatura. Posta em termos prosaicos, a questão é a seguinte: a atrasada e anémica retoma económica ainda virá a tempo de inverter o clima político a favor da coligação governamental a tempo do ciclo eleitoral que se inicia com as eleições locais do Outono de 2005, das presidenciais do início de 2006 e das eleições parlamentares do Outono de 2006?

Arrependimento?

No anúncio comercial profusamente difundido na imprensa com o balanço da actividade governamental, em que o Governo alista as suas providências na primeira metade da legislatura, ministério a ministério, é notório que no capítulo respeitante ao departamento do ensino superior foi omitida a referência à reforma da lei de financiamento do dito, vulgo “lei da propinas”. Tratando-se de uma das mais relevantes reformas governamentais do sector, é pelo menos intrigante a lacuna, que só pode ter sido deliberada.
O que quer isto dizer? Arrependimento? Aplicação retroactiva da nova “onda” da propaganda governamental, que só prevê medidas “positivas”, isto é, que não causem descontentamento social em nenhum sector? "Requiem" pelo impulso reformista do Governo, já com os olhos postos no ciclo eleitoral que se aproxima?

quarta-feira, 7 de abril de 2004

Negócios & política

«Manuel Dias Loureiro, presidente da Plêiade, da Ericson Portugal e do Congresso Nacional do PSD, será o novo presidente da assembleia geral do grupo Jerónimo Martins».
(Diário Económico, 7-4-2004)
Um dos prodígios da democracia é o fulgurante sucesso de certos políticos nos negócios...

Volta Guterres...

...estás perdoado! É o que parece poder deduzir-se dos resultados do inquérito de opinião ontem publicado no Jornal de Negócios. Cerca de 47% dos inquiridos acham que Guterres governou melhor do que Durão Barroso, com somente 25% a achar o contrário, sendo os restantes sem preferência. O curioso é que o actual Governo só é considerado melhor pelos votantes do PSD (mesmo assim com mais de 25% com opinião mais favorável a Guterres), pois mesmo entre os votantes do PP ele é considerado pior do que o seu antecessor!
Mesmo tendo em conta a fase depressiva do actual ciclo governamental, estes dados são de molde a preocupar o actual primeiro-ministro e, sobretudo, a animar os que desejam ver o antigo primeiro-ministro como candidato presidencial.

tampouco o puk

Quando ligo o telemóvel, o écran ilumina-se com a frase "A vida é maravilhosa quando não se tem medo", de Chaplin. Infelizmente, a minha vida não tem código PIN.

Ainda o voto em branco

Considero o voto em branco perfeitamente legítimo, tal como o voto nulo ou a abstenção. Reconheço, no entanto, que o acto de votar em branco ou anular o voto pode ter um significado político mais activo e interveniente do que o acto passivo de abster-se. Se eu voto em branco ou se risco o meu voto isso poderá significar que a minha negação do que existe não se resume a estar indiferente – a “estar-me nas tintas” – perante o resultado da votação.

Acontece que a democracia representativa é construída a partir das alternativas existentes e não daquelas que eu gostaria legitimamente que existissem. Pelo que se recuso as que existem, deverei procurar e construir uma alternativa fora delas. Se ao votar em branco pretendo apenas interpelar aqueles cuja prática política recuso, isso leva-me a uma contradição insanável: eles não merecem a minha confiança, mas quero todavia obrigá-los a um acto de contrição e regeneração. Rejeito-os mas ainda tenho esperança neles? Como? Porquê?

Critiquei já José Saramago por esta razão, mas ainda por uma outra que me parece decisiva em termos éticos (e estéticos): a de que ele se serviu da sua teoria – nada original, diga-se – sobre o voto em branco para fazer o “marketing” de uma obra de ficção literária, como se a literatura se resumisse a um pretexto ilustrativo de uma atitude política (foi o que outrora aconteceu com o neo-realismo).

Ainda por cima, Saramago não é coerente nem consequente com a sua tese sobre o voto em branco, uma vez que participa na lista do PCP para o Parlamento Europeu. E só por uma pose de egocentrismo aristocrático, como já escrevi no “Diário Económico”, a coberto do seu estatuto de prémio Nobel, ele pode caprichar na representação simultânea de dois papeis contraditórios, advogando uma atitude e praticando o seu oposto. Só quem se julga acima do comum dos mortais assume um comportamento tão displicente. E esta é uma questão de ética política e cívica que não pode passar sem reparo.

A democracia representativa é um sistema imperfeito – e ainda bem que o é, ao contrário do que sucede com as utopias totalitárias. Acabamos de constatar, em Espanha e França, as virtualidades do voto democrático de protesto. Imaginemos que o voto em branco se tinha substituído, aí, ao voto nas principais forças de oposição ao “statuo quo”, ou que, em Novembro, nos Estados Unidos, um voto maciço em branco acabaria por favorecer a permanência de Bush na Casa Branca (amplificando uma já crónica e banalizada abstenção eleitoral). Que resultaria daí? Não se abririam portas suplementares às tentações populistas e autoritárias que hoje se manifestam com tanta intensidade face às disfuncionalidades dos regimes democráticos?

Não sou especialmente adepto do “voto útil” de protesto. Prefiro-o, porém, mil vezes, à “brancura”, sem dúvida legítima mas improdutiva, displicente e “aristocrática”, de uma opção que, nas circunstâncias presentes, tenderá a favorecer o clima de cepticismo e descrença que já afecta a democracia representativa. Se quero mudar o que existe, devo trabalhar dentro do que existe para suscitar um sobressalto – como em Espanha, em França ou nos Estados Unidos – ou, então, batalhar pela emergência de outras alternativas políticas e eleitorais a partir da sociedade civil. Votar em branco apenas para ficar bem com a minha consciência altaneira face à miséria política ambiente e esperar que os responsáveis por essa miséria acordem para o meu aviso, constitui, convenhamos, uma atitude que, embora legítima – não é isso que está em causa –, não resiste às suas contradições intrínsecas. E não me parece, apesar de legítima – insisto! –, um contributo efectivo para a melhoria e reforma do sistema democrático.

Vicente Jorge Silva

O regresso de Cunha Rodrigues

Quando Cunha Rodrigues era procurador-geral da República critiquei-o muitas vezes pela sua gestão política e maquiavélica dos processos judiciais mais mediáticos. Mas perante a forma absolutamente desastrada como o seu sucessor, Souto Moura, geriu o processo Casa Pia, cheguei a questionar se a imagem da Justiça e do Ministério Público não sofrera, entretanto, uma degradação maior. Afinal, Cunha Rodrigues sempre tinha algum controlo e autoridade sobre os processos, por mais enviesados, sibilinos e opacos que fossem os seus critérios. Com Souto Moura instalou-se uma ideia de caos e arbitrariedade total.

Ora, depois de um longo silêncio, Cunha Rodrigues regressou do seu dourado exílio europeu para intervir num colóquio sobre o 25 de Abril. Aí mostrou que continua mais igual a si próprio do que nunca e que não temos nenhum motivo para ter saudades dele. Não porque não diga coisas justas – como, de resto, sempre disse – mas porque, mesmo quando as diz, o seu raciocínio é de tal modo tortuoso e corporativo que ficamos sempre com a impressão de que as culpas da crise da justiça são sempre dos “outros” e nunca dos chamados operadores judiciários. Para ele, a justiça é uma vestal puríssima, aparentemente tocada pela graça divina, num mundo sombrio de políticos incapazes e medias tabloidizados.

Segundo Cunha Rodrigues, a culpa do recurso abusivo à prisão preventiva – que atinge em Portugal recordes dignos do Guinness – é atribuível exclusivamente aos políticos que não souberam resolver os problemas sociais relacionados com a prevenção da criminalidade. E os numerosos acidentes de percurso do caso Casa Pia devem-se fundamentalmente ao frenesim do jornalismo de investigação e à tabloidização dos media. O ex-procurador não parece temer, por um segundo sequer, que a sua visão maniqueísta seja desmentida, nomeadamente, pelos atentados aos direitos constitucionais que alguns tribunais superiores têm detectado no comportamento do Ministério Público.

Para Cunha Rodrigues, se a capa do segredo protegesse todas as arbitrariedades judiciais, ninguém teria razões para queixas porque ninguém teria acesso à fortaleza inexpugnável desse arbítrio. Ou seja: se a justiça funcionasse num sistema absolutamente fechado e impenetrável, os motivos dos procedimentos judiciais nunca seriam questionados. Acabaríamos mergulhados em plena atmosfera kafkiana ou orwelliana, em que a pureza das razões da justiça atingiria proporções verdadeiramente totalitárias.

Vicente Jorge Silva

terça-feira, 6 de abril de 2004

25 de Abril, sempre!

O link do sítio dos 30 anos do 25 de Abril, com um grato abraço ao Paulo Querido, pela excelente ideia.

A tentação da abstenção

No meu artigo de hoje no Público tento reabilitar a legitimidade democrática do voto em branco, verificados os pressupostos que o podem justificar, em contraste com a abstenção.
Devo declarar que nunca votei em branco e que raramente tive dificuldades em decidir o sentido do meu voto. Mas aos que me manifestam a determinação de se absterem argumentado com a irrelevância do voto, com o desapontamento ou discordância dos partidos políticos, etc., digo-lhes que o voto em branco é o modo democrático de manifestarem a sua posição, evitando misturarem-se na irrelevância indefinida da abstenção. Mas confesso que não tenho tido muito êxito nesse virtuoso proselitismo. O sucesso da abstenção está justamente em ficar de fora...

Memórias do fascismo: os “tribunais plenários”


Visão do Plenário de Lisboa num desenho do arquitecto José Dias Coelho, assassinado pela PIDE
(Arquivo Mário Soares)

Eram tribunais penais especiais, existentes em Lisboa e no Porto, para julgar os “crimes contra a segurança do Estado”, desde a militância no PCP até às greves. Por eles passaram muitos dos principais militantes antifascistas. Foram dos instrumentos mais notórios da repressão política na ditadura. Eram compostos por juízes livremente escolhidos pelo Governo, onde a PIDE tinha poderes especiais, competindo-lhe desde logo a instrução dos processos.
Mesmo nos raros casos de absolvição, por manifesta falta de provas, a PIDE tinha o poder de manter os arguidos presos, mediante aplicação de “medidas de segurança”, por ela mesma aplicadas, que podiam ser indefinidamente renovadas, sem qualquer controlo judicial!
Os tribunais plenários são um dos aspectos menos estudados do regime fascista, talvez por testemunharem a estreita aliança entre a justiça e a PIDE.

Vital Moreira

segunda-feira, 5 de abril de 2004

Presa funcionária da PGR por corrupção

Em 13.2.04 escrevi no Causa Nossa um post a propósito do livro de Maria José Morgado e José Vegar «O Inimigo sem Rosto» sobre corrupção. Repito uma passagem, agora que a PGR acaba de anunciar a prisão de uma funcionária por suspeitas de implicação numa rede chantagista que se valia do acesso e ameaça de divulgação de processos judiciais:

“Fiz um teste à minha amiga – ‘achas inocentes e inofensivas as teias de dependências que se criam por essas repartições públicas fora, incluindo as mais estratégicas, por exemplo no Ministério das Finanças e nas Polícias, entre uns personagens, em regra mulheres, que aparecem regularmente a vender jóias de ouro ou prata, roupa, quadros, antiguidades, electro-domésticos, etc… às prestações e que assim mantêm agrilhoados a contas-correntes, de montantes por vezes superiores a vários anos de salários, milhares de funcionários do Estado?’ Resposta: «Mas isso é o que há de mais banal e normal, há anos que lá na Procuradoria e em todos os tribunais por onde passei toda a gente compra assim coisas a umas senhoras que aparecem a vender!»…
(Para quem deva e possa investigar, desde logo à PGR - porque não começar pela própria PGR? Quem deve a quem, quanto deve, o que se compra, quem vende, quem está por detrás de quem vende, como se paga?).»


As perguntas mantêm-se. Agora talvez mais compreensivelmente pertinentes.

Ana Gomes

O caso da Nazaré

«(...) O que sucede [a propósito da Nazaré], e já escrevi em colaboração regular que mantenho com o Jornal de Leiria, é que considero que a Nazaré não é um colonato de Alcobaça... De facto, está circundada por todos os lados, menos o mar, por Alcobaça.
Para mim, e salvo melhor opinião, a regra da continuidade geográfica
[para efeito de integração nas novas entidades supramunicipais] pode conter excepções. É o caso, previsto na Lei, de um qualquer município poder vir a sair após 5 anos e dessa forma retirar contiguidade geográfica aos remanescentes...
No caso em concreto, a partir da decisão de Alcobaça, a Nazaré é arrastada pela decisão do município envolvente. Não tem qualquer outra opção que não seja virar em "aldeia de Astérix", não aderindo a lado nenhum. Tal situação fere a meu ver o princípio da igualdade...
E por isso escrevi que a Nazaré, atenta a excepcionalidade, poderia ter duas opções quanto à "comunidade urbana" a integrar: Oeste ou Leiria, neste caso não obstante a descontiguidade.(...)
Como será do teu conhecimento, pelo menos V. R. Sto. António e Montijo não têm contiguidade geográfica entre todas as suas freguesias...
O que defendo é que a Nazaré não pode ser obrigada a conformar-se com a votação do concelho circundante..., especialmente por ser, dizem-me, o único concelho em tais condições, o que ainda mais favorece a excepcionalidade!
Portanto, não faço parte de qualquer grupo de trabalho que defenda o esoterismo marítimo... A tal ideia da continuidade territorial pelo mar, dizem-me, foi usada, por puro gáudio, por um nazareno numa reunião em Alcobaça entre PSDs.
Acho que se ganhava mais tempo se, atenta a situação da Nazaré, se pusessem os olhos na lei e se verificasse da conformidade constitucional de uma lei que só lhe (à Nazaré) permite o "voto por arrastamento" do concelho envolvente!
De todo o modo, seria prudente que os meus amigos não glosassem sobre notícias falsas, e inventadas por pura guerra entre PSDs, que só envolvem o meu nome para as tentar credibilizar...(...). É óbvio que já tentei desmentir a notícia, mas ainda não consegui ver o desmentido... Mas o Público também erra e acolhe notícias "plantadas"...»


(Osvaldo Castro, deputado do PS pelo círculo de Leiria)

Discriminação de crianças doentes

Vi há dias, na televisão, a Secretária de Estado da Segurança Social, Teresa Caeiro, recusando veementemente que o Refúgio Aboim Ascensão, que recebe dinheiros públicos, rejeitasse crianças portadoras de deficiência ou sida. O respectivo director, Luis Villas Boas, entretanto chamado à pedra pela Secretária de Estado, teve de engolir as declarações sobre as práticas discriminatórias que vinha seguindo. A Secretária de Estado é do PP e deste Governo que nos desgoverna. Mas eu gostei do que ela disse, de como o disse e da rapidez com que agiu. Aqui fica o meu aplauso.
Convinha agora que se tirassem todas as consequências, que vão muito além do Refúgio Aboim Ascensão. É que o referido senhor já tinha demonstrado não ter idoneidade, nem competência, para presidir à Comissão de Adopção de Menores, com as posições homofóbicas, discriminatórias e anti-constitucionais que sustentou para contrariar a possibilidade de adopção de crianças por homossexuais (como notei no post «Por detrás da homofobia»). Não é mais possível manter um tal indivíduo á frente daquela Comissão.
E para se manter no Refúgio, que tal ir antes fazer uns tempos de reeducação cívica na Associação Sol, que recolhe crianças com sida e HIV que ninguém mais quer ?

II - O cuidado pelas crianças a quem o Estado chama «Menores» vai mesmo mal. Já não bastava a Casa Pia… Bem sei que a minha velha amiga Dulce Rocha tem trágicas razões para andar perturbada. Conhecendo-lhe também o bom coração, descontei-lhe excessos de zelo e infelizmências como aquela de que «as crianças não mentem». Mas não posso aceitar que, no cargo que ocupa como Presidente da Comissão Nacional de Protecção de Menores, tenha vindo dar cobertura às alarvidades discriminatórias do sr. Villas Boas. Isto de vir do MRPP para a direita em descida íngreme e vertiginosa, almeria muito…. A ponto de até se ser ultrapassada por uma Secretária de Estado do PP, em tangente pela esquerda. Pela decência.

Ana Gomes

O Inimitável César das Neves

O autor de «A glória feminina», artigo publicado no DN há dias, suscitador de galhofante desconcerto: lê-se, pasma-se, gargalha-se e, condoídamente … não se acredita!
Malta do blog: proponho formalmente João César das Neves para Prémio Causa Nossa «Troglodita Cintilante», modalidade «João Morgado», subgrupo «marialvo-taliban», naipe dos «preventivamente impotentes». Com entrega da escultura cavernícola «Vagina de gelo», em cristal de rocha. E com votos de que a virginal Nossa Senhora do Dr. Paulo Portas o defenda de abalroamentos femininos poluidores!…

Ana Gomes

Salazar, os Estados Unidos e a esquerda

«Salazar, como Estaline ou Franco, não pode ficar no fundo do baú da História. Não temos de aderir ao seu projecto, mas de o pensar. E muito do que ele foi existe ainda: no actual antiamericanismo encontra-se muito, mas muito, do seu horror aos EUA. Este medo do mundo, esta convicção de que podemos fechar-nos na nossa concha que a esquerda – ou alguns partidos que se apresentam como de esquerda – reivindica, é algo a que Salazar fez imenso apelo: «Nós somos pequeninos, ninguém vai dar por nós.» Essa ideia de que «eles» que façam a política – sendo «eles» os EUA – que nós não temos nada a ver com isso, é muito a ideia do jardinzinho à beira-mar plantado, é profundamente salazarista... »
(Helena Matos, Diário de Notícias, 4-4-2004)

Esta passagem da entrevista de Helena Matos sobre Salazar, a propósito do lançamento de mais um livro seu sobre o ditador vitalício do Estado Novo, não pode passar sem contradita.
A desafeição salazarista em relação aos Estados Unidos tinha dois fundamentos principais. Um era o nacionalismo (económico, político, cultural) típico do fascismo e das doutrinas afins dos anos 20 e 30, que aliás não visava somente os Estados Unidos. Outra era o facto de os Estados Unidos, como representante extremo do individualismo e do liberalismo modernos, chocar com o seu pensamento anti-individualista e antiliberal, corporativista e autoritário, de matriz pré-liberal.
Ora a esquerda europeia, pelo menos a social-democracia e o socialismo democrático dominantes, nunca se distanciou dos Estados Unidos por esses motivos, quer por ter sido sempre assaz internacionalista e “cosmopolita”, nos antípodas do nacionalismo salazarista, quer porque a crítica socialista ao individualismo liberal sempre se limitou à economia (e não à esfera cultural e política, como no caso salazarista) e sempre foi motivado por razões democráticas e sociais, tipicamente “pós-liberais”, de novo no extremo oposto do antiliberalismo e do antidemocratismo autoritário do Estado Novo.
De resto, essa esquerda sempre compartilhou das orientações mais democráticas e mais “sociais” de um Roosevelt, de um Kennedy ou de um Clinton, para só citar três exemplos, pelo que a conotação de “anti-americanismo” é pelo menos despropositada. Além disso, confundir a presente crítica da esquerda europeia à actual administração norte-americana – que aliás não é exclusiva da esquerda, como mostra o caso da direita francesa – com “anti-americanismo” é tão abusivo como seria confundir "antiberlusconismo" com anti-italianismo.
E, por último, a crítica europeia ao “bushismo” não é feita em nome de uma visão nacionalista mesquinha, mas sim, ao invés, em nome de uma visão europeísta, universalista e multilateralista contra a estreiteza unilateralista e “imperial” de Washington. Por isso, ver nessa crítica uma herança do paroquialismo salazarista –, eis o que ultrapassa o entendimento...

Vital Moreira

Opiniões fundamentadas...

“Confesso que não li e não gostei do último livro de Saramago”.
João Pereira Coutinho, Expresso 3-4-2004.

«Saramago é um escritor pouco interessante e nada original (o Nobel, um prémio político, não garante a qualidade) (...). Confesso que de Saramago só li O Evangelho segundo Jesus Cristo, uma coisa primária (...)».
Vasco Pulido Valente, Diário de Notícias, 4-4-2004.

«Rebelião democrática»

«Li com toda a atenção o seu texto sobre a 'Rebelião democrática'. E gostei.
Que diabo, será que a nossa democracia ainda não conseguiu evoluir o suficiente para não confundir a obra e criador?
Ao que sei, o livro é apenas um romance (do qual não falo porque não li). Não é nenhum tratado de ciência política. Conta e desenvolve uma estória, partindo de um pressuposto. Agora ataca-se o homem por escrever um livro e desconsidera-se a obra por causa das ideias pessoais do escritor.
Também não acho que Saramago faça muito bem esta distinção, atendendo à defesa política que assumiu fazer da sua própria obra.
Acho que devia estar calado e deixar que a própria obra se defendesse a ela própria. As grandes criações não precisam dos autores, pois estão muito para além deles.
Pela minha parte, há muito que deixei de ter autores favoritos. Quando me perguntam quem são, digo que não os tenho. Favoritos são alguns livros, por mais detestáveis que possam ser pessoalmente os seus autores. E olhe que tenho alguns nesta conta. (...)»

(RG)

As contas dos “hospitais SA”

A apresentação das contas do primeiro ano de gestão dos hospitais empresarializados, vulgarmente conhecidos por “hospitais SA” – os quais constituem uma das mais importantes peças da reforma do sector da saúde do actual Governo –, foi justamente saudada como exemplo de prestação pública de contas e os seus resultados foram em geral aplaudidos, dado o aumento significativo do volume dos cuidados prestados conjugado com um aumento moderado dos custos, registando assim um incremento da eficiência.
No entanto, o sucesso anunciado necessita de um desmentido convincente de notícias que o procuram pôr em causa, como a do Diário de Notícias de hoje, segundo a qual, entre outras coisas, alguns custos – nomeadamente os dos medicamentos prescritos nas urgências e consultas externas – teriam sido retirados das contas, reduzindo artificialmente o seu montante.
Mesmo se pouco verosímil, o mínimo que se pode exigir é o pronto esclarecimento desta acusação. Pior do que um desempenho menos positivo (o que no primeiro ano da reforma até poderia ser compreensível) seria uma tentativa de “embelezamento” das contas. A reforma do sector da saúde é demasiado importante para que subsistam razões para especulação sobre a transparência dos seus custos e ganhos.

Governo paritário

Cumprindo mais um dos seus compromissos eleitorais, Rodríguez Zapatero organizou um governo com igual número de mulheres e de homens, incluindo uma vice-primeira-ministra, realizando um princípio de paridade absoluta, o que significa um "upgrade" em relação à composição do próprio grupo parlamentar socialista na parlamento de Madrid, onde as mulheres já representam 46% dos seus deputados.
Embora se não trate do primeiro caso mundial de paridade sexual a nível governamental, visto que desde há anos é essa a regra na Suécia -- um dos primeiros países a adoptar, desde há um século, políticas de “acção positiva” a favor da participação feminina na política --, nem por isso se pode desvalorizar a sua importância, sobretudo em países do sul, tradicionalmente muito recuados nessa matéria. No seguimento disto é de esperar que a nova maioria implemente também o compromisso eleitoral de estabelecer legislativamente a paridade nas eleições para as assembleias representativas em geral.
Comparado com este radical avanço espanhol, é de lamentar entre nós o congelamento pela actual coligação governamental das iniciativas da esquerda tendentes a dar execução ao preceito constitucional que desde 1997 reclama medidas de incremento da participação feminina na vida política. Um apenas entre os muitos pontos esquecidos da falhada reforma do sistema político...

domingo, 4 de abril de 2004

Durão Barroso e Saramago

Uma das grandes novidades do Expresso de ontem era indubitavelmente a explícita condenação pelo Primeiro-Ministro da ofensa feita há cerca de 10 anos a José Saramago por um obscuro e reaccionário Secretário de Estado da Cultura, ao censurar oficialmente a sua obra o Evangelho segundo Jesus Cristo, por ser “contrário aos sentimentos cristãos do povo português”. Pelas palavras utilizadas pelo primeiro-ministro, condenando «em absoluto» a discriminação então feita, trata-se de uma inequívoca contrição, mesmo se o termo “desculpas” não consta da declaração.
Ainda que tardia de 10 anos, só pode louvar-se a iniciativa do Primeiro-ministro, ainda mais apreciável por ela ocorrer num momento em que o escritor se encontra envolvido na polémica causada pelo seu último livro, que levantou contra ele a generalidade dos comentadores nacionais.
Depois das declarações do Maputo sobre o 25 de Abril e a descolonização, é óbvio que Duraõ Barroso procura atenuar a imagem excessivamente direitista que a marca ideológica do PP tem dado à coligação...

Actualização (05.04): Saramago aceita a explicação de Durão Barroso.

Veiga de Oliveira

Ainda sobre as façanhas da PIDE (cfr. post precedente), Irene Pimentel refere o caso de Álvaro Veiga de Oliveira, que bateu o “record” da tortura do sono, com 15 dias de “estátua” consecutivos. Saiu da prisão com a saúde arruinada, de que demorou a recuperar, embora com sequelas indeléveis.
Engenheiro de formação e profissão, veio a ter uma importante actividade de militante comunista durante a ditadura, tanto em Portugal como no Brasil. Conheci-o na Assembleia da República em 1976, tendo antes pertencido a vários governos provisórios, designadamente ao último deles. Muito inteligente e culto, breve manifestou igualmente notáveis capacidades parlamentares, tendo compartilhado comigo durante vários anos a vice-presidência da bancada parlamentar do PCP, bem como a discussão da primeira e importante revisão constitucional de 1982 (que nos opôs à direcção do partido).
Poucos anos depois da nossa saída do parlamento participámos também conjuntamente no processo de crítica, e depois de dissidência, do chamado “grupo dos seis” (1987-1990), do qual ele era o mais credenciado e prestigiado dos membros. Não por acaso coube-lhe a tarefa de entregar pessoalmente ao secretário-geral do partido o primeiro dos documentos que desencadeou as prolongadas “hostilidades” que haveriam de terminar com a saída de todos nós do partido.
É uma das pessoas mais fascinantes que me foi dado conhecer. Apraz-me recordá-lo neste momento.

Vital Moreira

Recordar as façanhas da PIDE

Perante algumas tentativas revisionistas do fascismo lusitano, incluindo alguns ensaios de branqueamento da PIDE, a polícia política do regime, é importante recordar a sua história, quando se comemoram 30 anos sobre o seu fim. A propósito de um dos temas mais odiosos, o da tortura de mulheres, o Público dos últimos dias traz dois depoimentos elucidativos. Por um lado, a historiadora Irene Pimentel, que prepara uma tese de doutoramento sobre a PIDE, revela como a tortura das mulheres começou nos anos 60 pelas operárias agrícolas do Couço (Alentejo). Por outro lado, Teresa Dias Coelho (na imagem), filha do célebre escultor Dias Coelho, assassinado pela polícia política em 1961, descreve ela mesma a tortura do sono a que foi sujeita na sua primeira prisão em 1972 . Tratando-se neste caso de uma jovem estudante e ocorrendo os factos descritos já no período marcelista, é fácil imaginar que o tratamento não seria diferente com mulheres de outra origem social em épocas anteriores...

sábado, 3 de abril de 2004

Rebelião democrática

Tem sido um fartote desde o lançamento do Ensaio sobre a Lucidez de José Saramago. Com poucas excepções – entre elas, por exemplo Eduardo Dâmaso no Público de hoje, numa nota a acompanhar uma entrevista ao escritor, onde aliás ele declara duas vezes que não faz nenhum apelo ao voto branco –, todos os que opinam nos "media" não têm poupado meios para zurzir o autor do Memorial do Convento a propósito da sua provocante ideia de uma rebelião dos eleitores contra o mau funcionamento da democracia, expressa num massivo voto em branco, rejeitando todos os partidos concorrentes. A maior parte dos críticos viram nessa ideia uma condenável expressão da hostilidade do autor, membro que é do PCP, em relação à democracia representativa. Resta dizer que algumas declarações equívocas do escritor não ajudaram a contrariar essa interpretação.
Mas a metáfora da rebelião do voto branco, aliás pacífica, é susceptível de outra interpretação menos subversiva e mais fecunda, a saber, um alerta contra o “mal-estar democrático” ou “crise da representação democrática”, ideias que constituem um lugar-comum em muitas análises das democracias contemporâneas e que se traduzem na crescente taxa de abstenção, no desinteresse pelos partidos políticos, na hostilidade larvar contra os políticos, no apoio a forças populistas, etc. Ora essas análises não relevam de nenhuma posição antidemocrática mas sim, pelo contrário, de uma preocupação em relação à qualidade da democracia.
Afinal, votar em branco ainda significa utilizar instrumentos democráticos (justamente o voto) para mostrar descontentamento, sendo por isso preferível à abstenção ou ao voto em movimentos extremistas, anti-sistema, opções infelizmente mais tentadoras do que aquele, e mais perigosas. Em vez de uma tese antidemocrática, a metáfora do voto branco pode portanto ser lida antes como um alerta contra o conformismo democrático em relação à crescente alienação cívica, uma espécie de “sobressalto democrático” em prol de uma regeneração da cidadania democrática e da democracia representativa. Deste ponto de vista, a provocação de Saramago merece mais respeito e atenção do que a condenação pessoal sumária que tem suscitado.

Vital Moreira

Estado laico?

A cerimónia de inauguração oficial das novas instalações da RTP e da RDP a sua bênção religiosa pelo cardeal-patriarca de Lisboa. Nada de novo, desde que o Estado Novo procedeu à recuperação da união entre o Estado e a Igreja Católica, situação que a III República não foi capaz de mudar até agora. Só que não se vê meio de compatibilizar a inclusão de cerimónias religiosas em actos públicos com o princípio constitucional da separação entre o Estado e as igrejas, que implica naturalmente uma separação entre a liturgia religiosa e a liturgia oficial do Estado. A seis anos do centenário da implantação da República e do princípio da separação, era altura de o voltar a levar a sério.