sexta-feira, 21 de maio de 2004

Theias e teias

Praticamente desde a sua nomeação, Amílcar Theias tornou-se o exemplo consumado da tendência de Durão Barroso para os "erros de casting" nas escolhas ministeriais. Sendo assim, a substituição de Theias, longamente anunciada, não deveria surpreender. Mas Durão Barroso não se distingue apenas pelos "erros de casting". Revela também uma tendência quase patológica para criar surpresas onde e quando elas não deveriam existir.

Substituir um ministro a poucas horas do início do congresso do PSD e dias antes de ser discutido um dos dossiês mais controversos e obscuros deste Governo -- o das águas -- mostra uma desorientação, um amadorismo e uma insensibilidade aos "timings" políticos que, apesar de tudo o que já se sabe do actual Executivo, não deixam de provocar espanto.

Como imagina Durão Barroso que poderá ser interpretada esta remodelação (ou recauchutagem) súbita e minimalista? Não terá a noção elementar de que incorre em suspeitas fundadas sobre os reais motivos da abrupta demissão de Theias? Não se dará conta de que o autismo e a opacidade do comportamento político do Executivo atingiu os limites do admissível? Ser-lhe-á indiferente a fatal crise de credibilidade para que arrasta o seu Governo? Que escondem as teias do caso Theias -- e esta caricatura de remodelação governamental? O prazo de validade política de Durão Barroso não estará definitivamente a esgotar-se?

Vicente Jorge Silva

"Portugal Positivo" do avesso

Imaginemos Orson Welles a fazer de Gene Kelly, isto é, dançando nas nuvens de uma comédia musical de Hollywood. Inimaginável, não é? Mas os promotores da milionésima iniciativa apócrifa dessa entidade anónima que dá pelo nome de "sociedade civil" (aqui com marca acentuadamente de direita) ousaram desafiar a imaginação, o paradoxo -- e o ridículo. Ou seja: para inaugurar as actividades de um movimento tolamente baptizado de "Portugal Positivo", convidaram o expoente máximo do cepticismo e do pessimismo nacionais: Vasco Pulido Valente.

Habituado a dizer mal de tudo e de todos, Vasco virou do avesso a musicalidade vaporosa do "Portugal Positivo". E algumas boas almas, decerto ansiosíssimas por ouvir palavras de fé e esperança no futuro da pátria, reagiram amarguradas às negras reflexões de Cassandra do nosso mais rabugento historiador. Os portugueses precisam de cultivar a auto-estima, como pretendiam os líricos organizadores da iniciativa? Não -- ripostou sadicamente Vasco --, o que eles têm é auto-estima a mais. Conclusão: o efeito cómico do evento não poderia ter sido maior e, por linhas tortas, os activistas do "Portugal Positivo" fizeram rir o país. Ora, rirmo-nos de uma iniciativa ridícula não será também positivo para o nosso espírito crítico e a nossa auto-estima?

Vicente Jorge Silva

O chu-chu de Rummy ao léu...

Ai o que me torci ontem de riso, quando a BBC passou imagens da casa em Bagdad do Ahmed Chalabi, virada do avesso... pelos seus compinchas americanos, a pretexto de trafulhices e embustes vários,incluindo passagem de informações sobre a coligação ocupante ao Irão.... Tadinho do Powell, que foi à ONU fazer aquela triste figura de agitar o frasquinho da destruição maçiça, fiado no que o Chalabi e sus muchachos venderam ao Rummy e à CIA...
É que eu conheço pessoalmente o chu-chu do Rummy, do Chenney, do Wolfie, do Perle e quejandos...
O bicho, já afamado pelos colossais desfalques que deixara na banca jordana, veio várias vezes à nossa Missão em Nova Iorque em 1997/98, quando estávamos no Conselho de Segurança e tínhamos a presidência do Comité de Sanções ao Iraque (quando se começou a aplicar o famigerado, e agora subitamente investigado, programa «oil for food»). Vinha queixar-se de tudo e em especial de como os americanos eram uns moles e uns bandalhos, de como o haviam traído, a ele e aos rebeldes iraquianos, a seguir à guerra do Golfo (há telegrafia no arquivo do MNE a contar as conversas com ele...)
O que vale é que Chalabi, Rummy e cia. são todos compinchas da mesma laia. E tratam de reciprocar-se na mesma moeda....
Atentem na entrevista que o Chalabi vai dar hoje às 14 horas à CNN. Ali, valentaço e rugindo que nem um leão da Mesopotâmia, a exigir a imediata saída da coligação ocupante do Iraque, pois claro!

Ana Gomes

Portugal ao léu...

A campanha eleitoral para o Parlamento Europeu não me tem deixado tempo para entretenimentos, incluindo «postar» no Causa Nossa q.g. (quanto gostaria).
O que só me dá mais ganas de chapar na cara do pregador dominical que, na última arenga, acusava o PS de desinteresse em esclarecer os eleitores, com o calendário das voltas que há mais de um mês, diariamente, venho dando pelo país em debates e acções de pré-campanha - sem cobertura dos media, claro, como mandam os interesses que pagam....
Mas esta manhã encontrei algum tempo para, ao menos, ler correspondência atulhada. E respiguei um mail chamando-me a atenção para um novo «blog». Não resisto a reproduzir para os leitores do Causa Nossa um post fresquinho do confrade «A loira não gosta de mim»:
Posted por Keiser Soze em 20.5.04:
"You show me yours, and I'll show you mine...?
"O povo iraquiano não avalia a contribuição portuguesa pelo tamanho do seu contingente" brada o MNE iraquiano depois de uma sessão de endoutrinação com Teresa Patrício Gouveia. Sabemos que os nossos bravos da GNR são valentes. Também sabemos que o Sr. Hoshyar Zebari é daqueles Ministros dos Negócios Estrangeiros que, por força das circunstâncias, é Estrangeiro aos seus Negócios (faz-me lembrar alguém, por acaso). Mas é que depois ele acrescenta "É a vontade política que essa presença demonstra que interessa".
Estaremos sempre com os iraquianos e esperamos que venham a conhecer a Paz e a democracia sem ser pela televisão.
Escusamos é de estar lá com "as partes à mostra". É que até eles já estão a ver..."
Ana Gomes

A corrida ao lugar de Prodi

Interessante análise do The Economist sobre os candidatos a presidente da Comissão Europeia, incluindo os seus prós e contras, probabilidades e possíveis apoios e oposições, curiosamente sem atribuir muita importância à cor política de cada um. António Vitorino, qualificado como «muito inteligente, estrela da Comissão e multilingue», aparece em 5º lugar (em 10); os seus pontos negativos são «low profile» e «sulista»...

A boa Ordem...

No Jornal de Negócios, o Luís Nazaré elogia a prestação da Ordem dos Advogados e do seu actual bastonário José Miguel Júdice na denúncia da má situação da justiça. Chega a dizer que, se houvesse uma Ordens dos Economistas assim, ele se inscreveria nela!...
«Sempre tive uma enorme dificuldade em discernir a razão de ser das ordens profissionais. Desta vez, porém, fui surpreendido. A Ordem dos Advogados trabalhou mesmo, conseguiu despir-se do seu lustroso fato corporativo e deu um contributo importante para a causa da justiça. Aqui está, pois, um belo exemplo do que as ordens poderiam fazer em prol do país. No dia em que a Ordem dos Médicos divulgar um trabalho semelhante sobre o sistema hospitalar, a dos Arquitectos sobre o licenciamento autárquico, a dos Engenheiros sobre o licenciamento industrial ou a dos Farmacêuticos sobre a fileira laboratorial e boticária, prometo que me inscrevo na Ordem dos Economistas.»
Eu compartilho da apreciação positiva da OA comparativamente com as demais. Mas seria menos incondicional no seu elogio. Todas as ordens, se a isso se dedicarem, podem ser muito boas na crítica das situações que afectam os seus membros, especialmente quando são imputáveis a outros agentes do sector ou aos serviços públicos (nisso a Ordem dos Médicos até peca por manifesto excesso sindical). Onde elas são muito menos diligentes é na formação, supervisão e disciplina dos seus próprios associados, tarefas que deveriam constituir as suas funções primordiais (embora também quanto a este aspecto a OA seja melhor do que as outras...). Se claudicarem aí não cumprem a sua missão. E infelizmente poucas cumprem...

Como sustentar o serviço público de saúde?

Segundo informa o El País a França criou algo de parecido com uma "taxa moderadora" na saúde, obrigando os pacientes a pagarem 1 euro por cada consulta ou exame. Conta-se assim arrecadar alguma receita mas especialmente visa-se moderar a procura desnecessária de cuidados médicos.
O sistema público de saúde francês, por muitos considerado o melhor do mundo, pertence ao modelo do seguro de saúde obrigatório (assurance-maladie, sendo financiado pelas contribuições regulares dos seus beneficiários e constituindo portanto uma vertente da segurança social. Nos últimos anos sobreveio um crescente desequilíbrio das contas, estando o Governo a tentar travar o crescimento do défice e do endividamento, incluindo medidas de aumento das receitas e de diminuição do ritmo de crescimento das despesas.
É evidente que as fundações do "Estado social" estão a ser submetidas em toda a parte a perigosos desafios quanto à sua sustentabilidade financeira. Enquanto a direita opta pelo emagrecimento dos serviços sociais públicos e pelo aumento da contribuição financeira dos beneficiários, a esquerda limita-se em geral a resistir às mudanças, deixando descarregar a pressão sobre o orçamento do Estado. Mas será esta atitude sustentável?

quinta-feira, 20 de maio de 2004

A Europa desaparecida

Depois de a maioria de direita ter votado com o PS as alterações à Constituição portuguesa, que visam adaptá-la ao futuro tratado constitucional europeu, o Governo acaba de confirmar o oportunismo errático, incoerente e serôdio da sua relação com a Europa, ao alinhar com o Reino Unido e outros expoentes do eurocepticismo contra um reforço da integração europeia. Fomos dos primeiros a subscrever a adopção da Constituição Europeia mas logo demos o dito por não dito, invertemos o sentido da marcha e riscámos "linhas vermelhas" contra a forma e a substância do nosso próprio compromisso. Alguém é capaz de perceber isto? Alguém vislumbra a visão estratégica que se esconde por detrás de tamanha e gritante incongruência? Estaremos a voltar outra vez aos tempos do cavaquismo mas seguindo um percurso inverso (quando Cavaco trocou o "thatcherismo" inicial por uma aproximação ao núcleo duro europeu)?
Dentro de dias, o já ausente debate europeu ameaça ser definitivamente eclipsado e pulverizado pelos efeitos do psicodrama do congresso do PSD. O anunciado duelo Santana-Durão ocupará os ecrãs e as primeiras páginas. A nossa pequenez doméstica e a nossa irrelevância internacional assumirão as proporções da caricatura periférica que não conseguimos deixar de ser. A Europa terá desaparecido em Oliveira de Azeméis.

Vicente Jorge Silva

O esplendor do PSD

Segundo tudo indica, o congresso do PSD deste fim-de-semana irá ser animado por mais um daqueles psicodramas que se tornaram, há muito, a imagem de marca do partido. Depois de Durão Barroso ter finalmente tirado a Santana Lopes o tapete das presidenciais, o autarca de Lisboa já deu sinais de que não irá calar o seu ressentimento e deixar passar em claro a nova "traição" perpetrada pelo eterno irmão-inimigo. Prevêem-se, assim, sugestivas cenas de faca e alguidar, fazendo vibrar ao rubro a plateia e dividindo-a em mais uma tonitruante guerra de clãs e baronias (que só Cavaco Silva conseguiu silenciar temporariamente, à conta das maiorias absolutas que conquistou). Teremos, portanto, o PSD de volta ao seu máximo esplendor, partido em cacos e pegando fogo à desolada pradaria da política nacional, numa antecipação simbólica dos incêndios estivais. As televisões, as rádios e os jornais terão pretexto para suculentas manchetes e a intriga politiqueira deixará de estar remetida para as primeiras páginas do "Expresso", como ultimamente vem acontecendo perante a apatia geral.

Vicente Jorge Silva

Resquícios monárquicos

Por via do Grande Loja ficamos a saber que o Grão-mestre do Grande Oriente Lusitano, António Arnaut, recebeu no Palácio Maçónico o senhor Duarte Pio de Bragança, descendente da antiga casa real portuguesa. Pode ser louvável que a Maçonaria queira ter boas relações com a "Casa de Bragança", como ele diz (embora a dita só exista hoje como fundação com esse nome). Mas não deixa de ser intrigante que, segundo a notícia, se utilizem expressões como o "herdeiro da coroa portuguesa" (herdeiro de quê?!), "Duque de Bragança" e "D." Duarte Pio, que só têm sentido na boca dos monárquicos, sendo um contra-senso quando utilizadas por um republicano, que devia recusar formas de tratamento e designações próprias do regime extinto em 5 de Outubro de 1910, tendo sido designadamente abolidos os títulos nobiliárquicos (ainda que hoje admissíveis pelo Código de Registo Civil, desde que existentes antes da República).
Claramente sobrevivem resquícios monárquicos onde menos se suspeita!...

O contencioso do preço dos combustíveis

A oposição, com o PS à cabeça, defende o alívio da pesada carga fiscal sobre produtos petrolíferos, para permitir travar ou atenuar a escalada dos preços dos combustíveis, provocada essencialmente pela subida da cotação internacional do crude. Os socialistas reeditam assim a política voluntarista de contenção dos preços mediante a abdicação de receita fiscal (e mesmo à custa de subsídios), que adoptou durante muito tempo quando estava no Governo. Compreende-se a lógica da solução e o efeito colateral que ela teria na criação de dificuldades acrescidas à ministra das Finanças para conseguir manter o défice das finanças públicas dentro dos limites do PEC. De facto, não se vislumbra uma fonte alternativa para as receitas que se deixariam de cobrar.
Resta saber se o Governo poderá manter-se inerte, caso os preços continuem a subir para o céu, sacrificando a ansiada retoma económica e favorecendo a inflação; e se, por sua vez, o PS, com esta insistência no controlo dos preços à custa das finanças públicas, não agravará a sua imagem de imprudente menosprezo em relação à disciplina financeira, má fama que tanto mal continua a causar à sua credibilidade como alternativa de governo.

Os crimes da ocupação

A presidência irlandesa da União Europeia emitiu um dos mais fortes protestos contra a repressão israelita nos territórios ocupados, a propósito do ataque com disparos de mísseis e obuses de helicópteros e tanques (!!) contra uma manifestação palestiniana, assassinando uma dezena de pessoas e ferindo várias dezenas, sendo a maior parte delas crianças e adolescentes.
A presidência da UE considera que, como potência ocupante à face do direito internacional, Israel está sujeito às Convenções de Genebra, sendo crimes de guerra este tipo de acções repressivas fora de toda a proporção, que só revelam «indiferença pela vida humana». Só é pena que mais uma vez a UE se tenha ficado pela condenação verbal, sem sequer ameaçar com sanções contra Telaviv, designadamente no quadro das relações comerciais e de outra cooperação Israel-UE.

PS - O Diário Digital diz que a UE "apelidou" Israel de "potência ocupante", como se fosse algo de impróprio ou de injurioso!. Ignorância lapuz ou má fé enviesada da folha internética?

Actualização
O Conselho de Segurança da ONU condenou Israel pela matança de Rafah. Os Estados Unidos, que habitualmente protegem Israel com o seu veto, não o usaram desta vez, deixando o seu aliado isolado, tal a gravidade da violência repressiva das forças israelitas. Contudo, em ostensivo desafio à decisão do CS, Israel já fez saber que vai continuar com a operação em curso. É evidente que a condenação internacional não basta para parar os falcões de Telaviv.

Notícias da blogosfera

1. Mais um blogodecesso
Findou definitivamente A Quinta Coluna, o que já se adivinhava desde a saída anunciada de um dos seus animadores. Era uma das vozes mais estimáveis da esquerda internética. É pena.

2. O homem dos blogues
Pelo Professorices chego aos dois-blogues-dois de António Granado, um como jornalista -- o Ponto Média -- e outro como universitário -- o PhDWeblogs --, a que deve juntar-se ainda o website Ciberjornalismo.com . E não é que são todos de grande qualidade e utilidade?

quarta-feira, 19 de maio de 2004

Os canhões da Al-Qaeda

Os canhões de água da PSP estão sob forte suspeita de ligações à Al-Qaeda após o banho a que submeteram a comitiva governamental na apresentação de ontem, em Algés. Como se explica que, em vez de dispararem para a frente, tivessem disparado para trás? Alguém acredita que a rega de José Luís Arnaut e Figueiredo Lopes tenha sido acidental? Alerta vermelho!

Luís Nazaré

A nova Concordata

Está finalmente disponível o texto da nova Concordata com a Igreja Católica, ontem assinada no Vaticano, destinada a substituir a Concordata de 1940, celebrada entre Salazar e Pio XII. O Público transcreve uma grande parte, estando o texto integral disponível no website do Centros de Estudos de Direito Canónico da Universidade Católica.
É um texto longo e nem sempre claro, cuja importância é desnecessário encarecer, dado que, uma vez ratificada, a Concordata se torna "ipso iure" direito interno português, directamente aplicável. Uma das surpresas desagradáveis é o art. 15º cujo texto é o seguinte:
1. Celebrando o casamento canónico os cônjuges assumem por esse mesmo facto, perante a Igreja, a obrigação de se aterem às normas canónicas que o regulam e, em particular, de respeitarem as suas propriedades essenciais.

2. A Santa Sé, reafirmando a doutrina da Igreja Católica sobre a indissolubilidade do vínculo matrimonial, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio canónico o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio.
É certo que se trata de simples reprodução do texto do protocolo de 1975, em substituição do art. 24º da Concordata de 1940, que iniquamente proibia o divórcio nos casamentos celebrados sob forma canónica. Mas se por isso mesmo tal formulação ainda poderia ser palatável em 1975, permitindo salvar a face do Vaticano (substituindo a proibição legal pela simples interdição religiosa), já se não entende de modo algum numa Concordata nova, quando esse problema já se não coloca. Tal preceito diz respeito somente às relações entre a Igreja e os seus fiéis, não estabelecendo nenhuma posição comum nem nenhuma relação bilateral entre as duas partes nesta convenção. O Estado é por princípio alheio à definição e cumprimento dos deveres religiosos dos seus cidadãos, pelo que não deve associar-se à sua "validação oficial" num instrumento jurídico bilateral por ele subscrito, porque lho não permite o princípio da separação, bem como, no caso concreto, a garantia constitucional do direito ao divórcio independentemente da forma de casamento, constante da Constituição (que ainda não existia em 1975).
Trata-se por isso de um texto deslocado e despropositado, que poderia figurar, quando muito, como declaração unilateral do Vaticano anexa à Concordata, mas nunca como preceito no próprio articulado da Concordata, que vincula ambas as partes. Lamentável. Além do mais, não havia necessidade...

Os que não contam

«But at the same time thousands of others -- men, women, the elderly and the very young -- have been killed or maimed with far less fanfare. No one knows how many. They are Iraqi civilians, and the Americans and the British do not bother to keep count of the people they have "liberated" and then killed.»
(Kim Sengupta e Marie Woolf, Independent, 17-05-2004)

Estimativas conservadoras apontam para cerca de 10 000 mortos civis iraquianos (não incluindo portanto os militares durante a invasão). Estes falharam a "libertação". As baixas mortais entre as forças de ocupação são inferiores a 900.

Ou há moralidade...

A presidente da Câmara municipal de Leiria diz que esta cidade não é menos do que Viseu e que por isso também quer uma universidade pública. Tem toda a razão. Dado que para criar novas universidades não é preciso que elas sejam necessárias nem que se justifiquem os seus custos, penso que depois de Viseu todas as demais capitais de distrito devem ter uma, devendo o Governo oferecê-las imediatamente a Viana do Castelo, Bragança, Leiria, Santarém, Setúbal e Beja.
Proponho mesmo que doravante seja aditado um novo direito fundamental à Constituição, a saber, o direito a ter uma universidade pública ao pé da porta. Nisto não pode haver filhos dilectos e enteados desprezados...

terça-feira, 18 de maio de 2004

Neoconfessionalismo

No seu artigo de hoje no Diário de Notícias Jorge Bacelar Gouveia - que além de conhecida personalidade católica é também membro da recém-constituída, e aliás mui católica, Comissão da Liberdade Religiosa - defende hoje que «o Estado deve se amigo da religião». No caso português subentende-se que deve ser amigo especialmente da religião católica.
Essa afirmação é porém assaz equívoca, na medida em que insinua uma atitude pró-religiosa do Estado. Contudo, num regime de separação constitucional entre o Estado e as igrejas, como o nosso, o Estado só pode adoptar uma posição de neutralidade e indiferença em matéria religiosa. A religião não faz parte da sua agenda. É evidente que não pode hostilizar as igrejas, nem muito menos os crentes. Pelo contrário, deve respeitar e proteger a sua liberdade de confissão e de culto. Mas a liberdade religiosa não consiste somente em ter e praticar uma religião, mas também em não ter nem praticar nenhuma. E esta vertente "negativa" da liberdade religiosa também merece a mesma protecção do Estado. Para ele deve ser tão meritória, ou não, a posição do crente mais fundamentalista como a atitude do anticlerical mais militante. Ambos merecem a sua "amizade", o que quer dizer que ele não pode ser amigo preferencial da religião em geral, nem muito menos de nenhuma religião em particular.

Secretismo até ao fim

A nova Concordata entre o Estado português e o Vaticano foi assinada esta manhã. Mas o texto continua sem ser divulgado. Mantém-se assim o paradigma de secretismo que rodeou a negociação do novo acordo, por ambas as partes, numa demonstração de desprezo, quer pelos cidadãos em geral, quer pelos católicos em particular. O contrário do exigem as regras da democracia deliberativa e participativa prevista na Constituição. No segredo dos deuses, melhor se diria.
Como diz António Marujo hoje no Público:
«(...) Um tratado internacional poderia ser negociado tendo em conta também o debate que sobre ele se fosse fazendo - se se conhecessem os pormenores desse debate. Isso seria difícil de aceitar pela diplomacia do Vaticano, que gosta de trabalhar mais discretamente, embora para muitos católicos tivesse sido importante participar nesse debate. O Estado português, por seu lado, tinha obrigação de dizer aos seus cidadãos o que estava a negociar em seu nome. Tudo isto soa ainda mais estranho quando, ainda ontem à tarde, se desconhecia se o Governo iria divulgar já o texto final, ou se esperaria mais alguns dias. (...) E isto, obviamente, não é uma questão formal.»

Encerramentos & suspensões

Depois de o Bloguítica - o blogue de Paulo Gorjão sobre política e relações internacionais - ter anunciado uma suspensão por alguns dias, mas sem garantia de regresso ("se voltar", deixou ele em suspenso...), é agora a vez dos Cordoeiros - um "lawblog" de magistrados sobre coisas da justiça - anunciarem a sua saída do espaço dos blogues. Foram presenças suficientemente longas e marcantes para se tornarem notados e justificarem plenamente a sua existência. Esperemos que o primeiro regresse do intervalo que deu a si mesmo e que o segundo reapareça com novo projecto.

Apostilas das terças

1. Estado de Direito!?

Israel continua a destruir casas sem conta nos territórios ocupados, deixando milhares de palestinianos desalojados, invocando umas vezes razões de retaliação contra ataques terroristas (destruindo as casas dos familiares dos presumidos autores), outras vezes razões de segurança. Tratando-se de uma potência ocupante, tais práticas constituem crimes contra a humanidade. No entanto, o Supremo Tribunal de Israel acaba de legalizar essas práticas. Israel, um Estado de Direito?!

2. Como havia poucas...
O Primeiro-Ministro anunciou a criação de uma universidade pública em Viseu, invocando o cumprimento de uma promessa eleitoral. A promessa eleitoral era leviana (tendo em conta o número de universidades existentes e a diminuição da procura) mas só comprometia o PSD; o seu cumprimento é irresponsável, porque compromete definitivamente o orçamento do Estado e os governos que hão-de vir. Segundo relatam as notícias, o projecto da nova universidades não colide com os interesses das universidades particulares já lá instaladas, mas nada se ouviu sobre os interesses do ordenamento territorial da rede pública de ensino universitário. Bem parecia que neste "dossier" o Governo cuida mais de interesses privados do que do interesse público.

3. O Prémio Nobel da guerra
No seu artigo de ontem no Público, o ministro dos negócios estrangeiros de Timor-Leste, J. Ramos Horta veio defender a invasão e ocupação do Iraque, dando mais uma prova do seu seguidismo em relação a Washington, que já tinha manifestado quando Timor foi um dos primeiros países a ceder aos Estados Unidos na questão da imunidade dos norte-americanos perante a jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Para um prémio Nobel da Paz como ele, a "promoção" (termo dele) de uma guerra flagrantemente ilegal à face do Direito internacional deve ser uma originalidade.
Considerando o argumento de Horta par justificar a guerra - o fim da ditadura de Saddam Hussein "para salvar pessoas" (o que é pelo menos de mau gosto, tendo em conta os muitos milhares de mortos iraquianos desde a invasão...) -, cabe perguntar se alguma vez defendeu que os Estados Unidos deveriam ter invadido e ocupado a Indonésia, quando ela não era somente uma ditadura mas também mantinha a ocupação ilegal de Timor e perpetrava o genocídio do seu povo. E, já agora, se ele acredita que, caso fosse Bush o ocupante da Casa Branca na altura do referendo de Timor, os Estados Unidos teriam intervindo para pôr fim à violência assassina das milícias integracionistas, para salvar os timorenses e garantir a independência do País...

segunda-feira, 17 de maio de 2004

Fair play benfiquista

Quinze minutos avassaladores e uma imensa capacidade de resistência teriam sido suficientes para justificar a gostosa vitória do Benfica na final da Taça. José Mourinho, no seu habitual registo clint-eastwoodiano, deu mais sal à festa ao culpar (em quê?) a arbitragem pela derrota. Não há maior gozo que o de irritar as hostes adversárias.

PS - Foi bonito o gesto da claque benfiquista ao ostentar uma tarja onde se lia "Apesar de tudo, vão representar as nossas cores. Boa sorte na final do dia 26!". Ficamos a aguardar gestos congéneres da concorrência.

Luís Nazaré

A fonte do populismo

O histórico fontanário da Sabuga, em Sintra, está à beira de se transformar num caso exemplar de cedência ao populismo estético. Numa peça assinada por Luís Filipe Sebastião, no Público de hoje, ficámos a saber que a intervenção planeada pela Câmara pretendia devolver à bica o seu prospecto barroco, removendo o inestético lambril de azulejos que a canhestra reconstrução de 1956 havia introduzido. Até aqui, tudo bem. Mas eis que uma putativa Associação de Defesa do Património de Sintra, com o delicioso argumento de que "a fonte da Sabuga é querida pela população e (...) não se deve mexer no imaginário das pessoas" decide entrar em campo e interpelar a edilidade: "Que departamento se vai responsabilizar pela constante limpeza de grafittis que irão aparecer se existir apenas reboco caiado?"

Foi o suficiente para o presidente da Câmara, Fernando Seara, ter mandado parar os trabalhos de recuperação para "ouvir as populações". Pouco importará que a intervenção tenha sido avalizada pela divisão municipal do Património Histórico-Cultural e pelo Instituto do Património Arquitectónico e de Arqueologia. O "imaginário" foleiro dos habitantes convencerá sem dificuldades o sensível presidente da Câmara. E que tal um revestimento plástico, lavável e imune a grafittis, patrocinado por uma cadeia de fast-food?

Luís Nazaré

Almocreve das Petas

Mais um aniversário blogosférico, desta vez de um dos mais originais e sedutores blogues, o Almocreve das Petas, dedicado à bibliofilia (um manancial de informação), mas não só. Uma das minhas visitas regulares. De lá nunca se vem de espírito vazio. Parabéns!

a few good men - uma questão de honra

1. Uma eventual vitória do Porto na Final da Taça, enfim, tinha-me sabido a ginjas. Porque eu odeio ginjas. O LN é que pôs aqui muito bem a questão dos sabores repescando uma expressão em desuso - aquando do golaço do Geovanni em Alvalade e consequente vitória encarnada: "soube-me pela vida". Subscrevo e repito e proponho aprovação por unanimidade!

2. O Sokota, para mim o jogador benfiquista do ano, disse antes deste jogo: "se ganharmos ao Porto somos a melhor equipa da Europa porque eles vão ganhar ao Mónaco". Pela lógica futebolística, é bem verdade. também é certo que there's no such thing as lógica futebolística mas sabe-me pela vida escrever uma coisa destas.

3. Outra coisa que também não existe no futebol é justiça. Pode dizer-se que - em havendo justiça - o Porto deveria ter ganho porque é, de facto, a melhor equipa. Mas também não seria errado dizer-se: é "justo" que o Benfica leve a Taça para casa. Isto depois de uma das mais dramáticas épocas da sua história. E logo no centenário.
Uma equipa sem dinheiro para contratações, que andou o ano todo a treinar em relvados emprestados, com mais lesionados do que nunca e com duas (logo duas) tragédias. Aliás, não andarei muito longe da verdade se prever o sonho que muitos benfiquistas terão esta noite. É que, atentando nos 2 golos do Benfica, é bem perceptível uma estranha impressão. Fyssas a atacar? A fazer o flanco todo, flectir para o meio, fintar e insistir até fazer golo? E Simão, desaparecido durante 100 minutos, a marcar de cabeça?!
Fechem os olhos, imaginem apenas o equipamento vermelho e branco, e digam lá se aquela raça e qualidade técnica do grego não seria bem mais própria do infeliz capitão júnior Bruno Baião; e se aquela habilidade com a cabeça, naquela posição do terreno, não poderia ser um movimento típico do ponta-de-lança Miki Fehér?

you must remember this

Há poucos dias atrás, fui visitado pelo meu primeiro amor.
(uma das vantagens dos blogues é que podemos escrever frases como a anterior sem corar)
Mas, tenham calma, este não é um post para fazer chorar as pedras da calçada. Não inclui recordações nostálgicas de beijinhos ao pôr-do-sol açoriano ou coisa do género. Apesar da imagem ter ficado desde já registada. Apenas peço um pouco do vosso tempo para partilhar uma impressão. Os primeiros amores - pelo menos no caso em que permaneceu uma relação com os mesmos - estabelecem uma ponte curiosa com o nosso passado. É que tratam-se de duas pessoas que se recordam de um tempo único. Mais uma vez, insisto, não me refiro a memórias ingénuas sobre a paixão ou juras improváveis de amores eternos. É algo bem mais prosaico e, ao mesmo tempo, bem mais invulgar. Quando duas pessoas que partilharam um afecto juvenil se conhecem e relacionam há tanto tempo, partilham normalmente um segredo uma sobre a outra. A certeza de que houve um tempo em que ambas foram simplesmente boas pessoas. E isto, simplesmente, não é pouca coisa.

Hitchcock Sportif

Eu tenho uma banda. Vestimos fato mas a gravata está desapertada e calçamos uns ténis da moda com os atacadores soltos. Somos um baixo, uma lead guitar e uma voz. Tocamos umas versões nossas de músicas melancólicas de songwriters (normalmente) sorumbáticos. Temos meia dúzia de inéditos que ninguém conhece. Adoro o que faço mas trocaria tudo pela certeza de que a minha banda teria sucesso. Nunca demos um concerto. Mas resolvi fazer um post com o nome do grupo porque não me apetece perder tempo a ir registar tal coisa no Palácio Foz ou na SPA. Obrigado, Blogger.

O tempo do "apartheid"


Martin Luther King

Quando falamos em "apartheid" lembramos usualmente a Africa do Sul até à transição democrática de inícios dos anos 90. Mas a segregação racial também foi prática, doutrina e lei nos Estados Unidos durante muito tempo depois do fim da escravatura.
Como lembra o New York Times, passam agora 50 anos sobre a histórica decisão Brown v. Board of Education do Supremo Tribunal federal, que declarou inconstitucional a segregação racial nas escolas, ao dar provimento ao recurso contra a rejeição de uma criança negra numa escola reservada a brancos. Em muitas áreas dos Estados Unidos, especialmente no sul, havia segregação legalmente estabelecida quanto aos locais de residência, escolas, transportes públicos, instalações públicas, acesso aos empregos, forças armadas, além da denegação de direitos políticos, incluindo o direito de voto, etc.
A referida decisão do Supreme Court teve uma grande importância no desencadear do movimento de direitos cívicos dos negros norte-americanos, que culminou com as leis federais contra a segregação dos anos 60 sob a presidência de Kennedy (Civil Rights Act, 1964) e que fez heróis como o líder negro Martin Luther King, assassinado em 1968.
A democracia nos Estados Unidos tem uma história mais curta do que se pensa habitualmente.

Mais uma vítima do Iraque?

Acumulam-se na Grã-Bretanha os rumores sobre a possível saída de Blair do Governo e da liderança do Partido trabalhista antes das próximas eleições gerais - previstas para o próximo ano -, no seguimento de repetidas sondagens que o dão como peso negativo no Partido, que perderia o poder com ele na liderança.
Se tal se verificar, é lamentável que Blair fique na história mais como uma vítima da insensata guerra do Iraque e da sua canina aliança com Bush, em vez de ficar conhecido pelas notáveis mudanças políticas que protagonizou no Reino Unido, designadamente a revolução que fez no Partido Trabalhista, as reformas constitucionais (nomeadamente a Câmara dos Lordes), a aprovação do Bill of Rights, a autonomia política da Escócia e do País de Gales, a paz na Irlanda, a reforma dos serviços públicos, designadamente o Serviço Nacional de Saúde e o ensino, salário mínimo garantido, etc.

Sinistro

Se são verdadeiras as gravíssimas acusações agora publicadas pela revista New Yorker, pela pena credível de Seymour M. Hersh, segundo as quais foi o próprio Rumsfeld a aprovar um "programa altamente secreto" de interrogatório dos presos no Afeganistão e no Iraque, incluindo sevícias físicas e humilhações sexuais como as abundantemente documentadas na prisão de Abu Ghraib, então tudo o que se tem escrito contra a falta de escrúpulos do ministro da defesa de Bush se revela uma subestimação acerca do seu carácter sinistro.
Quem criou o campo de concentração de Guantánamo é bem capaz disso...