sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Melhor do que a encomenda

1. Não há memória de um governo minoritário gozar de uma condição política tão favorável como o atual. E não é somente por mérito próprio nem por haver uma opinião pública maioritariamente agradada pela mudança e pela distensão política prevalecente. É também pela ausência de oposição ou pela sua ineficácia.
Há uma direita que não renovou ideias nem protagonistas e que continua ressabiada pela derrota parlamentar e sem uma proposta alternativa de governo, à espera que um acidente político ou o tempo e a usura governativa lhe entregue de novo o poder algures no futuro. Há uma extrema-esquerda, que desde sempre tinha sido o azorrague de todos os governos e que agora, entrada na esfera do poder, mesmo quando não alinha com o Governo, o poupa cuidadosamente. Há um movimento sindical em benévola expetativa. Há um PR amistoso, mesmo se vigilante por dever de função. E nem há sequer a tradicional oposição interna dentro do próprio PS.

2. A principal responsabilidade por esta invejável orquestração sem precedentes cabe antes de mais ao líder do PS e primeiro-ministro, António Costa. Mas há também conjunções políticas felizes, em que as coisas saem "melhor do que a encomenda".
Tradicionalmente, os governos do PS estavam entre dois aguerridos fogos permanentes, à direita e à esquerda. O atual entendeu-se com a extrema-esquerda e condicionou a direita, ainda a lamber as feridas da derrota, vinculando-a à experiência traumática da crise e da austeridade orçamental e à herança tóxica que deixou em alguns dossiers (como a banca). A oposição bem tenta fazer prova de vida, mas não convence. E não é só por virtude do Governo.
É certo que surgem nuvens na frente económica e orçamental que podem anunciar mau tempo lá mais para a frente. Os fatores de risco não podem ser ignorados (como aqui se tem alertado) nem desvalorizados (tentação de todos os governos). Mas, ressalvado esse risco, enquanto o Governo continuar a "entregar resultados" e a conjunção política favorável se mantiver e enquanto não houver uma oposição convincente à direita, não é de prever nenhum abalo político sério na paisagem política.

Subversão constitucional

1. É evidente que se o Brasil tivesse um sistema de governo de tipo parlamentar, como Portugal, em que o Governo assenta na (e depende da) confiança política do parlamento, o Governo Dilma Roussef já teria caído há muito, por quebra da heteróclita e latitudinária coligação de apoio no Congresso, em consequência da crise económica e política do país.
Acontece, porém, que o Brasil tem um sistema de governo presidencialista, de separação e independência do governo em relação ao parlamento (e vice-versa), em que o Presidente governa por efeito da legitimidade própria resultante da sua eleição direta para essa função, pelo que o executivo não pode ser demitido pelo parlamento nem substituído por outro com base em diferente coligação parlamentar (como pode suceder num sistema de governo parlamentar).

2. É certo que, seguindo o modelo norte-americano, o Presidente pode ser destituído por efeito de condenação por "crime de responsabilidade", cabendo o julgamento e a aplicação dessa pena à câmara alta do Congresso. Mas trata-se, antes de mais, de um procedimento de responsabilidade penal e não propriamente de responsabilidade política.
Ora, num Estado de direito constitucional para haver responsabilidade penal é preciso antes de mais existir um crime devidamente tipificado na lei e efetivamente cometido, culposamente, beyond any reasonable doubt. Mesmo nos "crimes políticos" a condenação não pode assentar na arbitrariedade nem na conveniência política. Parece evidente que essa condição básica faltou na condenação da Presidente brasileira.

3. Por isso, num regime presidencialista, o impeachment do chefe do executivo não pode ser abusado de modo a transformá-lo numa caricatura de moção de desconfiança e de mudança parlamentar do governo, que é uma instituição própria dos regimes parlamentares.
É absolutamente contrário à lógica do sistema presidencialista que um Presidente eleito na base de uma certa plataforma política seja depois substituído pelo Congresso, à revelia do voto popular, por um Presidente com uma orientação política oposta e com o apoio político decisivo dos partidos que perderam a eleição presidencial (e do próprio candidato vencido!).

4. Menos de três décadas depois da Constituição de 1988, a conjugação do sistema presidencialista com um sistema partidário ultrafragmentado e "fulanizado" revela enormes disfunções. Talvez seja tempo de repensar o sistema de governo, sem excluir a hipótese parlamentar, apesar de claramente rejeitada no plebiscito de 1993 e de ser alheia à cultura e à tradição política brasileira.
Se é isso que se quer, então mude-se primeiro a Constituição, em vez de a subverter ad hoc, enxertando "a martelo" uma moção de censura ao governo num sistema presidencialista, de acordo com as conveniências partidárias, como se fez na destituição de Dilma Roussef. Além do mais, é um mau precedente para o futuro.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Mais do mesmo


Foi para isto que se reverteu a concessão privada da STCP, para voltar à espiral dos prejuízos e do endividamento? E quando vem a prometida municipalização dos transportes coletivos de Lisboa e do Porto, acabando a sua gestão pelo Estado (e à custa do orçamento do Estado)? Até quanto vai manter-se o iníquo financiamento dos transportes de Lisboa e do Porto pelos contribuintes do resto do País, que já pagam integralmente os seus próprios transportes públicos urbanos? Até quando se mantém o comprometedor silêncio da ANMP sobre este indevido privilégio de Lisboa e do Porto?

É desta?

Está a ser preparada a revisão dos estatutos dos juízes e do Ministério Público, embora não se saiba que motivos a justificam. Será que é desta vez que vai finalmente ser revogado o seu regime especial de pensões, um dos mais escandalosos privilégios corporativos existentes em Portugal?
Porque é que, enquanto as pensões no setor público equivalem hoje a menos de 80% da última remuneração, com tendência para descer, as pensões daqueles hão de equivaler a 100% da remuneração (aliás relativamente elevada), e com atualização automática em caso de aumento desta? Os partidos de esquerda, que devem ser campeões da igualdade de tratamento - que, aliás, deve ser ainda mais exigente no setor público -, não têm nada a dizer sobre isto?

Adenda
Vem a propósito transcrever aqui o que deixei escrito neste post de há três anos:
«A principal missão da esquerda democrática é a luta contra os privilégios e pela igualdade de tratamento do Estado. Não há maior perigo para a saúde da democracia e para o desempenho do Estado social - causas prioritárias da esquerda social-democrata - do que a captura do Estado por grupos de interesse ou por visões corporativistas, incluindo os que operam ou se manifestam no seio do Estado».

É pena

O Governo não demorou a desmentir a ideia de que estaria a ser considerada a hipótese de adiar a extinção da sobretaxa do IRS sobre rendimentos mais altos e da "contribuição especial de solidariedade" (CES) sobre as pensões de valor mais elevado.
É pena, em especial no que respeita à CES, não tanto pelo receita que ela produz, que não é muito significativa, mas sim por ela incidir sobre pensões de muito elevado montante, que são em geral muito superiores ao que justificariam as contribuições dos respetivos titulares. Os felizes beneficiários de tais pensões agradecem seguramente, mas a equidade do sistema de pensões, não.
[revisto]

Adenda
Segundo o Correio da Manhã de hoje (2/9), o Estado paga 1770 pensões superiores a 5000 euros.

Adenda 2
Respondendo a perguntas de leitores, esclareço que: (i) a minha pensão não está sujeita a CES, por ficar abaixo do limiar desta, mas se estivesse defendia a mesma posição; (ii) obviamente, o meu IRS está sujeito a sobretaxa, mas não sufraguei a antecipação da sua extinção. Quem lê este blogue sabe que não costumo pautar as minhas posições políticas pelos meus interesses pessoais.

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Três em um

Eis uma política que merece todo o aplauso, a de concessionar à exploração privada (nomeadamente hoteleira) edifícios públicos abandonados ou sem serventia apropriada, muitas vezes em estado de degradação acelerada, e que não podem ou ou não devem ser alienados.
Trata-se de um negócio 3-em-1: recuperação e valorização do património público edificado, realização de receita pública (renda da concessão) e investimento privado. Na situação orçamental e económica do País, não é pouca coisa. 
Esta nova política alimenta a esperança de um novo olhar quanto à valorização (por venda ou concessão/arrendamento) dos inúmeros edifícios públicos desocupados ou subutilizados por esse país fora, de que nem sequer existe inventário conhecido, e que a inércia política ou o desleixo burocrático votam há décadas à degradação e à destruição.
Só no local onde costumo passar férias, há quatro edifícios nessas condições, pertencentes à Marinha e aos portos...

Adenda
Um leitor levanta uma dúvida: se esta política tem luz verde dos parceiros de coligação governamental, que por razões ideológicas se opõem em geral à concessão de bens ou serviços públicos a empresas privadas. Mas não tenho notícia em contrário...

Ao contrário


1. A narrativa anti-UE da extrema-esquerda reza invariavelmente que a integração europeia foi feita (e só serve) para proteger as grandes empresas e assegurar os seus lucros.
Mas os factos provam exatamente o contrário, como mostram as enormes punições aplicadas pela União aos cartéis ou aos abusos de poder de mercado das grandes empresas, sejam europeias (desde a Philips à Daimler Benz) ou extra-europeias (desde a Microsoft norte-americana à Gazprom russa).
A decisão de ontem da Comissão Europeia, de aplicar uma coima de 13 000 milhões de euros (!) à poderosa Apple, por ter beneficiado de ajudas de Estado ilícitas na Irlanda (isenções fiscais seletivas), confirma inteiramente esse ponto.

2. Acresce que só a União poderia sancionar efetivamente tais infrações à concorrência e combater o poder económico das multinacionais. Nenhum Estado isoladamente teria interesse ou poder para punir essas infrações. Pelo contrário, como mostra o caso da Apple, muitas vezes são os próprios Estados-membros que promovem essas infrações em benefício próprio.
No final, o que isto mostra é que a globalização económica e a competição nacional pela atração de investimento estrangeiro criaram uma perigosa "falha de mercado", que torna ineficaz a defesa da concorrência limitada ao plano nacional. A UE é a resposta apropriada a essa falha de mercado, sendo uma estulta ilusão a ideia de retorno a um mirífico "controlo nacional" da economia.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Privilégios

O Estado tem razão na controvérsia sobre o âmbito da isenção do IMI sobre prédios da Igreja Católica e das suas instituições.
Nos termos da Concordata, a isenção fiscal abrange somente «os lugares de culto ou outros prédios ou parte deles diretamente destinados à realização de fins religiosos». Portanto, não existe nenhuma isenção geral da propriedade religiosa. Estão abrangidos claramente as igrejas e capelas, os mosteiros e conventos, os seminários e outras instalações e recintos diretamente afetos a fins religiosos. Mas já não estão incluídos, por exemplo, as habitações dos sacerdotes nem as instalações e espaços com outros fins de muitas instituições religiosas.
Para privilégios, já chegam os que o Vaticano obteve da República Portuguesa na pródiga Concordata. É um abuso procurar alargá-los para além disso.

Privatização do Estado social (2)

1. Por definição, no Estado social a realização dos direitos sociais incumbe ao Estado, não aos particulares
Se a Constituição o não proibir e se o Estado não quiser ou não puder providenciá-los diretamente e em espécie - escola pública, SNS, segurança social pública, habitações sociais, etc. -, pode subsidiar a aquisição desses serviços pelos interessados (cheque-dentista, subsídio de renda, etc.) ou contratualizar a sua provisão por entidades particulares (colégios associados, medicina convencionada, IPSSs, etc.).
A este propósito, fala-se hoje no "Estado garantidor", que financia a aquisição de serviços sociais no mercado, como alternativa ao "Estado prestador".

2. O que não faz muito sentido é o "Estado impositor", ou "Estado social sem custos", em que o Estado se exime das suas próprias obrigações constitucionais, impondo-as unilateralmente e seletivamente a certos particulares, sem compensação.
Seria absurdo que o Estado descarregasse sobre as clínicas privadas o encargo da realização do direito à saúde dos doentes pobres, obrigando-as a reduzir os preços; tal como seria despropositado impor aos colégios privados a responsabilidade de subsidiar o direito ao ensino dos alunos pobres, através da obrigação de redução das propinas. O mesmo raciocínio vale para o direito à habitação.
Se vingar esta solução original de privatização gratuita das obrigações sociais do Estado, está descoberto o caminho para a sustentabilidade orçamental do Estado social...
[revisto]

Privatização do Estado social

É pelo menos controversa a decisão de prolongar por mais cinco anos o congelamento das rendas dos inquilinos de baixos rendimentos e das "lojas históricas", adiando por igual tempo a plena implementação do mercado de arrendamento urbano.
Em primeiro lugar, é ao Estado que incumbe constitucionalmente garantir o direito à habitação, incluindo o subsídio de renda dos inquilinos com menores rendimentos. Privatizar essa obrigação pública, transferindo-a dos contribuintes em geral para os senhorios, não é somente indevido; é também arbitrário, por discriminação seletiva contra os senhorios dos imóveis nessa situações.
Em segundo lugar, se o Estado quer apoiar as chamadas lojas históricas, pode subsidiá-las ou dar-lhes outras ajudas públicas (isenções fiscais, etc.). Não deve é transferir para os senhorios os custos dessa política pública.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Júbilo (2)

No seu editorial de hoje o Público apressa-se a dar como adquirido o óbito do TTIP. E depois de dizer que o "tratado era mau", acrescenta que "o secretismo que envolveu as negociações, as cedências que impunha à Europa em questões sensíveis como a protecção do ambiente ou da alimentação humana ou o poder de decisão em conflitos comerciais concedido às grandes conglomerações empresariais justificam e tornam até desejável esse fracasso".
É difícil imaginar tanta falta de rigor e tão precipitado juízo. De facto:
1º - Não existe ainda nenhum tratado: nenhum capítulo está concluído e em 1/3 dos capítulos ainda não se iniciaram as negociações;
2º - O alegado secretismo nas negociações é contrariado pela divulgação oficial de todas as propostas negociais da UE e pelo conhecimento dos pontos pré-acordados por parte de todos os governos nacionais e de todos os deputados do PE e dos parlamentos nacionais;
3º- Nenhum  dos pontos já pré-acordados envolve qualquer cedência da UE em nenhum dos referidos pontos;
4º - O sistema de resolução de litígios de investimento ainda não foi negociado e a proposta da UE que está na mesa afasta o malsinado sistema de arbitragem particular entre investidores e Estados.
Se o editorial de um jornal de referência pode revelar tanta falta de rigor, como exigir dos cidadãos comuns melhor informação sobre o TTIP?!

Adenda
Entretanto, a Comissão Europeia - que é única instituição da UE competente para conduzir as negociações - já veio desmentir a "morte" do TTIP, acrescentando que as negociações "estão vivas e recomendam-se"
Ficamos a aguardar o editorial do Público de amanhã...

Júbilo

Esta notícia sobre a morte do TTIP é, para já, um exagero, mas a verdade é que as negociações se encontram longe de concluídas e que persistem importantes divergências entre a UE e os Estados Unidos.
Se efetivamente vierem a fracassar, não será apenas a extrema-esquerda antiliberal que rejubilará, como sempre. Será acompanhada também pela direita nacionalista, tão protecionista como aquela, com Donald Trump e Marine Le Pen à cabeça. E também haverá champanhe em Moscovo e em Pequim para celebrar o falhanço de Bruxelas e Washington em assegurar a liderança euro-americana do processo de liberalização e regulação da ordem económica internacional.

Adenda
Haveria uma terceira capital a celebrar a morte do TTIP, mas por razões inversas. A Grã-Bretanha veria aí uma excelente razão ex post facto para o Brexit - o fim da política económica externa de Bruxelas - e avançaria imediatamente com uma proposta de negociações de um  TTIP alternativo, entre os EUA e... o Reino Unido!

Estranho consenso

1. Sem grande surpresa, ficamos a saber, a partir dos dados oficiais, que a celulose está entre as indústrias mais poluentes do ar e da água entre nós.
Se a isto somarmos o papel nocivo do eucalipto na erosão dos solos, na predação dos recursos aquíferos, na redução da  diversidade ambiental, na propagação dos incêndios florestais e na crescente fealdade da paisagem florestal nacional, podemos concluir que o efeito conjugado da fileira eucalipto-celulose é uma receita venenosa para o País.

2. Lamentavelmente, se há algo que desde o Estado Novo sempre gozou de um estranho consenso político nacional, desde a direita à esquerda, foi o elogio da fileira agro-industrial da celulose, incluindo importantes apoios financeiros públicos à indústria e a liberalização da plantação de eucaliptos (incluindo em perímetros de rega públicos!). Mesmo os alegados partidos ecologistas abstêm-se prudentemente de "fazer ondas" nesta matéria, tal é o poder económico, político e mediático do referido lobby.
E ainda dizem que há falta de compromissos de regime! Aqui está um deles, tão discreto quanto abrangente e duradouro!...

Aliados da onça

Ao ouvir as recentes advertências em vários tons do BE e do PCP sobre o orçamento para o ano que vem, é fácil entender que, para eles, se o Governo vier a ter dificuldades em corresponder às suas exigências, nomeadamente em matéria de aumento de rendimentos, por causa das obrigações do País no quadro da UE em relação à consolidação orçamental, então o problema é exclusivamente do Governo e do PS.
É claro que isto não passa para já de uma coreografia política para a respetiva galeria partidária e para aumentar a pressão sobre os socialistas. Mas é evidente desde o início que ambos aqueles partidos fazem uma leitura assaz unilateral do acordo político com o PS:
- se as coisas correrem bem, como até agora, os méritos essenciais são deles, que viabilizaram o Governo, que de outro modo não existiria, e impuseram as devidas condições;
- se as coisas falharem (e eles não excluem essa eventualidade), então a culpa exclusiva será obviamente do PS, que (podemos antecipar o discurso) não conseguiu "romper suficientemente com as políticas de direita" nem "sacudir os constrangimentos resultantes das políticas da UE".
Aguardemos os "idos de outubro", quando a peça "Orçamento 2017" entrar realmente em cena...

sábado, 27 de agosto de 2016

Heterodoxia de esquerda

1. A extrema-esquerda gosta de contestar a qualificação do PS como partido de esquerda (salvo oportunisticamente quando lhe convém) e em especial a daqueles que no campo socialista ousam combatê-la sem transigências (mas também sem anátemas pessoais), como é o meu caso.
O facto de em privado me autoqualificar desafiadoramente como "social-democrata liberal" só acicata as fatwas condenatórias da extrema-esquerda, que quando ouve a palavra "liberal" puxa da pistola e dispara insultos.
Mas a extrema-esquerda não tem o monopólio da esquerda, longe disso, muito menos o poder de atribuir certificados de esquerda.  

2. Como é fácil ver neste blog desde a sua origem (e muito antes dele), defendo convictamente os genuínos princípios de uma esquerda democrática, social, europeísta e cosmopolita, nomeadamente a autodeterminação pessoal (incluindo o aborto e o casamento de pessoas do mesmo sexo), o Estado social e os direitos sociais (incluindo o SNS e a escola pública), a dignidade do trabalho, a luta contra privilégios públicos e pela igualdade em geral, a liberdade religiosa e a laicidade do Estado, a equidade fiscal (incluindo um imposto sobre sucessões e doações de elevado montante e um imposto sobre transações financeiras), a regulação pública das falhas e insuficiências do mercado, o aprofundamento democrático da UE e a regulação multilateral da globalização, a luta dos povos espoliados (como os palestinos), etc.
Mais importante ainda, tenho pautado a minha ocasional ação política e as minhas posições públicas coerentemente de acordo com tais princípios.

3. Não ignoro que, mesmo no contexto social-democrata, defendo por vezes posições desalinhadas e heterodoxas qb (como mostrei aqui e aqui)como convém aliás a uma pessoa sem filiação partidária formal. Mas dentro dessa heterodoxia cabe em alguns aspetos a defesa de posições mais exigentes do que todas as esquerdas. 
Por exemplo, peço meças em matéria de luta contra os privilégios corporativos (por exemplo, o regime especial de pensões de juízes, Ministério Publico e embaixadores), pela justiça fiscal (cfr. os impostos acima referidos) ou pela estrita neutralidade religiosa do Estado e dos titulares de cargos públicos. Se a extrema-esquerda avançar com propostas nesse sentido (é o avanças!), terá o meu apoio!

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Inglória originalidade

1. O jornal i anunciava ontem na sua edição em papel (sem link na Internet) o "enterro" do restabelecimento do imposto sobre sucessões e doações de valor elevado, uma das mais importantes propostas fiscais do programa eleitoral do PS. Mas só os distraídos não se tinham dado conta de que essa medida já tinha "entregado a alma ao criador", como aqui se dizia há alguns meses.
Assim morre ingloriamente a ideia de repor aquele que é um dos mais justos impostos sobre o património, por se tratar de riqueza não criada pelos beneficiários, furtivamente abolido pelo Governo de direita em 2003. Afinal, há malfeitorias da direita que não são para reverter.

2. Há originalidades assim. Normalmente, uma vez no governo os partidos sobem os impostos que se comprometeram eleitoralmente a não aumentar; faltava um que, mesmo em situação de dificuldades orçamentais, abdicasse de criar um imposto que se tinha comprometido eleitoralmente a restabelecer, o que é ainda mais original por se tratar de um governo de esquerda (e com maioria parlamentar) e por estar em causa um imposto que desde sempre foi uma das marcas identitárias de uma fiscalidade progressista (que, aliás, existe na maior parte dos países da UE e nos Estados Unidos).
Entretanto, continua a faltar a explicação política devida para o abandono desse marcante compromisso eleitoral. A política de esquerda não pode ter razões que a razão política desconhece...

Caixa

1. É uma boa notícia a autorização da Comissão Europeia para a recapitalização substancial da CGD, sem que o apport de novo capital público seja considerado como uma despesa pública líquida ou uma ajuda de Estado, não devendo, portanto, contar para o défice público.
Na verdade, nada nos Tratados impede o Estado empresário de recapitalizar as suas empresas, desde que o faça em condições similares às dos empresários privados ("em termos de mercado", no jargão de Bruxelas), e não como forma encapotada de subsídio, o que seria atentatório da concorrência. Nessas condições, a entrada de dinheiro fresco do Estado tem como contrapartida o reforço equivalente do valor do capital das suas empresas, pelo que não há alteração da situação patrimonial do Estado.

2. Todavia, nem tudo reluz neste epílogo positivo.
Primeiro, como é habitual, a luz verde da Comissão vem de certeza acompanhada de condições que proporcionem o regresso da Caixa aos resultados positivos (alienação de ativos, encerramento de balcões, redução do pessoal). Segundo, se o montante da recapitalização não vai previsivelmente ao défice orçamental, ele vai diretamente à dívida pública, visto o Estado não ter manifestamente saldo orçamental disponível para cobrir uma tal importância.
Ainda assim, o importante era tirar a Caixa da situação problemática em que encontra, agravada pela prolongada indefinição quanto à recapitalização, o que terá também reflexos positivos sobre todo o sistema bancário nacional. Um ponto a favor do Governo neste atribulado mês de agosto!

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Contra a corrente

1. Considero que a liberdade pessoal inclui a liberdade de usar em público indumentária conforme às tradições étnicas ou às prescrições religiosas de cada um.
Isto vale para os os incas peruanos e as gueixas japonesas, para os sacerdotes católicos e ortodoxos, paras os monges e as freiras, para os siks e os judeus ortodoxos, e também para os muçulmanos. Por isso, salvo os casos em que a indumentária esconde o rosto, em que razões de segurança se impõem, não alinho com a vaga de condenação generalizada dos trajes femininos muçulmanos, nem considero relevante o argumento de que essa indumentária constitui um símbolo da "submissão" da mulher segundo o Islão, o que releva de um inconfessado imperialismo cultural ocidental.

2. Neste contexto, considero assaz infeliz a proibição administrativa francesa do chamado "burquini", em nome de um laicismo radical sem fundamento (a não ser que se comprovassem improváveis razões de higiene). E situações de abuso policial como as relatadas aqui, de obrigar uma mulher muçulmana a despir em público a sua indumentária caraterística, constituem uma humilhação desnecessária e um verdadeiro atentado à dignidade humana, que só podem fazer ricochete e acicatar os ânimos dos extremistas islâmicos.

Desperdício

Será que faz algum sentido, sobretudo nas condições orçamentais existentes, gastar milhões e milhões de euros em ajudas públicas à produção e aos preços em atividades económicas sem rentabilidade? Não seria mais justificado concentrar as ajudas no apoio à reconversão das explorações leiteiras para produções mais rentáveis?
Parece evidente que, enquanto as dificuldades da produção de carne de porco eram transitórias, devidas sobretudo ao embargo russo, a crise do leite é estrutural, depois da abolição das "quotas leiteiras" da UE, dada a insustentabilidades das explorações com menos condições. Em vez de tentar impedir artificialmente a importação de produtos que produzimos mais caro, devíamos apoiar o investimento em produtos que podemos exportar, por termos vantagens competitivas. O resto é distorção dos mercados e desperdício de recursos públicos.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Clarificando

Há leitores que me censuram o facto de, sendo socialista, não silenciar as divergências que tenho manifestado em relação ao atual Governo. Tenho respondido do seguinte modo:
- É sabido que, embora tenha defendido convictamente a legitimidade constitucional e política da solução governativa adotada (contra os ataques da direita), não apoiei o acordo com extrema-esquerda parlamentar, por o julgar politicamente inconsistente, dadas as divergências políticas de fundo entre o PS e a esquerda radical;
- Apesar disso, não tenho nenhum parti pris contra, tendo apoiado explicitamente numerosas medidas do Governo, como, por exemplo, o programa de descentralização administrativa, o relançamento do Simplex, a defesa da escola pública contra os colégios privados, o orçamento participativo ou a redinamização do programa de formação de adultos;
- Todavia, o facto de ser um "governo dos meus" não me inibe, como não me inibiu em situações anteriores, de manifestar divergência, em geral de forma comedida, com medidas que afetem valores que considero prioritários, como a consolidação orçamental, o controlo da dívida pública e a competitividade externa da economia, a participação leal e empenhada na integração europeia, a luta contra os privilégios no setor público, a equidade fiscal, a separação entre o poder político e o poder económico, o princípio da laicidade ou o combate às touradas e à eucaliptização do País. Não mudo de posições com a mudança de governo...
No fim do dia, apesar das minhas diferenças e embora receie que as coisas não corram bem, desejo sinceramente que o Governo seja bem-sucedido.

Resultados

1. É evidente que o crescimento económico em Portugal não será especialmente robusto enquanto não for superada a baixa produtividade e competitividade nacional, devida a causas estruturais que nenhum governo pode corrigir no prazo de uma legislatura, nomeadamente a falta de capital, o défice de educação e formação profissional e de competências empresariais, uma cultura dominante avessa ao risco e à competição, o excessivo endividamento de famílias, de empresas e do Estado, a descontinuidade da política de investimento público, a concorrência internacional de economias com menores custos salariais e ambientais, etc.

2. Mas não é menos verdade que, dentro desses constrangimentos, continua a haver uma margem de ação para a política económica e que o Governo fez do crescimento económico um compromisso político prioritário, incluindo uma estratégia alternativa baseada no fim da austeridade orçamental e no aumento do poder de compra e do consumo interno.
Todavia, apesar de várias condições favoráveis (dinheiro barato, trégua sindical, procura turística, etc.), a economia está a crescer menos do que anteriormente, abaixo da média europeia, e muito aquém da meta inicialmente projetada pelo Governo. Há que reconhecer, portanto, que os resultados até agora não estão à altura do compromisso nem validam a estratégia.
Ora, salvo fatores supervenientes, a virtude das políticas mede-se pelos resultados. Vamos continuar à espera deles.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

"Eucaliptugal"

Há alguns anos, na minha prolongada luta contra a eucaliptização galopante do País, criei a expressão Portucaliptal para designar a invasão do país pelo eucaliptal (por exemplo aqui, aqui e aqui). Vejo agora uma designação ainda mais expressiva do infeliz casamento entre o País e o eucalipto, Eucaliptugal!
Excelente!

Notável

Considerando a fraco crescimento da economia (pouco mais de 1% na média das projeções), é notável e surpreendente a significativa redução da taxa oficial de desemprego (mesmo tendo em conta a sazonalidade), que costuma estar associada a níveis mais elevados de crescimento da atividade económica. Melhor ainda, se a redução do desemprego (pessoas em busca de trabalho) corresponder a um aumento equivalente do emprego (pessoas efetivamente empregadas).
Seja como for, é uma notícia assaz positiva, sob o ponto e vista económico e social, no meio das notícias menos favoráveis relativas ao investimento, ao crescimento económico, à evolução da dívida pública e à balança externa.

Adenda
Recordo entretanto um post de há dois anos em que defendo que depois de uma prolongada recessão, em que as empresas reduziram ao mínimo os quadros de pessoal, mesmo um pequeno crescimento da economia pode gerar emprego. 

Esquerda antiliberal

Por diferentes que sejam as suas posições e propostas políticas (diferenças por vezes mais aparentes do que reais), uma das muitas coisas que a nova esquerda radical comunga com a velha esquerda ortodoxa é o visceral antiliberalismo doutrinário, tanto contra o liberalismo político (democracia liberal) como contra o liberalismo económico (economia de mercado).
Mas é também por isso que a esquerda social-democrata - que respeita a democracia parlamentar e a economia de mercado - não pode fazer distinções substantivas entre as esquerdas antiliberais nem ignorar o que a distingue essencialmente delas. Se, como digo há muito, a social-democracia europeia consiste na trilogia democracia liberal + economia de mercado + Estado social, então a única coisa comum com as esquerdas radicais diz respeito ao Estado social, mesmo assim em versões assaz diferentes. É importante, mas, dada a divergência de fundo quanto ao modelo político e económico, não devia chegar para mais do que convergências ocasionais.

domingo, 21 de agosto de 2016

Sem brilho

O desluzido desempenho de Portugal nos Jogos Olímpicos do Rio - uma medalha de bronze e alguns diplomas - confirma mais uma vez o baixo nível do desporto nacional. Um país onde falta investimento e empenho em quase tudo - educação física, desporto escolar e universitário, cultura e de política desportiva - e onde o futebol profissional é sinédoque do desporto não pode aspirar a muito mais.

Dois pesos

O Bloco de Esquerda diz que não foi ao Congresso do MPLA porque "não pactua com ditaduras". Designar Angola - onde existem eleições regulares internacionalmente validadas, direito de oposição, etc. - como uma "ditadura" é pelo menos um exagero. Maior exagero seguramente do que designar como "democracias" as autocracias populistas de esquerda da Venezuela e outras semelhantes na América Latina, que gozam da simpatia do Bloco e dos demais partidos da "nova esquerda" europeia...

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Divórcio larvar? (2)

Portugal mantém-se à margem do desenvolvimento, assinalado no post anterior, de erosão do apoio do centro-esquerda à UE, por várias razões.
Primeiro, não existe entre nós um partido anti-europeu de direita populista, sendo as posições anti-europeístas defendidas pelos partidos da extrema-esquerda parlamentar; segundo, salvo algumas vozes marginais, o PS tem-se mantido coeso no seu firme compromisso com a UE; terceiro, o populismo de esquerda radical não conseguiu em Portugal a expressão que obteve na Grécia ou na Espanha, à custa dos respetivos partidos socialistas.
Resta saber, porém, até que ponto é que a situação de exceção portuguesa se pode manter incólume, se se agravar o enfraquecimento do pilar social-democracia na integração europeia. Uma eventual deriva da Europa para a direita não ajudaria a manter o pacto europeu de uma social-democracia politicamente acossada.

Divórcio larvar?

1. Um das diferenças mais radicais e mais óbvias na Europa entre a esquerda social-democrata e a extrema-esquerda é a posição face à integração europeia, de que a primeira é um dos esteios políticos e que a segunda vê como instrumento de garantia supranacional do liberalismo político (democracia liberal) e do capitalismo (economia de mercado).
Importa, no entanto, lembrar que, apesar da sua convicta adesão à integração europeia, a social-democracia europeia sempre coabitou ao nível nacional com a falta de entusiasmo, se não a hostilidade, dos seus próprios setores mais à esquerda, nomeadamente no movimento sindical. Isso sempre foi notório nos casos francês, belga e britânico, entre outros.

2. A crise de 2008 e as suas sequelas (recessão, desemprego, perda de rendimentos, austeridade orçamental, etc.) e a recente pressão imigratória só ampliaram e acentuaram a tradicional desconfiança desses círculos na integração europeia, especialmente nos países mais ricos. A votação de vastos setores do Labour a favor do Brexit britânico testemunha essa divisão. A mesma deserção de eleitores de esquerda para posições anti-europeias, incluindo a direita populista, se observa em França, na Áustria e noutros países.
Como assinala Tony Barber hoje no Financial Times, para culminar a prolongada crise política que devasta a social-democracia europeia por essa Europa fora - em que Portugal é uma das poucas exceções -, só faltava uma divisão dentro dos partidos da esquerda moderada quanto à UE.

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Valorizar as pessoas

O novo nome, "Qualifica", é bem menos imaginoso do que o primeiro, "Novas Oportunidades", mas só pode saudar-se o relançamento do programa de qualificação de adultos com défice de formação escolar e profissional, em boa hora lançado pelo Governo de Sócrates e em má hora descontinuado pelo Governo PSD-CDS.
Se há algo que um Governo não pode deixar de cuidar é da qualificação daqueles que não tiveram condições para alcançar níveis de escolaridade e de formação profissional apropriados. Não se trata somente de lhes proporcionar skills para competirem melhor no mercado de trabalho, mas também para se valorizarem pessoalmente como trabalhadores e como cidadãos.
No seu sentido substantivo, o princípio da igualdade quer dizer antes de mais igualdade básica de oportunidades de trabalho e de emprego. Num "Estado social", isso constitui um direito das pessoas e uma obrigação do Estado (aliás prevista na Constituição).

Trabalho de casa

1. Não faltaram desacertos na renovação da administração da CGD: demora de todo o processo, número excessivo de membros do board, falta de separação entre chaiman e CEO, vários membros com excesso de acumulação de posições noutras sociedades, falta de um mínimo de gender balance, etc.
Decididamente, faltou trabalho de casa. O juízo do supervisor europeu, o BCE, só podia ser severo.

2. A "união bancária" no seio da UE não trouxe somente novas regras sobre o governo dos bancos europeus; confiou também diretamente ao BCE a supervisão dos bancos mais importantes, de modo a criar uma supervisão uniforme e imune aos contextos políticos e económicos nacionais.
Os bancos públicos não fogem às novas regras. Ainda bem, pois assim fica reduzida a margem de politização e governamentalização da sua gestão.

Adenda
Tive a oportunidade de, logo no início, criticar o modelo de governação escolhido pelo Governo para a CGD, antecipando as principais críticas depois adotadas pelo BCE. O que me surpreende é que, sendo essas críticas relativamente óbvias, não tivessem sido evitadas.

Adenda 2
Não me parece politicamente sensato alterar as incompatibilidades previstas na lei, para possibilitar a renomeação de alguns dos nomes recusados pelo BCE. Por um lado, as leis não devem ser alteradas por oportunismo conjuntural; por outro lado, a administração da Caixa não pode parecer um cartel de representantes de interesses empresariais.