segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

O que o Presidente não deve fazer

No nosso sistema constitucional não faz sentido que o Presidente da República se encarregue de anunciar publicamente medidas governamentais.
Entre as suas funções não cabe seguramente a de porta-voz ou arauto do executivo. Nem o Governo lhe deve delegar tal tarefa nem ele deve assumir um tal função. É positivo que o Presidente proporcione as melhores condições institucionais ao Governo, mas toda a confusão de papéis e funções é negativa para a perceção pública das competências constitucionais e responsabilidades políticas de cada um.

Luzes e sombras

Ao iniciar um novo ano, Portugal compara favoravelmente com muitos outros países em matéria de estabilidade política, paz social, ausência de movimentos xenófobos ou populistas, imunidade ao terrorismo internacional. E mesmo na frente económica e social o País registou, embora menos do que o previsto e necessário, alguma retoma económica, recuperação do emprego e consolidação orçamental.
Há, todavia, que anotar também as principais vulnerabilidades, nomeadamente a enorme quebra do investimento público, o aumento da despesa pública permanente, o baixo nível da poupança nacional e o excesso de consumo, o aumento da dívida pública e do respetivo custo. Os dois fatores que muito contribuíram  para o relativo desafogo económico e financeiro corrente - petróleo barato e dinheiro barato - não vão durar sempre. E a "política de devolução de rendimentos" tem limites orçamentais, tanto maiores quanto menor for o crescimento económico e quanto maior for a pressão da dívida pública...

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Espoliação

1. Só no primeiro semestre, os transportes de Lisboa e do Porto acumularam prejuízos superiores a 200 milhões de euros, muito acima dos orçamentados.
Como o Governo reverteu a concessão desses transportes à gestão privada e como somente a Carris foi agora transferida para o município de Lisboa (deixando porém a dívida com o Estado...), esses encargos adicionais vão obviamente pesar sobre os todos contribuintes nacionais.
Entretanto, apesar deste agravamento do défice, o Governo anuncia um aumento das tarifas limitado à taxa de inflação esperada, com o bónus de um desconto no IRS, ou seja, mais um financiamento do orçamento nacional.

2. Se se entende que os transportes públicos de Lisboa e do Porto sejam subsidiados, então que os encargos recaiam sobre os municípios respetivos e não sobre os contribuintes de todo o país, incluindo aqueles que já suportam integralmente os custos dos seus próprios transportes municipais. Os contribuintes em geral não têm de suportar a política de baixas tarifas, as regalias laborais e a ineficiência dos transportes urbanos de Lisboa e do Porto.
O privilégio de Lisboa e do Porto constitui uma espoliação do resto do País.

Adenda
A dedução no IRS não aproveita a quem mais precisa, que são as pessoas que não têm rendimentos suficientes para pagar o imposto. Portanto, trata-se de uma medida socialmente regressiva.

Universidades SCUT

1. Uma das invenções mais deletérias para as finanças públicas nos últimos vinte anos foi a das autoestradas SCUT (sem custos para os utentes), que puseram a cargo de todos os contribuintes o pagamento das rodovias de valor acrescentado, em vez dos beneficiários das mesmas. As autoestradas CCC (com custos para o contribuinte), como dei em chamar-lhes, foram um enorme erro, que vamos pagar por muito mais tempo.
O Bloco de Esquerda propõe-se agora criar as universidades SCUT, segundo o mesmo princípio de que aquilo que aproveita a alguns seja pago por todos. Na verdade, o que o Bloco propõe é que a sua juventude estudantil seja financiada pelos impostos de todos, incluindo os da classe operária, que não foi para a universidade nem pode mandar os filhos. Eis um inovador princípio revolucionário de justiça social.

2. Ora, o ensino superior, que está longe de ser um serviço universal, constitui sobretudo um investimento individual para os seus beneficiários (melhores qualificações profissionais e melhores remunerações). A progressiva democratização do ensino superior deve ser assegurada por bolsas de estudo, que não se limitem a custear as propinas, a fim de garantir a igualdade de oportunidades a quem tem menos recursos.
Terminado definitivamente o tempo das "vacas gordas" orçamentais, quanto mais gratuita for a frequência, menos dinheiro haverá para o ensino superior e para bolsas de estudo e mais seletivo será o acesso, contra o que alegadamente pretendem os defensores da gratuitidade.
Contradições que o dogmatismo ideológico tece...

Salário mínimo subsidiado

Vai ser a mesma solução do ano passado, agravada. As empresas vão ser compensadas com um desconto na TSU para aceitarem o aumento do salário mínimo, ou seja, um salário mínimo subsidiado pela segurança social.
Continuo a pensar, tal como há um ano, que é uma má solução. Por um lado, reconhece-se que há empresas que não poderiam aguentar o aumento do salário mínimo sem reflexos negativos sobre o emprego, mas por outro lado, por razões políticas (acordo à esquerda), sobe-se o salário mínimo artificialmente, sem sobrecarregar demasiado as empresas, mas à custa da segurança social. Ora, entre as missões da segurança social não consta a de financiar salários em vez das empresas.
Julgo que, em vez de elevar o salário mínimo acima do que a economia permite, só para as estatísticas internacionais, seria mais apropriado implementar uma medida que constava do programa do PS, de criar um suplemento de rendimento para os trabalhadores empregados com remunerações muito baixas, ponto que ficou na gaveta, vítima do acordo com a extrema-esquerda parlamentar.

Adenda
Vale a pena ler este texto de Luís Aguiar-Conraria sobre os efeitos perversos de um salário mínimo comparativamente elevado (como eu próprio já tinha lembrado aqui).

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Maniqueismo

Já se sabia que, desmentindo a famosa tese da "espiral recessiva", a saída da grande crise se iniciou na frente económica logo no final de 2013 e na frente do emprego durante 2914. Fica-se agora a saber que, contrariando a tese do "circulo vicioso do empobrecimento", já em 2015 houve uma redução do risco de pobreza, iniciando o alívio da crise na frente social.
Sem dúvida, a retoma tem sido lenta e ainda não se regressou aos níveis económicos e sociais de antes da crise e da recessão que ela arrastou. Resta saber em que estado estaríamos se não tivesse havido a assistência financeira externa, a austeridade orçamental que ela impôs e o posterior regresso ao mercado da dívida.
As narrativas maniqueístas contam a história por metade.

Filhos e enteados

1. Através do Ministro das Infraestruturas ficamos a saber que o orçamento para 2017 reserva apenas 50 milhões para investimento na renovaçao do material circulante da CP - deixando portanto de lado a aquisição de novos comboios, como proposto pela companhia ferroviária pública - e 100 milhões para o investimento na rede ferroviária, o que dá para financiar apenas uma pequena parte dos compromissos públicos anunciados nessa área. Nada ficamos a saber sobre o investimento previsto para os anos seguintes.
Entretanto, através do Ministro do Ambiente - que surpreendentemente tem a seu cargo os transportes públicos de Lisboa e do Porto -, sabemos que o Governo vai investir proximamente mais de 200 milhões no metropolitano de Lisboa e ainda mais no metropolitano do Porto.

2. Para além de ser injustificável que o país pague os transportes locais de Lisboa e do Porto através do orçamento do Estado - pois deviam ser uma responsabilidade municipal ou intermunicipal, como já aqui referi várias vezes -, a enorme diferença de investimento público nos dois transportes locais e na ferrovia nacional mostra bem a ordem de prioridades territoriais.
Por mais que a proximidade das eleições locais justifique a prodigalidade no investimento do Estado nas duas principais cidades do país, a secundarização do modo ferroviário, já tão prejudicado ao longo dos anos pelo investimento prioritário na rede rodoviária, pode hipotecar gravemente o futuro do setor, que diz respeito ao País em geral.

Adenda
Todos os partidos são apóstolos da descentralização territorial e do princípio da subsidiariedade. Mas quando vemos que cabe ao Governo fixar os preços dos transportes urbanos - que obviamente deveriam ser uma questão municipal - vemos que vai uma enorme distância entre as proclamações e a prática política.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

O que o Presidente não deve fazer

1. Era de temer que o idiossincrásico ativismo político do Presidente da República pudesse levar a incidentes embaraçosos, como o que ocorreu na sessão de encerramento do Teatro da Cornucópia, em que Marcelo Rebelo de Sousa protagonizou frente às câmara de televisão uma inopinada "conciliação" ao vivo entre o responsável pelo TdC e um constrangido Ministro da Cultura, tomado de surpresa pela iniciativa presidencial e compelido a comprometer-se precipitadamente a revisitar o caso do subsídio público ao teatro.
De uma assentada, o PR fez três coisas que devia cuidadosamente evitar: (i) intrometer-se numa questão concreta do foro governamental; (ii) envolver-se num diálogo político direto com um ministro setorial, quando o seu interlocutor institucional é por definição o Primeiro-ministro;  (iii) patrocinar uma solução política excecional para um caso concreto, em violação flagrante do princípio da igualdade de tratamento.

2. Há dias um comentador dizia, referindo-se às recorrentes incursões opinativas de Belém na esfera da competência governativa, que o PR não precisa de fazer de primeiro-ministro. Nunca estivemos tão próximo disso como neste infeliz caso da Cornucópia.
Mas MRS não deve evitar somente assumir o papel de primeiro-ministro num teatro; deve também evitar aparecer como treinador, chairman ou maestro do Governo, que ele não é, nem pode ser. Não basta manter em relação ao Governo uma inequívoca neutralidade político-partidária, que a sua função constitucional exige, mas também manter uma prudente distância política, que a separação de poderes recomenda.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

A União Europeia falha porque falta

"Alepo jaz massacrada, Putin e Assad exultam. Incapaz de agir, que resta de credibilidade ao Conselho Europeu?

A Europa falha porque falta. Na Ucrânia agredida e ocupada pela Rússia. E na Síria, no Iraque, no Yemen, na Libia, na Palestina, onde Estados Membros não só não se coordenam mas rivalizam. A vender armas e noutros sórdidos negócios com regimes que fazem guerras por procuração instrumentalizando grupos terroristas, como o saudita, o qatari, o turco.

Não admira que Putin, Erdogan, em breve Trump, se afeiçoem a chantagear e encurralar uma Europa em retrocesso intergovernamental anti-integracão, a reboque de um governo alemão sem estratégia, que pode querer apaziguar, mas de facto alimenta populismos xenófobos.

Do euro incompleto que semeia divergência e desigualdade, à fiscalidade não harmonizada que desvirtua mercado interno e aproveita à corrupção e crime organizado, passando pela Fortaleza Europa que entrega migrantes e refugiados a redes de traficantes e radicaliza os seus próprios jovens dando recrutas à hidra terrorista: esta não é a União Europeia da paz, dos direitos humanos, da solidariedade e do progresso. 

Esta Europa inter-governamental não nos protege, nem defende: destrói-se, pondo em causa a nossa segurança e a segurança global."


Minha intervenção em plenário do Parlamento Europeu, esta manhã, sobre a preparação do próximo Conselho Europeu (15.12.2016)


terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Sem pés para andar

Tomada à letra, a notícia de que «a Academia de Ciências de Lisboa vai rever o Acordo Ortográfico» não tem pés nem cabeça.
Sendo uma convenção internacional, o AO só poderia ser modificado por acordo entre os governos dos países que o ratificaram. Ora, que se saiba, não existe nenhuma iniciativa oficial nem oficiosa nesse sentido, nem se vislumbra nenhuma perspetiva de vir a ser dado algum passo nessa direção. Portanto, o máximo que se pode dizer é que a Academia (ou o seu presidente, não se sabe bem), por sua livre iniciativa, decidiu apresentar publicamente uma proposta de revogação do AO e da sua substituição por uma "convenção" (o que quer que isso seja).
Fica bem à Academia, de vez em quando, fazer prova pública de vida. Mas, se bem julgo, as hipóteses de essa ideia ser levada a sério oficialmente são iguais a zero. Se fosse membro da tribo anti-AO não depositava nenhuma esperança nessa iniciativa.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Um pouco mais de cultura constitucional, sff

1. Em relação ao meu penúltimo post, sobre o caso Fernanda Câncio, um leitor comenta que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa são um «pilar essencial de uma sociedade democrática».
Não podia concordar mais. Mas com a mesma convicção afirmo que o respeito pela intimidade da vida privada é um pilar essencial de uma sociedade decente. E afirmo mais: que para ser um pilar essencial de uma sociedade democrática, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa não precisam nada de atentar contra o direito à intimidade da vida privada.
A liberdade de expressão e a liberdade de imprensa nasceram para garantir a liberdade de informação e para assegurar a externalização pública da liberdade de pensamento e de opinião em matéria política, religiosa, económica, filosófica, artística e cultural, bem como para denunciar os abusos do poder público ou privado. Para isso não precisam nada de invadir a esfera da privacidade das pessoas.

2. No caso concreto, a tese do tribunal de que o deferimento da providência cautelar contra o livro de Saraiva equivaleria a "censura" assenta num quádruplo equívoco:
  - primeiro, a censura designa a sujeição da informação ou opinião ao controlo ou punição do Governo ou das autoridades administrativas, não a aplicação das medidas judiciais previstas na lei contra os abusos da liberdade de imprensa;
  - segundo, ao dar proteção absoluta à liberdade de expressão, o tribunal desprotegeu em absoluto o direito à intimidade da vida privada, que não goza de menor proteção constitucional (pelo contrário);
  - terceiro, o respeito pela intimidade da vida privada não constitui uma restrição em sentido próprio da liberdade de imprensa, mas sim um "limite imanente", decorrente da própria Constituição, não podendo ser equiparado às restrições estabelecidas por lei (embora com base na Constituição), por exemplo, o segredo de Estado ou o segredo de justiça;
  - por último, ainda que o direito à intimidade da vida privada tivesse de ser comprimido em homenagem à liberdade de expressão, mesmo assim essa operação teria de obedecer às condições constitucionalmente estabelecidas para a restrição de direitos, liberdades e garantias (necessidade, proporcionalidade, respeito pelo núcleo essencial, etc.), o que não se verificou.
Nos tribunais convém um pouco mais de cultura constitucional.

3. Compreende-se que a imprensa tablóide e o "jornalismo de sarjeta" (na célebre expressão de uma antiga presidente do Sindicato dos Jornalistas) cultivem o voyeurismo e explorem publicamente a vida sexual de conhecidos e desconhecidos, invocando abusivamente a liberdade de imprensa para defender esse nicho de mercado.
Já se compreende menos que a imprensa séria condescenda com esse abuso da liberdade de imprensa, ou seja cúmplice pelo silêncio.

sábado, 10 de dezembro de 2016

Direito de Resposta



Um direito constitucional pouco conhecido e escassamente exercido.
Inscrições aqui!

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Populismo judicial

1. Tem inteira razão a jornalista Fernanda Câncio, quando se rebela contra a denegação judicial da providência cautelar por ela requerida contra o livro de J. A. Saraiva, por invasão da intimidade da sua vida privada. Se o livro é uma provocação jornalística, a sentença é um despautério judicial.
Não é por acaso que a Constituição coloca à cabeça dos "direitos, liberdades e garantias pessoais" o direito à vida, o direito à integridade pessoal e outros "direitos pessoais", entre os quais o direito à reserva da intimidade da vida privada. Trata-se de direitos de defesa do património pessoal de todas as pessoais contra a invasão externa, seja pelo poder público, seja por terceiros (já que os direitos, liberdades e garantias valem diretamente nas relações entre privados).
Por isso, o direito à intimidade da vida privada - que não pode deixar de cobrir a vida sexual - não pode ser sacrificado à liberdade de expressão ou à liberdade de imprensa, e a garantia destas não pode nunca afetar o núcleo essencial daquele.

2. Sucede, porém, que nos últimos anos, como tenho denunciado várias vezes, se verifica uma desconsideração geral dos direitos de personalidade em prol da absolutização da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa.
Até agora, por influência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, essa primazia absoluta da liberdade de imprensa valia somente em relação aos políticos, em alegada homenagem ao valor da transparência e responsabilidade especial da ação política, e a vítima era em geral o direito ao bom nome e reputação.
Pelos vistos, a ter em conta esta desastrada decisão, e ainda mais a sua insustentável justificação, a liberdade de expressão passa a autorizar também a aniquilação do direito à reserva da vida privada e passa a abranger não somente os políticos mas também quem teve a má ideia de ser namorada de um político. Abyssus abyssum!

3. Vivemos num mundo bizarro, a este respeito. Por um lado, há um coro de protestos, em nome da reserva da vida privada, contra um alegado excesso das autoridades públicas no acesso aos dados pessoais, incluindo os saldos bancários, mesmo que não haja a sua divulgação pública nem seja evidente que os dados bancários integram a reserva da intimidade da vida privada; por outro lado, porém, aceita-se passivamente, e até se aplaude, que se revelem publicamente informações (verdadeiras ou falsas, pouco importa) sobre a vida sexual de pessoas comuns, neste caso de uma cidadã, só por ter tido uma relação com um antigo primeiro-ministro.
A justificação está na onda populista que entende que não há nenhum limite à invasão da intimidade das pessoas conhecidas, por maioria de razão quando se trata de políticos ou de quem com eles conviva ou tenha convivido. Esta infeliz decisão ficará nos anais do sacrifício judicial de um direito pessoal nuclear no altar do populismo antipolítico. É uma péssima ocorrência na história do Estado de direito constitucional entre nós.

Adenda
Voltei a este assunto num post mais recente

Ainda nos 40 anos da CRP

Na próxima semana, dia 14/12,  estou aqui:


Etiqueta

Nas minhas diversas incursões na política sempre me considerei um académico emprestado transitoriamente à atividade política. E, seguindo o conselho de Novalis, sempre voltei para casa, isto é, à Universidade de onde nunca saí efetivamente.
Mas verifiquei que a etiqueta política, por mais transitória e longínqua que seja, é como uma tatuagem indelével na testa. Uma vez político, sempre político. Assim, por exemplo, ao dar notícia de uma recente troca de opiniões que mantive com outro professor universitário, sobre uma matéria que aliás ensino há muito, um comentador identificou o meu opositor como "professor de Direito" (que é efetivamente), e a mim como... "antigo eurodeputado socialista".
Ou seja, mesmo num debate entre académicos, a minha efémera qualidade de eurodeputado, aliás terminada há mais de dois anos, prevaleceu sobre a minha qualidade permanente de professor de Direito, apesar de aquela minha participação política ser irrelevante para o caso, pois não foi tida nem achada no referido debate.
Não enjeito obviamente (pelo contrário!) a minha participação política ao longo dos anos, desde a oposição à ditadura até ao Parlamento Europeu, mas entendo que não se deve misturar alhos com bugalhos.

Adenda
Há bem pior, todavia. Por vezes ainda me identificam como "ex-comunista", como se o tivesse deixado de ser há pouco, apesar de ter deixado o ser há mais de 25 anos e de desde então estar publicamente ligado ao PS (quase o dobro do tempo que pertenci ao PCP), quer como apoiante quer como deputado.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Fingidor

Passos Coelho afirma que «o PSD não é de direita».
Mas finge bem! E, parafraseando Pessoa, finge tão bem, que chega a fingir que é aquilo que deveras é...

A fortuna e a prudência

1. Sim, o poder de compra das pessoas está a subir, mercê da "devolução de rendimentos" por via orçamental e da recuperação do emprego, iniciada logo em 2014. E a gente está a aproveitar para consumir mais (automóveis, electrodomésticos, viagens, restaurantes, etc.) e a regressar lentamente ao nível de vida de antes da crise. O benigno clima social e político reflete essa evolução.
Tudo isso é bom e é bem-vindo.

2. Mas a recuperação do nível de vida anterior à crise vem acompanhada do regresso de alguns dos antigos vícios que favoreceram a mesma crise, a que se somam outros trazidos por ela.
Por isso, o estado de felicidade geral não devia fazer ignorar os fatores menos positivos, que podem trazer uma "aterragem" desagradável lá mais para a frente, a saber:
   - a contínua quebra do investimento (a começar pelo investimento público), que compromete o futuro do (já modesto) crescimento económico;
   - o aumento do endividamento das famílias (crédito à habitação e ao consumo), alimentado pelos juros baixos e pela expetativa de que assim continuem;
   - o reduzido nível de poupança interna e de equity doméstico, que favorece o endividamento externo da economia e a venda de ativos empresariais ao estrangeiro (incluindo bancos e infraestruturas);
   - a retoma do aumento da despesa pública, reforçando os gastos mais rígidos (despesa com pessoal e pensões), que retira flexibilidade à política orçamental e pressiona a política fiscal;
   - o excessivo rácio de dívida pública e do spread em relação aos títulos alemães e espanhóis, que sobrecarrega as contas públicas e adia a mudança de notação desfavorável das agências de rating.

3. Além do risco que representam em si mesmos para a sustentabilidade da retoma económica e da consolidação orçamental, estes fatores tornam o país especialmente vulnerável a algum "evento" externo que afete o atual ciclo económico positivo (que muito deve ao petróleo barato) ou a era dos juros baixos em que vivemos (cortesia do BCE).
Nesta época de enorme incerteza e de volatilidade política (Brexit, Trump, triunfo da demagogia populista) convém apostar mais na prudência e confiar menos na fortuna.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Arrasem-se?

1. Não concordo com esta tese de Nuno Garoupa, propondo a extinção das autoridades reguladoras da economia.
Antes de mais, há afirmações radicais sem fundamento, com a de que a Lei-Quadro de 2013 «não teve qualquer impacto relevante». Ora, foram muitas e algumas importantes as alterações, como o alargamento da duração do mandato dos reguladores e a proibição da sua recondução, a submissão dos indigitados ao filtro curricular da CRESAP e ao escrutínio parlamentar antes da sua nomeação, o reforço da autonomia orçamental, dos poderes e da transparência dessas entidades. Além disso, algumas entidades reguladoras que eram institutos públicos comuns (administração indireta do Estado) foram transformadas em entidades independentes (como a ERSAR e a AMT),
Outra afirmação infundada é a de que «os tribunais não desempenham qualquer papel minimamente relevante» no controlo judicial da regulação, o que ignora a revolução da nossa justiça administrativa em geral desde 1976 e o papel específico do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, criado em 2011 (aliás integrado na ordem judicial comum).

2. Quanto à tese principal, a da extinção, não me parece que as premissas justifiquem a extinção geral das autoridades reguladoras independentes.
Elas tem em Portugal a mesma razão de ser que têm em qualquer outro país onde se operou a transição de um "Estado intervencionista" para um "Estado regulador", concentrado na defesa da concorrência e em dar resposta às falhas e insuficiências do mercado, incluindo a garantia dos "serviços de interesse económico geral" (SIEG), como é próprio de uma "economia social de mercado".
Entre essas razões contam-se as seguintes:
  -  a desgovernamentalização e despolitização da regulação do mercado;
  - a imunidade da atividade reguladora às mudanças do ciclo eleitoral, em prol da continuidade e previsibilidade da regulação;
  - a separação das funções do Estado empresário e do Estado regulador, nos setores em que há operadores públicos (como na banca, nos transportes ferroviários e aéreos, nas águas e resíduos), como garantia da neutralidade e da imparcialidade da regulação;
   - reduzir o espaço para "captura regulatória"e para a troca de favores políticos;
   - facilitar a autossuficiência financeira das entidades reguladoras, através do princípio "regulado-pagador", deixando de ter encargos orçamentais.
Não se vê como é que as direções-gerais dos ministérios poderiam cumprir esta missões.
Não se fica a saber se a operação geral de limpeza incluiria também a extinção das funções reguladoras do Banco de Portugal e a supressão da Autoridade da Concorrência. Em todo o caso, seria absurdo imaginar, por exemplo, uma direção-geral do ministério das Finanças a voltar a regular a banca ou o mercado de valores mobiliários ou o mistério da Economia a desempenhar as funções de defesa da concorrência.

3. O que se pode discutir - como faço no meu ensino e nas minhas intervenções públicas sobre a matéria - é se se justifica manter um tão grande nível de especialização e de fragmentação das entidades reguladoras.
Assim, desde há muito defendo uma redução e concentração das autoridades reguladoras existentes, mediante as seguintes operações:
  - adoção do modelo twin peaks na regulação financeira, com apenas duas autoridades reguladoras, em vez das três atuais;
  - agregação de todas as atuais autoridades reguladoras das utilities e das "indústrias de rede" (energia, telecomunicações e serviços postais, água e resíduos) num só regulador transversal (seguindo o modelo alemão), com exceção dos transportes;
  - junção das duas atuais autoridades reguladoras dos transportes numa só, com competência para todo esse setor.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

O dado que falta

A dar crédito a este estudo encomendado pela Ordem dos Médicos, com base num inquérito a que respondeu menos de 1/3 dos inquiridos, cerca de 2/3 dos médicos em Portugal estão em situação de "exaustão emocional", incluindo os mais jovens.
Curiosamente, falta, porém, uma informação essencial para entender esse estudo: qual a percentagem de entre eles que acumula atividade no SNS e no setor privado. Não é preciso ser adivinho para supor uma taxa de coincidência muito elevada...
Não sou dogmaticamente a favor de uma exclusividade absoluta no SNS, mas, entre outras perplexidades, ainda não percebo como é que se admite que os médicos "internos", na verdade ainda em formação à conta do SNS, possam acumular atividade com o setor privado.

Desvio

Caso não haja uma melhoria das contas públicas no último trimestre, as perspetivas para o défice orçamental do corrente ano, tendo em conta estes dados do 3º trimestre, não ficam somente muito acima do défice inicialmente previsto no orçamento (2,2%) mas também acima quer da meta governamental corrigida tomada como referência para o orçamento para 2017 (2,4%) quer do objetivo mínimo de redução estabelecido pela Comissão Europeia desde o início (2,5%).
Na verdade, a manter-se o percurso do 3º trimestre, o défice de 2016 ficaria apenas 0,3% abaixo do défice efetivo de 2015 - traduzindo portanto uma modesta consolidação orçamental - e tornaria mais difícil o cumprimento, quer das metas para o défice orçamental do próximo ano, quer da meta de redução da dívida pública, que é crucial para diminuir o peso dos respetivos encargos.
Neste trimestre final de 2016 há fatores orçamentalmente favoráveis, como a "amnistia fiscal", e há a continuação de fatores desfavoráveis (aumento da despesa com funcionários e redução do IVA dos restaurantes). Esperemos que os primeiros prevaleçam sobre os segundos e que as contas melhorem o suficiente para corrigir o referido desvio.

Adenda
O Ministro das Finanças garantiu ontem em Bruxelas que serão tomadas as medidas necessárias para cumprir as metas inscritas no orçamento de 2017. Convém que sejam mais efetivas do que as tomadas em relação ao orçamento de 2016...

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

A Política de Comércio Externo da UE depois do Brexit e de Trump

Na próxima quarta-feira, vou palestrar aqui, em Aveiro:


Quando a Itália treme

1. Não tem razão Luís Aguiar-Conraria quando escreve que imputei aos eleitores italianos, e não aos governantes, a culpa por o referendo constitucional ter sido indevidamente transformado num plebiscito ao Governo.
Na verdade, o que defendi foi que referendos como este - que pedia aos cidadãos uma decisão sobre dezenas de alterações à Constituição, inacessíveis ao cidadão comum, numa situação de grande insatisfação em relação ao Governo  - não deviam ser convocados, o que obviamente é antes de mais uma crítica ao primeiro-ministro italiano.
Além do mais, um dos traços dos referendos é que eles tendem a só poder ser revertidos por outro referendo, o que se traduz numa expropriação definitiva da democracia parlamentar.

2. Agora que Renzi - cumprindo a sua "ameaça" - , pagou com a demissão a sua imprudência, aproveito para dizer que se eu fosse italiano teria votado a favor da reforma constitucional de simplificação e de correção de algumas disfunções do sistema político (redução da dimensão e dos poderes do senado, eliminação das províncias, atenuação da fragmentação do poder político regional).
Quem conhece o sistema político italiano não pode deixar de se interrogar como é que ele pode funcionar com um mínimo de racionalidade, eficiência, estabilidade e responsabilidade.

3. Não faz sentido pensar que a derrota do referendo e a demissão de Renzi venham a desencadear um processo de saída do euro. Mas é de recear que a Itália entre de novo num período de turbulência política, com reflexos negativos na problemática situação financeira e económica do País.
Mesmo que o BCE venha em socorro da estabilidade da zona euro e da dívida pública italiana, não é de excluir que outros países mais vulneráveis, como Portugal, venham a ser negativamente afetados. Uma das consequências da união monetária é que os problemas financeiros de um Estado-membro, sobretudo se importante, têm efeitos sobre os elos mais fracos.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Gratuitidade = iniquidade

Não vejo justificação para restaurar a entrada gratuita nos museus nacionais aos domingos e feriados.
Primeiro, sendo já esses os dias de maior frequência, a entrada gratuita vai congestionar os museus e privá-los de uma importante fonte de receita, que só pode ser compensada à custa de outras áreas do Ministério da Cultura.
Em segundo lugar, uma vez que a maior parte dos museus nacionais está em Lisboa, esta medida aproveita sobretudo aos respetivos residentes, que assim beneficiam (mais uma vez!) de um serviço público financiado por todos os portugueses. Não devia ser encargo dos contribuintes alimentar ainda mais os privilégios de Lisboa.
Por último, a gratuitidade do serviços públicos prestacionais só se justifica no caso de serviços efetivamente universais (saúde, ensino obrigatório) e no caso dos serviços de proteção social. Salvo nesses casos, deve valer o princípio "utilizador-pagador", em particular tendo em conta os constrangimentos orçamentais do País.
É uma falácia a ideia de que "o que todos pagam barato fica". Como tenho argumentado inúmeras vezes (caso das autoestradas SCUT, propinas das universidades, estacionamento gratuito nas cidades, etc.), quando se trata de serviços públicos que não aproveitam a todos ou aos mais necessitados, a gratuitidade redunda numa iniquidade, em que todos pagam as vantagens de uma parte (já de si privilegiada, como é o caso).

sábado, 3 de dezembro de 2016

O fantasma do CETA

1. Dois deputados do BE interpelaram o Governo sobre um pedido de indemnização feito ao Estado português por causa da reversão da concessão da Carris e do Metro de Lisboa, por parte da empresa mexicana que tinha ganho a concessão.
Os referidos deputados alertam para o facto de esse litígio ir ser decido por um tribunal arbitral internacional ad hoc (ao abrigo do acordo de investimento entre Portugal e o México, que eles não referem) e acrescentam que o CETA (o acordo de comércio e investimento entre a UE e o Canadá), em vias de ratificação, vai estabelecer o mesmo mecanismo arbitral de resolução de conflitos, com o perigo de multiplicação de pedidos de indemnização de empresas estrangeiras à margem dos tribunais nacionais.

2. Sucede, porém, que a referida pergunta contém alegações e assenta em suposições sem o devido fundamento factual ou jurídico. Assim:
    - nos termos do direito civil e administrativo, a responsabilidade civil inclui obviamente a indemnização dos "lucros cessantes" em caso de quebra de um contrato, não sendo esse aspeto nenhuma inovação dos contratos de investimento estrangeiro, pelo que qualquer tribunal administrativo nacional teria de conferir a indemnização de tais danos;
   - por via de regra, os contratos entre o Estado e investidores privados (concessões, empreitadas, parcerias público-privadas, etc.), sejam nacionais ou estrangeiros, incluem uma "cláusula arbitral", pelo que não se trata de nenhuma inovação dos litígios internacionais de IDE;
  - ao contrário do que se diz na referida pergunta parlamentar, o CETA já não inclui o ISDS arbitral, tendo este mecanismo de resolução de litígios sido substituído pelo "sistema de tribunais de investimento" (ICS, na sigla inglesa), passando a ser da competência de tribunais mistos bilaterais permanentes (UE-Canadá), dotados de independência;

3. As razões para a adoção de mecanismos externos de resolução desses litígios, em vez dos tribunais nacionais, tem a ver sobretudo com os seguintes fatores:
   - estar em causa a aplicação de princípios e de convenções internacionais de IDE, matéria em que os tribunais nacionais não possuem a necessária formação e experiência;
  - a tradicional demora dos processos e recursos nos tribunais nacionais, que podem durar anos, o que se não compadece com a exigência de celeridade na resolução destes litígios de elevado valor.
Acresce que, desde o Tratado de Lisboa, a regulação de IDE passou a ser uma competência da União, pelo que os litígios podem envolvê-la como litigante ou colitigante (junto com os Estados-membros); por isso, esses litígios devem se decididos ao nível da União e não dos Estados-membros.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Nem tudo vai mal

Lentamente, a União Europeia vai recuperando da crise financeira e orçamental de 2008-2011 no que respeita à retoma económica, à consolidação orçamental, à estabilidade financeira, etc. Até a Grécia está a sair da situação de emergência.
Nesse sentido, pela primeira vez desde 2011, a taxa média de desemprego na União desceu abaixo dos 10%, o que, apesar da grande assimetria entre os vários países (uns abaixo dos 5% e outros acima dos 20%), não deixa de ser uma boa notícia. Portugal, ainda que pior do que a média da União, contribui para essa descida.
Obviamente, os sobressaltos na frente política (crise dos refugiados, Brexit, referendo na Holanda sobre o acordo comercial com a Ucrânia, possível vitória populista nas eleições presidenciais austríacas e no referendo italiano, ameaça do nacionalismo em vários outros países, etc.) não permite otimismo nenhum quanto à saída definitiva da crise. Infelizmente,  há outras razões de preocupação, além do desemprego (terrorismo, imigração, corrupção, desigualdade social, etc.). Mas mesmo os motivos de preocupação política seriam bem mais graves se a situação económica, social e financeira não estivesse a melhorar.

Adenda
É fácil notar que, salvo a Croácia, todos os países com desemprego maior do que a média da União são do sul da Europa, tendo sido todos eles especialmente afetados pela crise orçamental. Já a Irlanda, um dos três países "resgatados", deixou a crise bem para para trás em todos os aspetos. Decididamente, há países mais ágeis do que outros a enfrentar e vencer as crises...

Correção

Ao nomear um presidente do conselho de administração (chairman) e um diretor executivo (CEO) para a nova gestão da CGD, o Governo corrigiu um erro que cometera na administração anterior - concentrando essas duas funções numa única pessoa - , que fui o primeiro a assinalar e que depois o BCE reiterou.
Esperemos que desta vez não se repitam os demais percalços que atrasaram o processo de recapitalização do banco público e depois levaram à demissão da anterior equipa de gestão. A recuperação da Caixa e a estabilidade do sistema financeiro português bem precisam.

Mais uma reversão?

Segundo a imprensa, a próxima página do caderno reivindicativo do BE e do PCP face ao Governo do PS pode bem vir a ser a reversão das alterações ao Código do Trabalho, nomeadamente em matéria de contratação coletiva e de indemnização por despedimento.
Compreende-se esta iniciativa da extrema-esquerda parlamentar, face à perda de apoio nas sondagens eleitorais, não somente por razões ideológicas mas também para marcar terreno político, tendo em conta as eleições autárquicas do próximo ano e a negociação do próximo orçamento, uma vez concluído o processo de "recuperação de rendimentos". Mas o Governo revelaria um grande imprudência política se lhe desse seguimento, pois parece evidente que o atual dinamismo do mercado de trabalho e da criação de emprego, num contexto pouco propício de contínua quebra do investimento e de sofrível crescimento económico, se deve muito à moderada flexibilização das relações laborais conseguida com a revisão da legislação laboral.
O regresso ao passado desequilibraria o atual compromisso entre a proteção dos direitos dos trabalhadores e o incentivo à criação de emprego, sacrificando o segundo. Quem já tem emprego poderia ganhar mais direitos, mas quem o não tem passaria a ter mais dificuldades em obtê-lo...

Cila e Caribdis

1. Todas as sondagens sobre o referendo constitucional italiano no próximo dia 4 indicam que o primeiro-ministro Renzi vai sofrer uma pesada derrota política.
Se tal se verificar, confirmam-se mais uma vez dois riscos dos referendos. Primeiro, quando versam sobre temas complexos, eles são decididos com baixo conhecimento geral sobre as questões colocadas à decisão popular (calcula-se que só um entre 10 italianos conhece com algum rigor o que está em causa); segundo, há a tendência para os cidadãos votarem em questões políticas diferentes das que estão a votos, tornando os referendos em plebiscitos contra o governo em funções, independentemente do mérito das questões submetidas a referendo.

2. Não é a primeira vez que exprimo as minhas objecções contra referendos sobre questões complexas, que não são suscetíveis de uma opção "sim" ou "não", ou a referendos realizados em situações de instabilidade política ou social, em que a paixão política conjuntural tende a primar sobre a razão.
Mas depois do Brexit e do referendo italiano, é de sublinhar que o referendo constitui uma derrogação da democracia representativa, que devia ser excecional, não podendo tornar-se num instrumento de fuga dos governos e dos parlamentos às suas responsabilidades políticas nem, muito menos, de triunfo de populismos conjunturais.

3. A confirmar-se a derrota do referendo, ela redunda numa vitória da direita berlusconiana e da Liga Norte e da pseudo-esquerda populista do movimento "5 estrelas", podendo abrir uma caixa de Pandora política em Itália e, por extensão, na UE.
Cumprindo a sua imprudente ameaça, Renzi pode ser tentado a demitir-se, abrindo uma crise política. Mesmo que o não faça, as condições de governo vão deteriorar-se, até por causa das divisões na maioria de centro-esquerda, com consequências negativas sobre a situação económica e a estabilidade política e financeira do País.
Entre Cila e Caribdis, entre o populismo de direita e o de esquerda, como evitar um naufrágio político em Roma?

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Ganhar, perdendo

É sabido que Donald Trump foi eleito Presidente dos Estados Unidos apesar de ter tido dois milhões de votos populares a menos do que Hillary Clinton. Não é a primeira vez que isso sucede, pois o mesmo ocorreu com a vitória de Bush em 2000, com menos votos do que Gore.
Porquê esta discrepância, pouco conforme à lógica da democracia representativa? Ao contrário do que se tem lido, isso não tem propriamente a ver com a eleição indireta do Presidente, através de um colégio eleitoral, nem com o facto de os membros desse colégio serem eleitos ao nível dos estados da União, em homenagem à estrutura federal dos Estados Unidos.
Há duas razões substantivas para essa assimetria política entre a maioria de votos dos eleitores e a maioria dos delegados no colégio eleitoral. A primeira decorre do facto de a representação dos estados no colégio eleitoral não ser proporcional à respetiva população, com vantagem para os estados mais pequenos. A segunda razão, e mais importante, decorre do facto de a eleição dos delegados em quase todos os estados ser feita por maioria, e não pelo método proporcional, pelo que o candidato presidencial que tiver mais um voto num estado "leva" todos os delegados desse estado.
Não fossem esses dois fatores muito pouco democráticos do sistema eleitoral, especialmente o segundo, o colégio eleitoral seria tendencialmente um espelho político do voto dos eleitores a nível nacional (como acontece com a nossa AR, que é eleita em círculos distritais) e Hillary Clinton seria Presidente dos Estados Unidos.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Transição política em Cuba?

1. Qualquer que seja o juízo sobre Fidel Castro, entre o herói para uns e o tirano para outros, parece evidente que o seu desaparecimento pode facilitar a transição para um regime de maior liberdade económica e política em Cuba, que ele não via com bons olhos. De facto, mesmo se retirado, ele permanecia como garante da continuidade da revolução e do comunismo cubano, limitando a margem de evolução endógena do regime.
Se essa transformação ocorrer - aliás, já iniciada na área económica -, resta saber se Cuba pode tentar replicar a experiência "esquizofrénica" da China e do Vietnam - de transição para o capitalismo na esfera económica sem transição para uma democracia liberal na esfera política - ou se vai passar num prazo mais ou menos curto por um processo de liberalização tanto económica como política.

2. Como parece evidente, as ameaças de Trump de voltar atrás no acordo concluído por Obama podem ter um efeito contraproducente, ajudando as forças conservadoras em Cuba. Pelo contrário, a melhor ajuda de Washington à transição política em Cuba seria a de levantar o injustificável embargo comercial - que tantos razões deu a Havana para estimular os sentimentos anti-americanos e unir os cubanos à volta do regime  - e abrir as relações económicas, turísticas e culturais com a ilha.
Neste provável processo de transição a União Europeia tem um papel insubstituível, na medida em que não adotou a agenda norte-americana de isolamento internacional de Havana, tendo centrado o seu empenho na defesa dos direitos humanos e, através deles, na criação de condições para a transição política em Cuba. Não é altura agora de Bruxelas e os Estados-membros se desinteressarem da desejável transição democrática em Cuba, nem de deixarem os seus créditos por mãos alheias, nomeadamente as de Washington