quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Défice zero, pois então!


1. Alcançado um défice orçamental em 2016 bem abaixo dos 3% (pela primeira vez desde a entrada no euro), o que permitirá a saída de Portugal do "Procedimento por Défice Excessivo" da UE, logo veio quem defendesse que não deve haver mais consolidação orçamental e que se deve aproveitar a folga para aumentar a despesa pública (ou baixar impostos, dirão outros).
Mas, como já referi anteriormente, o bom senso e as normas da disciplina orçamental da UE exigem a prossecução determinada da consolidação orçamental iniciada em 2011, para continuar a reduzir o défice das contas públicas (défice nominal e défice estrutural) e diminuir o peso da dívida pública.
Reversões aqui, não, obrigado!

2. Antes de mais, como o rácio do défice depende do ciclo económico, importa baixar bem o défice quando a economia cresce, de modo a ter margem de manobra para o elevar quando a economia estagna ou deprime, sem voltar a furar o teto dos 3%. A receita mais direta para voltar a entrar em défice excessivo é manter um défice demasiado próximo desse limite na fase ascendente do ciclo económico, como é o caso agora.
É por isso que o Tratado Orçamental veio acrescentar ao limite nominal geral de 3% um limite de 0,5% de défice estrutural, ou seja, descontado dos efeitos do ciclo económico (e deduzido de medidas excecionais), que Portugal ainda está longe de alcançar. Este novo requisito da disciplina orçamental requer uma política orçamental contracíclica, obrigando a reduzir muito o défice orçamental nominal (ou mesmo a alcançar saldo positivo!) em períodos de expansão económica e permitindo a elevação do défice nominal até 3%, em situações de refluxo económico.

3. As regras de disciplina orçamental da UE não se reduzem aos limites do défice das contas públicas, estabelecendo também um teto para o endividamento público (60% do PIB), bem como regras para a sua redução em caso de dívida excessiva.
Ora, com uma elevadíssima dívida pública (perto dos 130%!) - que aumentou exponencialmente entre 2009 e 2012 no auge da crise, por causa dos elevados défices orçamentais, dos juros altos e e da contração do PIB -, Portugal não pode ficar à espera que um incerto crescimento do PIB no futuro dilua a dívida, tanto mais que esta tem custos orçamentais enormes (os maiores na Europa!). Impõe-se por isso reduzir significativamente o ritmo anual de endividamento, a fim de baixar o rácio da dívida e os seus custos (tal como previsto, aliás).
Ora, para isso torna-se necessário aprofundar a consolidação orçamental. Mantendo-se a expansão do PIB, a ambição deveria ser mesmo alcançar em curto prazo um défice zero ou, até, um superávite orçamental, tal como aliás estabelece o Tratado Orçamental.

Coimbra Business and Human Rights Centre


Lançamento desta nova iniciativa no próximo dia 3 de março.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Sem glória nem proveito


1. Ao permitir-se não somente revelar as conversas dos seus encontros com um primeiro-ministro mas também desqualificar pessoal e politicamente o mesmo chefe do Governo, o ex-Presidente da Republica, Cavaco Silva, revela nas suas memórias que o tempo não moderou a sua aversão pessoal e política a José Sócrates, que há seis anos deixou destilar publicamente nos rancorosos discursos da sua vitória eleitoral de 2011 e de tomada de posse na AR, sem paralelo em nenhum discurso presidencial antecedente.
Decididamente a malquerença pessoal e o ressentimento político não são bons conselheiros de memórias políticas. E golpear um inimigo quando ele está politicamente na mó de baixo, como é o caso de Sócrates, é feio. Como era de esperar, e no exercício de um legítimo direito de resposta, o visado respondeu vigorosamente, como é seu timbre. Os testemunhos sectários não podem ficar para a posteridades sem a devida contradita.

2. Cavaco Silva já havia terminado sem glória o seu segundo mandato presidencial, depois de obrigado a "engolir" um governo cuja nomeação tentou evitar até à última, apesar de constitucionalmente legítimo. Agora, com este testemunho incontinente, suscita a primeira polémica de baixo nível e alta tensão entre um ex-presidente da República e um ex-primeiro-ministro na nossa história constitucional democrática. Nem Eanes em relação a Soares, nem Soares em relação ao próprio Cavaco Silva, nem Sampaio em relação a Santana Lopes entraram por aí. Não é precedente de que se deva orgulhar.
E no entanto, não fora o seu desastrado segundo mandato presidencial, a herança política de Cavaco Silva seria lembrada globalmente pelos prolongados e relevantes serviços anteriormente prestados ao País (por mais controvertidos que tenham sido). Não havia necessidade de arruinar ingloriamente e sem proveito essa herança meritória no final da sua carreira, em aras ao ressentimento pessoal e político!

Uma no cravo...


1. A ter fundamento esta manchete do Expresso sobre a revisão do currículo letivo do ensino básico/secundário, há uma mudança que merece todo o apoio e outra, não.
A primeira é a reintrodução da disciplina de Educação Cívica, por que me tenho batido desde sempre (por exemplo, aqui e aqui). Considero imprescindível a educação para a cidadania, os direitos humanos, o civismo e a responsabilidade cívica, a educação financeira básica, educação ambiental, os riscos dos comportamento adictivos, o bullying e o assédio, etc.
O republicanismo cívico começa na escola.

2. Já não concordo nada com uma eventual redução da carga letiva do Português e da Matemática, quer por serem o fundamento de todo o conhecimento, quer pelo evidente défice de saber nessas duas áreas de que padece grande parte dos alunos que completam o ensino obrigatório (para não falar dos que ainda ficam pelo caminho...).
É inaceitável que haja jovens portugueses que chegam à Universidade após 12 anos de escolaridade com enormes deficiências na língua materna e sem serem capazes de calcular uma percentagem (como constato anualmente no meu ensino), o que há algumas décadas não seria admitido no final do ensino básico de quatro anos....

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Diferenças


1. Em relação ao post anterior, sobre a oposição do BE e do PCP à proposta governamental de municipalização de mais algumas tarefas do Estado, um leitor observa que não se trata de nenhuma surpresa nem de nenhuma mudança estratégica, pois os partidos comunistas e neocomunistas nunca podem ser genuinamente descentralistas, sendo como são ideologicamente partidários da "unidade do poder" e da tendencial omnipotência estatal.
Por isso, não podem aceitar que a repartição de competências entre Estado central e as coletividades territoriais infraestatais seja regulada pelo princípio da subsidiaridade (como estabelece a Constituição).

2. Nessa ordem de ideias, as posições de ambos os partidos até agora em favor de descentralização seriam puramente oportunistas, próprias de partidos excluídos do poder no plano nacional e que, portanto, viam na descentralização um meio de enfraquecer o poder central. Por conseguinte, agora que fazem parte da solução governamental ao nivel nacional, esses partidos podem assumir as suas posições intrinsecamente centralistas que por conveniência esconderam até agora.
A ser assim, então temos de somar a descentralização territorial às demais diferenças político-ideológicas mais importantes que separam o PS dos dois partidos à sua esquerda, a juntar à lista onde se encontram a democracia liberal, a economia de mercado, o papel do Estado na economia, a disciplina orçamental e a redução da dívida pública, a União Europeia e o euro, as alianças internacionais, a globalização regulada.
Apesar da coabitação política trazida pela atual parceria governamental, a linha divisória entre as "duas esquerdas" (como mostrei aqui e aqui, por exemplo) não deixou de existir nem perdeu relevância.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Quem diria?


É oficial: depois do PCP, também o BE se manifesta contra uma maior descentralização territorial mediante a municipalização de novas tarefas atualmente nas mãos do Estado.
O argumento de que os municípios não têm "escala" para assumir novas competências é obviamente falso: primeiro, porque eles mesmos apoiam a descentralização (desde que, naturalmente, sejam munidos dos necessários meios financeiros adicionais); segundo, porque os municípios podem sempre adotar soluções intermunicipais, para exercer as tarefas que exijam maior escala, como já hoje sucede.
O argumento é um simples pretexto para justificar a estranha metamorfose centralista da extrema-esquerda. Mas a verdadeira justificação é outra: fazendo agora parte da solução de Governo ao nível nacional e tendo portanto meios de influenciar o poder central, tanto ao PCP como o BE preferem exercer esse inesperado poder do que transferir competências para o poder local, onde têm uma influência limitada e localizada (no caso do BE nem isso). Tudo somado, ambos preferem influenciar o poder ao nível nacional. Afinal, sempre é uma questão de "escala"...
O surpreendente neocentralismo da extrema-esquerda é, portanto, um "efeito colateral" da "geringonça". Quem diria?

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Um pouco mais de jornalismo, sff



Esta peça pseudojornalística sobre o acordo de comércio e investimento entre a UE e o Canadá (conhecido pela sigla CETA), publicada no site da RTP, viola os mais elementares deveres deontológicos do jornalismo decente: informação falseada, mistura de informação com opinião do autor, sectarismo ideológico lesivo de qualquer objetividade.
Assim, entre outras coisas:
   - o título da peça, sem aspas nem ponto de interrogação, é uma pura opinião política do autor, sublinhada pela ilustração escolhida (na imagem);
   - a alegada filiação do CETA no TTIP (acordo UE-Estados-Unidos) é um disparate grosseiro, quer quanto ao calendário da negociação (pois o primeiro precedeu o segundo em quatro aos), quer quanto ao conteúdo (pois as negociações do TTIP ficaram a meio, pelo que nunca poderiam ter influenciado o CETA);
   - a acusação relativa à resolução dos litígios de investimento repete pela milionésima vez a falsíssima pseudoinformação sobre os alegados "tribunais arbitrais dominados pelas multinacionais", como já mostrei aqui;
  - o militante juízo condenatório global sobre o CETA limita-ser a reproduzir as acusações e o ponto de vista dos opositores do acordo no campo das esquerdas "antiglobalização" e "altermundistas", que é sem dúvida legítimo mas não deixa de ser politicamente assaz minoritário, como a votação no Parlamento Europeu mostrou mais uma vez.
Como é que um texto destes pôde ser publicado como peça jornalística no site da RTP, eis um mistéio digno de especulação.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

O que o Presidente não deve fazer (5)


1. A propósito do já famoso encontro entre o Presidente da República e o Ministro das Finanças sobre o caso da anterior administração da CGD, um leitor pergunta se o Presidente tem o poder de interpelar diretamente os ministros sobre questões da competência governamental.
Constitucionalmente, a reposta é simples. Não pode haver nenhuma "interlocução" política substantiva entre o PR e os ministros, à margem do Primeiro-Ministro. Só este responde pelo Governo perante Belém e só ele tem a obrigação de informar o Presidente sobre os assuntos governativos e dar-lhe as devidas explicações políticas.
Por isso, o Presidente não pode exigir explicações diretamente aos ministros nem dirigir-lhes nenhuma orientação ou admoestação política.

2. No entanto, nada impede que, no cumprimento dessas obrigações, o Primeiro-Ministro, mediante acordo com Belém, se faça substituir ou acompanhar pelo ministro competente de cada departamento, o que poderá ser especialmente o caso dos ministros dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, dada a necessidade de informação qualificada e de acompanhamento contínuo a que o PR tem direito nessas duas áreas, na sua qualidade de Chefe do Estado e de Comandante Supremo das Forças Armadas.
Por conseguinte, no caso concreto da conferência entre o PR e o Ministro das Finanças, ela não poderia ter ocorrido por iniciativa direta de nenhuma das partes. Todavia, a informação oficial é a de que o Ministro Centeno foi a Belém a pedido do Primeiro-Ministro. Sendo assim, o referido encontro não suscita, em si mesmo, objeções constitucionais (sem prejuízo do que escrevi na adenda (3) deste meu post anterior sobre o mesmo assunto).

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Acordo de Comércio Livre UE-Canadá (CETA) - declaração de voto

 Votei contra o CETA porque, primeiro, o Sistema de Tribunais de Investimento previsto contorna os sistemas judiciais estaduais através de tribunais privados de arbitragem que favorecem o setor privado contra o interesse público.
Segundo, porque o CETA não inclui um capítulo sobre regulação financeira e fiscalidade para as empresas que dele beneficiam. É inadmissível manter o status quo, em que as grandes multinacionais e a criminalidade organizada se aproveitam da mobilidade internacional do capital para artificialmente transferir lucros para jurisdições onde a fatura fiscal é diminuta ou para “lavar” os proveitos do crime, fiscal e outro. Esta desregulação cria desigualdades e distorções na concorrência em mercado, favorecendo as multinacionais, incluindo as do crime. Um acordo de comércio UE-Canadá teria, no mínimo, de tornar vinculativo o que já foi acordado no quadro da OCDE - projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting). Essa seria forma de começar a impedir que várias jurisdições na UE funcionem como “tax swamps” e centros de branqueamento de capitais, tal como o Canadá, que é hoje conhecido por paraíso do branqueamento (snow washing).
Acordos como o CETA fazem o jogo das forças populistas e nacionalistas que cavalgam o ressentimento dos povos contra o neoliberalismo desregulatório.

Madeira - uma jurisdisção fiscal preferencial

Ontem uma cadeia de televisão pública alemã e o jornal catalão "La Vanguardia" publicaram reportagens sobre a Zona Franca da Madeira, descrita como "paraíso fiscal": http://www.lavanguardia.com/temas/madeira e http://www.br.de/nachrichten/madeira-steuerparadies-steueroase-eu-kommission-100.html
De há meses para cá, como Vice-Presidente do Comité PANA do PE (Comissão de Inquérito sobre os #PanamaPapers, tenho vindo a fazer a minha própria pesquisa sobre o duvidoso e perigoso esquema que temos ali montado na Madeira. Por isso no início do ano me desloquei à Madeira, tendo tido oportunidade de falar com  representantes do Governo Regional, da Autoridade Tributária da Madeira, do CNIM /ZFM, da Universidade da Madeira e do PS-Madeira. Em Lisboa, tive também conversas sobre a ZFM com alguns especialistas fiscais, com a direção da Autoridade Tributária, com o Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, e com o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.
Com base no que recolhi de todas as conversas, elaborei uma Nota que ontem mesmo circulei pelos membros do Comité PANA. Pode ser lida aqui: 
http://anagomes.eu/PublicDocs/c1e467c9-239e-4857-a148-95d77039fe0d.pdf

Nova Directiva: combate mesmo o terrorismo?

"Esta Diretiva, suscitada pelos ataques terroristas de Novembro de 2015 em Paris, visa harmonizar legislação penal dos Estados-Membros, melhorar a troca de informações e impedir mais ataques. (Criminaliza atos preparatórios, como treino e deslocações ao exterior e fornecimento ou recolha de fundos para fins terroristas.)
 O Parlamento conseguiu melhorar várias disposições, alertando para o perigo de respostas a quente, desenquadradas de uma estratégia global de combate à radicalização.
A Diretiva tem três principais problemas:
Primeiro, ofensas criminais não adequadamente definidas deixam porta aberta a interpretações que podem restringir desproporcionadamente  Direitos Fundamentais, (incluindo liberdades de expressão, associação e movimento). O combate ao terrorismo em plataformas como a Internet tem que se fazer de forma inteligente e tecnicamente eficaz, o que é muito diferente de criminalizar o seu próprio uso.
Grave é também que a Comissão, que sempre promete melhor legislação, tenha uma vez mais dispensado a avaliação de impacto.
Terceiro, a terminologia “foreign fighter” está errada: a esmagadora maioria dos terroristas que atacaram na Europa são europeus, desintegrados mas aqui nascidos e criados. E não precisaram de viajar para o exterior para ganhar motivação e perpretrar ataques. 
O fundamental para combater o terrorismo não está coberto nesta, nem em nenhuma directiva: exige que os nossos  governos abandonem políticas neo-liberais austeritárias  que sonegam fundos para equipar e treinar polícias e forças da lei, que criam mais guetos e segregação nas nossas cidades, que tornaram prisões em centros de radicalização em vez de reabilitação. E que esses mesmos governos parem a importação para mesquitas europeias de propagandistas do fundamentalismo wahabista."

(Minha intervenção esta tarde, em plenário do PE, sobre uma nova Directiva para combater o terrorismo)

Vacina


1. Embora ficando abaixo da meta inicialmente estabelecida e aquém do desempenho económico de 2015, o crescimento da PIB em 2016 (1,4%) subiu bem acima das projeções de há alguns meses (e, no último trimestre, mesmo acima da média da zona euro, como mostra a figura junta), o que ajuda a comprender também os bons números relativos à melhoria do emprego e das contas públicas (salvo a não redução do défice estrutural e o agravamento da dívida pública).
Havendo agora perspetivas de manutenção desta dinâmica mais positiva do crescimento económico (até porque coincide com a retoma económica europeia) e dos seus efeitos positivos na esfera orçamental, é de esperar que o Governo privilegie a redução do défice e da dívida, de modo a convencer as agências de rating e conseguir uma redução dos juros. No atual quadro político importa afastar decididamente o risco de aproveitar a "folga" orçamental para aumentar de novo a despesa pública a fim de satisfazer constituencies políticas mais influentes, à custa do arrastamento do imprescindível processo de consolidação das contas públicas.

2. Convém assegurar que as provações orçamentais por que o País passou (que provocaram a assistência externa de 2011) tenham servido de vacina contra uma recaída no facilitismo na gestão das finanças públicas.
Depois da saída do programa de assistência financeira e do regresso aos mercados da dívida em 2014, a esperada saída do "procedimento por défices excessivos" da UE testemunha os progressos feitos no saneamento financeiro do país e premeia os esforços feitos desde então.
Mas com um crescimento económico ainda insuficiente, um nível de poupança interna muito baixo, um sistema financeiro ainda fragilizado (pese embora o meritório processo de saneamento bancário em curso) e, last but not the least, uma elevadíssima dívida pública externa (pública e privada), continua a ser longo e não isento de escolhos o caminho que resta percorrer para atingir os objetivos.
Descansar sobre os resultados já alcançados e interromper o caminho encetado não é opção. Voltar à antiga despreocupação financeira seria uma dolosa irresponsabilidade.

Adenda
Não imaginava que este meu alerta pudesse ser tão justificado! Já hoje na AR a extrema-esquerda parlamentar veio criticar o Governo e protestar contra a redução excessiva do défice, defendendo que se devia ter aproveitado para gastar mais! Só faltou invocar a justa luta contra a "austeridade" orçamental. Decididamente, o seu ideal é despesa pública com dinheiro emprestado, à custa do défice e da dívida. Em vez da consolidação estrutural das contas públicas quanto antes melhor, o regresso do facilitismo despesista.

Sequelas


No lamentável imbróglio do falhado processo da anterior (e efémera) gestão da CGD, nenhum dos intervenientes sai muito bem na fotografia, com exceção do próprio António Domingues, que - tendo colocado claramente as suas condições sine qua non para aceitar o cargo e formar a sua equipa (entre elas a dispensa de declaração pública de património e rendimentos exigida aos gestores públicos) e tendo-as visto aceitas expressa ou tacitamente pelo Governo (de outro modo não teria sido nomeado, como é óbvio) - tomou depois a decisão de deixar esse mesmo cargo (apesar de assaz rendoso), em solidariedade com a maior parte da sua equipa, após uma intervenção pública do Presidente da República ter tornado politicamente inviável a satisfação da referida condição e após uma coligação política do PSD e da extrema-esquerda parlamentar a ter tornado legalmente impossível (no que foi a maior vitória política do PSD em mais de um ano de oposição...).
Apesar de esse desfecho negativo ter sido determinado pela intervenção de terceiros (incluindo os aliados parlamentares do Governo...), os diretos responsáveis governamentais não saem politicamente incólumes, tanto mais que as sequelas da sua imprevidente e pouco transparente condução do processo ainda não se esgotaram, como os episódios dos últimos dias penosamente mostram.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

O que o Presidente não deve fazer (4)


1. Nesta peça do Público diz-se que eu também tenho dado "remoques" a Marcelo Rebelo de Sousa sobre o exercício da função presidencial.
Penso, porém, que esse termo não faz jus às minhas várias observações ao longo destes meses, que são sempre assumidas, diretas e claras (por exemplo, aqui, aqui e aqui, entre outras). O que tenho dito são duas coisas simples acerca do que eu entendo ser o papel político-institucional do Presidente da República no nosso sistema constitucional, e que não dependem da idiossincrasia pessoal das personalidades que exercem o cargo:
   - primeiro, que o PR não é cotitular da função governativa, pelo que não deve imiscuir-se no exercício desta pelo Governo nem parecer como se fosse tutor ou arauto deste, como sucedeu algumas vezes;
   - segundo, que nas suas funções de arbitragem e de supervisão do sistema político, o Presidente deve manter um adequado distanciamento tanto em relação ao Governo (que não depende do seu apoio nem da sua confiança política) como em relação à oposição (que não precisa de uma muleta em Belém), evitando tomar partido na natural contenda política entre um e outra, sem alinhar com o primeiro nem com a segunda.

2. Ora, quanto mais o PR se envolve no debate político corrente mais riscos corre de debilitar a sua estatura institucional e de se comprometer politicamente num sentido ou noutro. O maior ativo constitucional da função presidencial é a autoridade e independência do cargo, acima da dialética Governo-oposição.
Por mais gratificantes que sejam durante algum tempo, a banalização e o frenesim quotidianos da ação presidencial são contraproducentes a prazo.

Adenda
Substituí a rubrica originária deste post, alinhando-a com a da série de posts em que tenho comentado o exercício do mandato presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa.

Adenda (2)
No meu entendimento, os ministros não carecem da confiança política do PR, nem este os pode demitir por sua iniciativa, sem prejuízo de poder suscitar a questão da permanência de um ministro perante o Primeiro-Ministro. Por isso, quando um ministro se sente na necessidade de colocar o seu lugar à disposição, fá-lo perante o PM, a quem tem de prestar contas, não perante o Presidente.

Adenda (3)
Desnecessário é acrescentar que a eventual confirmação da confiança política do Primeiro-Ministro num ministro não depende de autorização nem de aceitação de Belém. Por isso, quando se refere à "aceitação" presidencial, o parágrafo final da nota oficial da Presidência da República sobre o encontro entre MRS e o Ministro das Finanças precisa de uma "interpretação conforme à Constituição".

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Antologia da falsificação política


1. A propósito do acordo de comércio e investimento entre a UE e o Canadá (CETA), que vai ser sujeito em breve a aprovação tanto no Parlamento Europeu como na AR (como já aqui se referiu), uma deputada do BE escreveu o seguinte sobre o tribunal para os litígios de investimento estrangeiro (ICS -Investment Court System) previsto naquele acordo:
«Mas o ICS institucionaliza uma ideia absolutamente perversa: a ideia de que as empresas e investidores têm poder para processar Estados por interferirem nos seus lucros através do seu legítimo direito de legislar, criando um tribunal arbitral, privado, sem garantias de independência ou isenção, e retirando possibilidade de recurso pelos Estados.»
Ora, tudo isto é pura invencionice de quem nada sabe sobre o que escreve. Como se pode ver aqui, não se trata de um tribunal arbitral nem privado, mas sim de um verdadeiro e próprio tribunal oficial internacional que goza de garantias de independência, havendo também direito de recurso para um instância superior. A autora teve obviamente em mente o sistema tradicional da arbitragem internacional de litígios de investimento (conhecido pela silga ISDS), que foi abandonado no CETA e substituído pelo novo ICS (apresentado há quase dois anos no Parlamento Europeu pela Comissão Europeia, na imagem)
De acordo com as regras do Estado de direito, todos têm direito a indemnização pelos danos causados por atos do Estado, se ilícitos. Ora, quando se trata de violação de direitos estabelecidos por acordo internacional é lógico que a competência caiba a tribunais internacionais e não aos tribunais nacionais. Mas o regime da responsabilidade do Estado é essencialmente idêntico.

2. É evidente que, mude o que mudar nos acordos internacionais de comércio e investimento da UE, a extrema-esquerda é sempre contra, por princípio, por se tratar da odiada globalização económica e do execrado capitalismo internacional.
O grupo parlamentar da Esquerda Unida Europeia (GUE), que inclui o PCP e o BE, tem votado sistematicamente contra os acordos internacionais de comércio da UE no Parlamento Europeu, tendo muitas vezes a companhia da extrema-direita nacionalista, que compartilha dos mesmos valores protecionistas e anti-liberdade do comércio internacional.
Como é fácil antever, tanto o BE como o PCP vão votar contra o CETA na Assembleia da República. E provavelmente vão repetir mais uma as invencionices acima referidas. Quando a verdade não convém, os dogmas ideológicos preferem "factos alternativos".

Duopólio


1. Esta notícia sobre o atraso da realização do plano ferroviário confirma inteiramente as minhas observações anteriores (aqui e aqui) sobre a baixa prioridade do investimento público no transporte ferroviário e sobre o "país a duas velocidades" quanto a transportes (e a outras coisas).
Quando se trata de carris, o dinheiro abunda para os metros de Lisboa e do Porto - que nem sequer deveriam ser uma responsabilidade do Estado, como serviços públicos locais que são - mas falta na implementação da rede ferroviária nacional, apesar do maciço cofinanciamento da UE de que este investimento goza. Como o referido "plano ferroviário" tem a ver com a "província", bem pode esperar, mesmo que estejam em causa especialmente as cruciais ligações com a Espanha.
Em matéria de iniquidade territorial, já nem vale a pena falar no escandaloso caso da "estação" ferroviária de Coimbra, nem muito menos do imaginário metro de Coimbra.

2. Como já disse algumas vezes, os investimentos públicos vão prioritariamente para onde há mais eleitores e mais influência política (desde logo porque quase toda a elite política lá mora), mesmo que já gozem das melhores infraestruturas públicas e das melhores condições de vida do país. É um círculo vicioso contra a equidade e a coesão territorial nacional.
Contra isto pouco valem os grandiosos planos de descentralização territorial ou de apoio ao desenvolvimento do interior. O crescente duopólio metropolitano de Lisboa e do Porto asfixia inexoravelmente o resto do País.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Antologia do despeito


1. Perguntado sobre José Saramago, o escritor António Lobo Antunes declarou ao suplemento do Expresso de ontem (indisponível on line) o seguinte:
«[Saramago] achava-se mesmo um grande escritor. Eu sempre achei aquilo [sic] uma merda [re-sic]».
Temos de ler duas vezes para confirmar que é isso o que está escrito!
É evidente que, como acontece em todos os ofícios, os escritores não têm de gostar uns dos outros nem de ser hipócritas na opinião que tenham sobre os outros. Mas quando se permitem emitir juízos públicos acerca de outros escritores, nada justifica a incontinência verbal, sobretudo quando ela corre o risco de revelar um imenso despeito.
O fígado não é o órgão indicado para julgar quem não apreciamos.

2. A opinião dos pares não constitui o melhor critério da avaliação dos escritores. Para isso há o público, a crítica, a academia e o teste do tempo após o seu desaparecimento. Mesmo sem o Nobel, Saramago passou todos os testes por que passam os grandes escritores.
Lobo Antunes está no seu pleno direito de discordar. Mas não lhe fica bem fazê-lo nos termos em que o fez, sobretudo quando o visado já cá não está para ripostar (e aposto que não usaria linguagem de sarjeta). Lobo Antunes nem precisava de nobreza nem de decência para evitar o insulto soez; bastava o respeito por si próprio. É de admitir que nem todos os demais escritores tenham a sua obra na alta conta literária em que ele próprio a tem...
Um pouco de contenção na apreciação dos concorrentes não faz mal a nenhum escritor. Há sempre o risco do ricochete.

Regionalização encapotada? (3)

1. Como mostra o mapa das NUTS II (ver penúltimo post), a Área Metropolitana do Porto está integrada na região Norte, ao passo que a Área Metropolitana de Lisboa constitui uma região em si mesma.
Não vejo razão para a assimetria, tanto mais que as áreas metropolitanas têm problemas específicos. Por isso, penso que é altura de autonomizar a AMP e destacá-la da CCDR Norte, passando a sede desta para Braga.

2. Também julgo que as regiões Norte e Centro devem ter um nome identificador próprio, tal como as de Lisboa, Alentejo e Algarve. Proponho os nomes de Entre-Minho-e-Douro e Beiras, respetivamente, os quais, tal como o Alentejo e o Algarve, remetem para as antigas províncias históricas.

Regionalização encapotada? (2)

Em aditamento ao post precedente, é certo que já existe desde há muito um precedente institucional aproximado do modelo agora proposto para as CCDRs, que é o das entidades regionais de turismo, cujos órgãos dirigentes também fogem à nomeação governamental, sendo compostas pelo Estado, pelos municípios abrangidos e pelas entidades privadas do setor.
Mas, para além da sua reduzida competência setorial, sempre é verdade que essas entidades não estão legalmente integradas na administração territorial do Estado, sendo consideradas como "associações" das referidas entidades participantes, logo uma espécie de "coadministração" entre o Estado, os municípios abrangidos e as entidades privadas do setor turístico.
Apesar desse enquadramento legal exótico (cuja admissibilidade constitucional não é evidente), as entidades regionais de turismo estão sujeitas a tutela de mérito do Governo, incluindo a aprovação governamental do orçamento e do plano de atividades, pelo facto de o Estado participar nesse exercício de cogestão administrativa, o que não será o caso das novas CCDRs.

"Regionalização encapotada"? (1)


1. Ha quem acuse de "regionalização encapotada" a proposta governamental de reforçar administrativa e políticamente as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDRs), transferindo para elas novas competências da atual administração regional do Estado e fazendo-as eleger por um colégio eleitoral regional composto pelos autarcas municipais das respetivas circunscrições territoriais, correspondentes às cinco NUTS II do Continente (ver imagem). Sendo, então, uma verdadeira regionalização instituída por via de lei, ela seria inconstitucional, por prescindir do referendo, que é constitucionalmente obrigatório.
Mas essa acusação não tem nenhum fundamento.
De facto, a referida proposta não cria nenhuma nova autarquia regional, com atribuições próprias, órgãos diretamente eleitos, meios financeiros e orçamento próprios, pessoal próprio. Elas continuarão a ser organismos da administração territorial do Estado, as suas atribuições continuarão a pertencer ao Estado, tal como os seus meios financeiros e o seu pessoal. Mesmo se forem dotadas de personalidade jurídica própria e transformadas em "institutos públicos territoriais", elas continuarão a pertencer à administração indireta do Estado (tal como já hoje sucede com as administrações regionais de saúde, que têm a mesma circunscrição territorial das CCDRs).

2. Independentemente disso, porém, a proposta da eleição das CCDRs pelos autarcas - deixando de ser nomeadas pelo Governo - suscita outros problemas políticos e constitucionais.
De facto, deixando o Governo de nomear e exonerar as CCDRs, como se vai articular a nova legitimidade política própria destas, conferida pela eleição, com os poderes de superintendência e de tutela governamental que são inerentes à Administração indireta do Estado? E, nesse quadro, como é que o Governo responde politicamente pela sua administração regional (incluindo perante a AR), se não puder pedir contas e responsabilidades às CCDRs? E sendo as CCDRs eleitas pelos autarcas, com maiorias políticas diferentes de região para região, como é assegurada a "unidade de ação" da Administração do Estado exigida pela Constituição?
Nao sendo conhecido o teor da proposta, importa que estas perguntas tenham uma resposta convincente.
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sábado, 11 de fevereiro de 2017

Novo impulso descentralizador


Há anos que defendo que se devia promover um novo impulso na descentralização territorial do Estado, transferindo novas matérias para os municípios (ou comunidades intermunicipais).
Na minha perspetiva, como defendi há quatro anos, esse ambicioso novo impulso deveria ir ao ponto de abranger o ensino (ensino básico), a saúde (centros de saúde), a proteção social e e a formação profissional. O Governo Passos Coelho fez menção de ir por aí em 2014, mas a sua reforma acabou por ficar por bem pouco.
O novo programa de descentralização municipal anunciado pelo atual Governo também não vai tão longe quanto eu defendi, mas mesmo assim o número de tarefas a municipalizar não é despiciendo. Eis uma boa maneira de comemorar as quatro décadas de institucionalização do poder local democrático em Portugal, em 1976.

Adenda
Quando se julgava que a descentralização de funções do Estado nos municípios era consensual entre as forças políticas, eis que o PCP se vem manifestar, através dos seus ventríloquos sindicais, pela paragem do processo de municipalização. Afinal, o caso da Carris de Lisboa não era isolado. Parece que o PCP reverteu mesmo a sua tradicional postura descentralizadora!

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Brincar com o fogo


Como vem sendo hábito, o BE antecipa-se a trazer a público unilateralmente as alegadas conclusões de um grupo de trabalho conjunto com o PS sobre a suposta "insustentabilidade da dívida pública portuguesa". E o porta-voz bloquista deixa cair a ameaça de que «a renegociação da dívida é crítica para a sustentabilidade da solução política à esquerda».
Independentemente da falta de fundamento para a tese da insustentabilidade - que nenhuma instituição da UE ou internacional subscreve - e da importância decisiva que o BE atribui à "renegociação" (o que quer que isso queira dizer...), a verdade é que este tema não faz parte do acordo de governo e é perfeitamente aventureiro colocar essa questão na agenda política neste momento, quando os juros da dívida mantêm uma pressão para a subida (como mostra o gráfico junto, colhido daqui) e as agências de rating continuam a manter o país com uma notação negativa (que é essencial alterar). Nestas condições, toda a especulação sobre a "insustentabilidade" e "renegociação" da dívida só pode agravar o nervosismo dos mercados e confimar as reservas das agências de rating, jogando assim contra os interesses do País - e do Governo.
Que o BE agite o tema, isso faz parte da sua usual irresponsabilidade política; que o PS venha a compartilhar desse perigoso exercício, não seria propriamente prudente! Obviamente, o PS não pode mandar calar os seus aliados parlamentares neste assunto, mas pelo menos pode deixá-los a falar sozinhos.

Avanço civilizacional



1. Um década passada sobre o referendo de 2007, o saldo da legalização do aborto é inteiramente positivo: fim do aborto clandestino, das mortes por aborto e da perseguição criminal das mulheres e diminuição do número de abortos. A principal maldição dos opositores da lei - a banalização do aborto como método anticoncecional - não se verificou, pelo contrário.
Quem por razões religiosas ou outras se opõe ao aborto pode obviamente continuar observar pessoalmente as suas convicções (incluindo a objeção de consciência do pessoal de saúde), sem porém as impor aos outros através do Código Penal, como é próprio de uma sociedade livre e de um Estado laico.

2. A viragem de há dez anos consolidou-se pacificamente na comunidade nacional.
A Igreja Católica conformou-se com a decisão da maioria democrática e os partidos de direita, que em 2007 se opuseram militantemente à legalização do aborto, afastaram prudentemente a sua reversão da agenda política quando voltaram ao Governo em 2011, pese embora a pressão de alguns fundamentalistas.
Tendo participado ativamente no debate público aquando do referendo e da aprovação da lei, apraz-me sobremaneira comemorar os dez anos desse avanço civilizacional que foi o fim da criminalização do aborto e a sua regulação nas condições estabelecidas na lei.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Pós-doutoramento em Democracia e Direitos Humanos


Informações: http://www.fd.uc.pt/igc/cursopd/index.html

Culpa própria


Os esforços da UE para conter o fluxo de imigrantes sub-saharianos que atravessam o Mediterrâneo vindos da Líbia serão defraudados enquanto o Estado e a segurança não forem restaurados nesse país.
Tendo a Grã-Bretanha e a França sido os grandes responsáveis pela destruição do Estado líbio e do subsequente caos político, com a sua imprudente intervenção armada destinada a mudar pela força o regime político nesse país, cabe agora à UE fazer tudo o que estiver ao seu alcance para reconstruir o Estado e restaurar a ordem política e a governabilidade do País, sem o que não existe paz civil nem segurança, nem muito menos controlo dos fluxos migratórios em direção à Itália.
A Europa está a pagar bem caro a (ir)responsabilidade de alguns dos seus Estados-membros na desestruturação do Estado no Iraque, na Síria e na Libia. É tempo de reparar os danos, na origem!

Este país não tem emenda (2)

«Juízes demoram 40 meses para julgar cobrança de dívidas».
Como é que uma economia pode funcionar se é preciso mais de 3 anos de litigância para obter a cobrança coerciva de dívidas!?

Ai, a dívida! (8)

1. Um leitor contesta a minha preocupação insistente com a questão da dívida pública ("já chateia", diz ele), argumentando que se o défice das contas públicas está a diminuir consistentemente e a economia a crescer, então o rácio da dívida pública não pode deixar de se reduzir.
Infelizmente, as coisas não são bem assim.
Primeiro, como assinalei anteriormente, a redução do défice em 2016 foi essencialmente devida ao saldo da segurança social (cortesia da melhoria do mercado laboral), que compensou o défice das contas do Estado, o qual aumentou significativamente em vez de diminuir (como regista a UTAO). Ora, como o Estado não pode utilizar o saldo da SS para pagar as suas despesas (tendo de transferir esse excedente para o Fundo de Garantia da SS), o défice do setor Estado tem de ser pago com recurso ao crédito. Eis porque, apesar da redução do défice público global, a dívida aumentou.
Em segundo lugar, dada a insuficiência do saldo orçamental primário, o País tem de contrair nova dívida para pagar os juros e amortizar a dívida existente; ora, como os juros da nossa dívida têm estado a aumentar, cada nova emissão de obrigações traz um agravamento do custo médio da divida, pois os juros atuais (acima dos 4%) são superiores aos juros médios da dívida anterior.
Por último, em 2016 a dívida cresceu a um ritmo superior ao do PIB, pelo que o rácio entre aquela e este se agravou.

2. Portanto, para reduzir o peso da dívida será necessário: (i) reduzir o défice orçamental do setor Estado e o recurso a nova dívida; (ii) melhorar a confiança dos investidores e baixar os juros; (iii) ter maior crescimento económico para diminuir o rácio dívida/PIB.
Enquanto as coisas não melhorarem nesses fatores, é escusado esperar pela subida do rating negativo da nossa dívida pública, que a Fitch acaba de manter inalterado (o que, obviamente, não pode ser saudado como uma boa notícia). E sem isso, não haverá melhoria do sentimento dos investidores nem descida consistente dos juros.
Acresce que a perspetiva de uma elevação geral dos juros nos mercados financeiros não contribui obviamente para desanuviar o horizonte, pelo contrário.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Assunto encerrado

1. Como lhe competia, o Governo atalhou cerce a nova e canhestra tentativa de reabrir politicamente o dossier do Acordo Ortográfico de 1990.
Como acordo internacional que é, a que o País se encontra vinculado e que está em vigor, só uma enorme irresponsabilidade política é que permitiria coonestar uma leviana iniciativa unilateral de revisão do AO. A língua portuguesa é um património plurinacional dos países que a compartilham, de que Portugal nem sequer é o maior dos condóminos. Em matéria de reformas ortográficas unilaterais bastou a de 1911, a mãe de todas as atribulações ortográficas da Língua Portuguesa. Aquilo que foi decidido por acordo entre todos os "donos" da Língua comum em 1990 só por novo acordo entre todos deve ser modificado.
Ao contrário do que pensam alguns dos adversários mais fundamentalistas do AO, a era do Império já passou há muito! Os assuntos da Língua já não se decretam autoritariamente em Lisboa.

2. A conduta do Academia de Ciências de Lisboa neste dossiê, e do seu presidente em especial, é a todos os títulos censurável.
Primeiro, tendo endossado o AO de 1990 (como se relembra nesta excelente comunicação), a ACL carece de qualquer legitimidade para, passados estes anos todos, vir questionar a autoridade e legitimidade científica do Acordo. Segundo, antes de propor qualquer "aperfeiçoamento" do AO em vigor, a ACL deveria apresentar essa iniciativa na sede própria da CPLP, que é a Instituto Internacional Língua Portuguesa (IILP). Terceiro, como organismo oficial que é, a ACL tem a obrigação de utilizar e respeitar a ortografia oficial e de elaborar o correspondente dicionário, independentemente da sua concordância com ela. Por último, e sobretudo, é inadmissível que a Academia sugira a adoção de uma nova ortografia nacional, em violação deliberada do acordo com os demais países de Língua Portuguesa. Não é sério!
Sendo um organismo consultivo para as questões da Língua, a ACL pode recomendar todas as alterações ortográficas que lhe aprouver à norma vigente, incluindo tonterias como algumas das que apresentou publicamente (como a recuperação de algumas consoantes mudas), mas, entretanto, como organismo público que é, tem de respeitar e cumprir a legalidade ortográfica do País, goste ou não dela.
Assunto encerrado, portanto.

Adenda (10/2)
Quanto ao procedimento pouco curial como que foram adotadas as "propostas" de alteração subscritas pela ACL ver este elucidativo texto de Rolf Kemmler.

Ubiquidade constitucional


1. Infelizmente, entre nós existe um entendimento generalizado de que tudo tem de ter uma solução na Constituição, pelo que o debate político redunda quase sempre numa esgrima de argumentos constitucionais, em vez de uma troca de argumentos políticos.
Tal é o que sucede agora com a questão da morte assistida, vulgo eutanásia, que acaba capturada por essa "ubiquidade constitucional". Enquanto os apoiantes da despenalização defendem que se trata de uma questão de direitos humanos e de liberdade e dignidade pessoal, sendo por isso inconstitucional a atual criminalização, os seus opositores acham que a eutanásia constitui uma violação do direito à vida, sendo por isso inconstitucional despenalizá-la.
E se a Constituição, corretamente interpretada, não fornecesse nenhuma solução para a eutanásia e deixasse essa questão (tal como o aborto ou a casamento de pessoas do mesmo sexo) ao bom e prudente critério do legislador democrático (ou dos próprios cidadãos em referendo, se tal for opção) após adequado e informado debate público?

2. Ao contrário do referido "totalitarismo constitucional" vulgar, a Constituição não está em toda a parte, nem tem solução para tudo, muito menos pretende cancelar a essencial liberdade de decisão do legislador democrático. A história constitucional mostra que as constituições que muito pretendem abarcar acabam por pouco alcançar.
A primeira regra de interpretação da Constituição numa democracia liberal é a de que a limitação do legislador democrático é a exceção, sendo a regra a liberdade de opção política. É politicamente livre tudo o que a Constituição não proíba ou imponha.
Por isso, antes de serem eventualmente conformes ou desconformes à Constituição, as propostas políticas, como a da despenalização da eutanásia, podem ser boas ou más soluções, de acordo com a perspetiva moral e política de cada um, e é por esses critérios antes de mais que devem ser debatidas e decididas. As boas soluções políticas não precisam de ter bênção constitucional e as más não precisam de ser inconstitucionais.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Recessão democrática?


(Níveis de participação eleitoral no mundo; a linha cheia vermelha indica a média global)

1. Não é somente a economia que está sujeita a crises e a recessões. O mesmo se passa com a democracia representativa, baseada no sufrágio universal periódico para a eleição dos representantes do poder político (parlamentos e, muitas vezes, presidentes), e em especial com a democracia liberal, baseada na liberdade política e no Estado de direito. (A noção de "recessão democrática" foi popularizada por Larry Diamond num artigo de 2015.)
Embora o número de democracias representativas mais ou menos liberais tenha aumentado substancialmente durante a chamada "terceira vaga da democratização" (1974-2005), há por um lado os casos de retorno à autocracia e por outro lado, mesmo onde isso não ocorreu, há indícios de perda de vitalidade da democracia eleitoral em geral e da democracia liberal em particular.

2. Um deles é a redução consistente da participação eleitoral (voter turnout) desde os anos 80, em especial na Europa, como mostra a tabela acima junta (colhida daqui) com dados da eleições entre meados do século passado e 2015. A menor participação eleitoral é, em geral, um sintoma de desafeição democrática.
Outro fator é o crescente recurso ao referendo para decidir questões políticas controversas, com afastamento dos mecanismos representativos, incluindo a possibilidade de convocação popular direta de tais referendos, à margem das instituições democráticas.
O terceiro sintoma da "recessão democrática" é o triunfo ou o crescente apoio eleitoral de candidaturas iliberais e/ou populistas, quer em países sem uma consistente cultura democrático-liberal (como a Turquia ou a Rússia), quer mesmo em democracias avançadas, como na Europa e nos Estados Unidos.

3. A eleição de Trump nos Estados Unidos e a liderança de forças políticas daquela natureza em inquéritos de opinião eleitoral em países como a França, a Holanda, a Áustria, etc. revelam uma clara perda de apelo popular da democracia liberal, mesmo onde isso parecia mais improvável.
A questão é a de saber se estamos perante um "declínio democrático" que veio para ficar ou se, tal como as recessões económicas, também a recessão democrática é transitória.
Seguramente, porém, não basta esperar sentado!