sexta-feira, 3 de março de 2017

Contradição


Depois de aprovada a bem-vinda lei que deixa de qualificar os animais como "coisas", passando a considerá-los como "seres vivos dotados de sensibilidade" - no seguimento do Tratado da União Europeia e das leis de diversos países -, que sentido faz continuar a consentir (e a promover!) as touradas, que representam uma das mais bárbaras crueldades contra animais, com a agravante de servirem para divertimento público?
Pode essa nova qualificação jurídica ser compatível com a tortura sádica dos touros na arena, a esvair-se em sangue para gáudio de massas ululantes? Vai a nossa ordem jurídica ser coerente com o novo estatuto jurídico dos animais, e proibir as touradas tal como existem, ou vai a hipocrisia política das "tradições populares" continuar a prevalecer?

Quando as previsões orçamentais falham


Não me parece justificada a censura política ao alegado "falhanço" das previsões do Conselho das Finanças Públicas relativas ao défice orçamental do ano passado.
Por várias razões:
  - primeiro, o desvio em relação ao défice efetivo final respeita às previsões da primeira metade do ano, com base nos dados do 1º e do 2º trimestres (em que o CFP previa um défice de 2,7% e 2,8%, respetivamente), tendo sido corrigido depois; no relatório relativo ao 3º trimestre já se admitia o alcance da meta orçamental (entretanto corrigida para 2,4%);
  - segundo, o CFP não errou mais nas suas previsões do que outras instituições nacionais e internacionais (incluindo a Comissão Europeia e o FMI), o que quer dizer que usou as metodologias comuns para o efeito;
  - terceiro, as previsões são feitas sempre na base da situação existente na altura em que ocorrem e sob condição de "políticas invariantes"; ora, por um lado, ninguém podia prever, por exemplo, a aceleração da atividade económica na segunda metade do ano, que facilitou a execução orçamental (mais receita tributária, menos despesa social), nem o excedente da segurança social (principal responsável pela redução do défice global), nem a dimensão do corte na despesa de investimento público, nem muito menos o perdão fiscal no final do ano;
  - por último, o próprio Governo se enganou nas suas previsões, pois ainda no relatório do orçamento para 2017 inscreveu um défice de 2,4% para 2016, bem acima do que depois se verificou.
Em matéria de previsões erradas, haja quem atire a primeira pedra. E não vejo nenhuma vantagem em o poder político desacreditar sem fundamento as instituições públicas de escrutínio orçamental independente.

Adenda
Houve quem aproveitasse para tentar desacreditar pessoalmente a presidente da CFP, Teodora Cardoso. Tendo trabalhado com ela num grupo de trabalho oficial, devo dizer que me impressionou pela sua competência, probidade, seriedade e isenção. Subscrevo inteiramente o que a este respeito escreveu Nicolau Santos.

Adenda 2
Explorando uma deslocada referência de Teodora Cardoso a um possível "milagre" no défice orçamental do ano passado, um deputado do PCP, mais papista do que o papa na defesa do Governo, veio considerar ser um milagre que Teodora Cardoso ainda tenha emprego e salário. É uma advertência coerente, pois na futura "democracia popular" que o PCP defende não haveria obviamente entidades independentes de escrutínio orçamental e quem ousasse discordar da pauta do poder teria como destino imediato a porta da rua. De facto, há alianças que comprometem...

Adenda 3
Continua por conhecer a redução do défice estrutural em 2016, o que é importante para confirmar o pleno cumprimento das metas orçamentais e a consistência da redução do défice nominal.

quinta-feira, 2 de março de 2017

Antologia da publicidade política

«Não são as empresas que dão os aumentos [salariais], é António Costa».
Certamente sem o querer, o antigo patrão dos patrões, Pedro Ferraz da Costa, forneceu a António Costa o melhor slogan de propaganda política a que ele podia aspirar!

"Firm-flex"


1. Para assegurar aos seus militantes que a aliança parlamentar com o PS não amoleceu os seus princípios antieuropeístas, o PCP resolveu lançar uma campanha para que o país se prepare para a "inevitável" saída do euro, acrescentando, porém, que a dita tem de ser "negociada com o BCE" (entrevista do antigo secretário-geral, Carlos Carvalhas ao Jornal de Negócios), o que não deixa de ser curioso.
De facto, como a pertença à UE implica o obrigação de adoção do euro (salvo os países que optaram por ficar de fora ou que ainda não preenchem os necessários requisitos), não se vê como é que o BCE poderia negociar a saída de um dos Estados-membros da moeda única.

2. A gente está a ver o filme. O PCP é contra o euro por razões dogmáticas, mas de facto não quer saída nenhuma, porque sabe os enormes custos económicos e sociais que teria (que aliás a referida entrevista em vão tenta desvalorizar). Tal como já diz expressamente que continua a ser contra a UE mas não defende a saída, também o haveremos de ouvir a dizer o mesmo acerca do euro, algures no futuro.
Chama-se a isso "firm-flex", ou seja, firmeza nas convicções ideológicas declaradas e flexibilidade tática para as deixar na gaveta quando convém!

O seu a seu dono


1. Os adeptos da "Geringonça" rejubilam com as boas notícias da frente económica (crescimento e emprego), e com razão, até porque não é despicienda a contribuição dos fatores internos para esse bom desempenho, nomeadamente o aumento do poder de compra de muita gente (funcionários públicos, trabalhadores com salário mínimo, pensionistas), a paz social (cortesia da CGTP e do PCP), a estabilização do sistema financeiro e o clima de estabilidade política, que é importante para o investimento.
Mas não se devia ignorar o contributo, porventura decisivo, dos fatores externos - e que só por si fariam crescer a economia, como já era o caso desde 2014 -, designadamente o dinheiro barato e a desvalorização externa do euro (cortesia Mario Draghi), a energia barata, a retoma económica robusta do resto da UE (e em especial dos nossos principais parceiros económicos, Espanha e Alemanha), a invasão turística (produto dessa mesma retoma externa).

2. No contexto da integração económica e monetária europeia e do mercado interno - com política monetária e política económica externa comuns e com a convergência de políticas orçamentais -, a dinâmica das economias nacionais depende, cada vez mais, essencialmente da evolução do conjunto.
Se se compararem as curvas relativas à economia e ao emprego em Portugal e noutros países da zona euro desde a crise, é fácil constatar uma fundamental coincidência. Pode variar o ritmo em cada país, mas, salvo divergências pontuais (como é o caso especial da Grécia), a direção plurinanual é fundamentalmente a mesma.
O seu a seu dono, portanto.

Pecado original

Sempre discordei da entrega ao Tribunal Constitucional da tarefa de fiscalizar as contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, para o que não está manifestamente vocacionado e para a qual teve de montar um oneroso e sempre insuficiente serviço dedicado, como se revela mais uma vez com este alerta do TC sobre as próximas eleições autárquicas. 
Mais valera ter confiado essa missão ao Tribunal de Contas, que tem os necessários meios e instrumentos e que a poderia realizar com muito mais eficácia e eficiência. Não se justifica a duplicação. Mistérios que só a conveniência partidária pode explicar...

A bela e o senão

Os dados agora conhecidos sobre a atividade económica relativos ao quarto trimestre de 2016, que confirmam o maior dinamismo da economia no segundo semestre do ano passado, são tanto mais positivos quanto isso se ficou a dever sobretudo a uma retoma do investimento privado, o que deixa entender que tem pés para continuar, até porque baseada numa retoma económica geral da UE.
Menos positivo é o regresso ao saldo negativo da balança comercial (menos exportações do que importações de bens e serviços), que se fica a dever ao aumento das importações, voltando-se à correlação tradicional, que é típica das economias menos competitivas, entre aumento da procura interna e aumento das importações, quer de bens de investimento (máquinas e matérias-primas), quer de bens de consumo (automóveis e equipamentos domésticos).
É claro que é melhor ter crescimento com défice comercial do que o inverso. Mas era preferível ter o primeiro sem o segundo...

quarta-feira, 1 de março de 2017

Estado social


1. Para além deste significativo aumento do financiamento público das IPSSs e, logo, da oferta dos seus serviços (creches, lares, etc.) - o qual bem se justifica face ao acréscimo da procura, sobretudo da população idosa -, importa saudar também a adoção do procedimento concursal para a atribuição desse financiamento, afastando assim as tradicionais acusações de favoritismo ou "caseirismo" dos serviços de segurança social na seleção discricionária dos beneficiários.
Assim deve ser, por princípio, na atribuição de qualquer financiamento público a atividades privadas.

2. O financiamento público da prestação de serviços sociais pelas instituições sociais privadas sem fins lucrativos constitui a principal manifestação entre nós do "Estado financiador" como instrumento do Estado social, em vez da provisão direta de prestações sociais pelo Estado.
Não havendo nenhuma objeção constitucional contra a "terceirização" dessa função social do Estado (diferentemente do que sucede na educação e na saúde), também não tem havido até agora nenhuma oposição política dos habituais fundamentalistas do "Estado prestador", que por via de regra veem na "delegação" de serviços públicos ao setor privado e no respetivo financiamento público uma manifestação do nefando "neoliberalismo".
Ainda bem que aqui fazem uma exceção!

O meu voto


Se eu fosse cidadão francês, não teria nenhuma hesitação no meu voto nas próximas presidenciais francesas - E. Macron, obviamente -, não apenas por maior proximidade política mas também porque é o candidato mais capaz de na segunda volta das eleições aglutinar os votos necessários, da esquerda à direita democrática, para derrotar concludentemente a candidata da Frente Nacional, M. Le Pen (que devia ser o objetivo de toda a esquerda francesa). Nem o candidato da direita, Fillon, seria capaz de atrair muitos votos da esquerda, nem o candidato da esquerda do PS, Hamon, seria capaz de atrair muitos votos da direita.
Ora, dados os fortes poderes políticos do Presidente em França e o assustador projeto da candidata da extrema-direita, não se podem correr riscos. Por isso, é essencial que seja Macron a passar à segunda volta.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Um perigo


1. Tornam-se cada vez mais inquietantes as notícias sobre os próximos passos de Trump na sua deriva nacionalista contra as instituições internacionais, nomeadamente a ameaça de saída do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e de abandono do sistema de solução de litígios da Organização Mundial de Comércio.
Ora o CDH é o organismo de supervisão do Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, de 1966, um dos pilares do código internacional de direitos humanos; e o "tribunal" da OMC é o mecanismo de solução vinculativa dos litígios de comércio internacional, substituindo as guerras comerciais do passado. São instituições que fazem prevalecer os direitos humanos e o rule of law nas relações internacionais, criando obrigações para os Estados na cena internacional e limitando a sua capacidade de agir unilateralmente à margem das regras internacionais.

2. A eventual saída dos Estados Unidos das duas instituições internacionais de Genebra será um rude golpe em ambos os organismos e constituirá uma fuga às suas obrigações internacionais na regulação transnacional da globalização, em que Washington tem tido um papel fulcral desde a sua fundação.
Decididamente, ao adotar um nacionalismo militante ("America First!") e ao descartar o compromisso dos Estados Unidos com a ordem global regulada pelo direito internacional criada desde a II Guerra Mundial (em grande parte graças aos próprios Estados Unidos!), Trump está a enjeitar uma virtuosa herança americana e tornar-se um perigo grave para estabilidade política internacional.

À conquista do Estado

(Assalto ao Palácio de Inverno, 1917, numa representação soviética posterior)

1. Mesmo se surpreendente, a nomeação de Francisco Louçã para o conselho consultivo do Banco de Portugal mostra que a aliança governativa do BE (e do PCP) com o PS não lhes proporcionou somente as medidas de "reversão da austeridade" acolhidas nos acordos entre as partes, e outras ganhas posteriormente (como a subida extra das pensões), bem como o abandono forçado de uma parte do programa eleitoral do PS.
Há a assinalar mais duas vantagens associadas à entrada na esfera do poder:
  - primeiro, uma maior presença nos média (aliás, bem superior à sua representação política) e uma maior capacidade de agitar no debate público a sua agenda política própria, incluindo os temas em que mais divergem do Governo, como a reestruturação da dívida, a saída do euro, a rejeição da política comercial externa da UE, etc.;
  - segundo, a tomada de posições nas instituições do Estado, como o Conselho de Estado, o Tribunal Constitucional, o órgão de gestão do Ministério Público, etc., o que lhes permite potenciar a sua influência política e premiar a sua elite política com cargos oficiais.
Um bom negócio, portanto!

2. Embora proporcionando o necessário apoio parlamentar ao Governo, os dois partidos da extrema-esquerda parlamentar preferiram, porém, ficar fora dele e mantê-lo na situação de virtualmente minoritário, seguramente para não se comprometerem globalmente com a sua ação e para manterem as mão livres para o combater nas áreas contenciosas (e não são poucas). Mas não desdenham entrar dentro do Estado pela mão do Governo.
Transformados de partidos de protesto em partidos de poder (pelo menos a título experimental...), o BE e o PCP trocam também a ideia revolucionária da tomada do Estado do exterior pela ideia de ocupação do Estado pelo interior.
Resta saber se esta entrada dentro do Estado não passa de uma manifestação de "entrismo" oportunista ou se constitui uma genuína conversão da esquerda radical às instituições da "democracia burguesa". Cem anos depois da revolução russa, era conveniente saber se os seus herdeiros ideológicos ainda alimentam o sonho de a replicar à beira Tejo.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Sem oposição


1. Uma das implicações óbvias da presente solução governativa - um Governo do PS apoiado por uma aliança parlamentar com os partidos à sua esquerda - tem a ver com a oposição ao Governo.
Até agora, os governos do PS, além da oposição à sua direita, estavam sempre sob o fogo aguerrido da extrema-esquerda (alavancada pela força sindical da CGTP). Com esta nova configuração governativa o PS transformou os seus irredutíveis adversários de sempre em improváveis aliados.
Pela primeira vez em 40 anos, há um governo sem oposição de princípio da extrema-esquerda. Os partidos antissistema "viraram" parte dele. É obra!

2. Não menos inédito nem menos surpreendente é a ausência de oposição efetiva por parte da direita, que ainda não se recompôs do choque da perda do poder em 2015.
Pela primeira vez, o PSD não procedeu à mudança de liderança e de orientação política ao passar do poder para a oposição, o que o tem acantonado na intratável defesa política do anterior Governo, sob a barragem conjugada do PS e dos seus aliados (como mostrou o recente caso das offshores). Sem linha de orientação nem programa alternativo de governo, a oposição de direita tem-se limitado a ser "do contra". Para mais, a significativa melhoria da situação económica e laboral do País, bem como da situação orçamental (incluindo a próxima saída do Procedimento por Défice Excessivo da UE), colocam a direita em muito má condição.
Se a "Geringonça" não for vitima de nenhum acidente político endógeno ou exógeno, a oposição de direita arrisca-se a continuar desamparadamente perdida à procura de si mesma. A provável derrota do PSD nas eleições locais do próximo outono só pode agravar a situação, tornando problemática a sustentabilidade da atual liderança.

3. Igualmente insólito na nossa história constitucional é o explícito, empenhado e permanente apoio do Presidente da República ao Governo, de tal modo que ele aparece por vezes como se fora uma espécie de arauto, procurador ou coach do executivo.
Enquanto os anteriores inquilinos de Belém, mesmo quando não deixaram entender claramente a sua discordância nem criaram obstáculos aos governos em funções, mantiveram pelo menos um prudente distanciamento em relação a S. Bento, inclusive no caso de afinidades políticas, o atual titular mudou deliberadamente o registo da relação presidencial com o Governo.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Este país não tem conserto (2)


(Créditos da imagem: Diário de Coimbra)

Segundo esta notícia, a Universidade de Coimbra está a ponderar uma queixa-crime contra os responsáveis pela invasão da Reitoria e pelos estragos causados antes e depois de uma grandiosa-manifestação-de-algumas-dezenas-de-estudantes contra a passagem da UC a "universidade-fundação" (que tem a oposição do BE, do PCP  e da... JS!).
O que surpreende é que, em vez de seguir a via criminal, a Reitoria não promova imediatamente o devido procedimento disciplinar, que é uma competência e uma obrigação sua. Quando as instituições públicas fecham os olhos a violações graves das obrigações disciplinares dos seus utentes, só lhes resta esperar a sua repetição.
Num país civilizado, o défice de responsabilidade cívica dos utentes dos serviços públicos e a depredação do património público (no caso, trata-se de um monumento nacional e de património Unesco) não podem ficar sistematicamente impunes.

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Sigilo da correspondência sobre assuntos públicos?


1. Prescindindo de qualquer (pré)juízo político sobre o assunto, não compartilho da opinião de vários comentadores no sentido de que a troca de mensagens escritas sobre a nomeação do ex-presidente da CGD, António Domingues, entre o Ministério das Finanças e o interessado, está coberta pela proteção constitucional do sigilo de correspondência.
De facto, salvo melhor opinião, o sigilo de correspondência só vale para as comunicações privadas (como refere a Constituição), ou seja, entre particulares, nessa qualidade, o que não abrange as comunicações entre titulares de cargos públicos (ou indigitados para tal) sobre assuntos públicos. A razão de ser dos direitos fundamentais consiste em defender a liberdade dos particulares contra o Estado (ou contra terceiros), não o contrário.
Obviamente, os titulares de cargos públicos também têm comunicações privadas e essas estão igualmente protegidas, mas não quando atuam na sua capacidade pública.

2. Acresce que, numa democracia representativa, os titulares de cargos públicos têm a obrigação de prestar contas públicas da sua atividade e os cidadãos têm um direito à informação sobre a gestão dos assuntos públicos (salvo quando esteja em causa matéria protegida por segredo de Estado, segredo de justiça ou direitos de terceiros).
E numa democracia parlamentar, os governantes são politicamente responsáveis perante o parlamento, o qual pode solicitar do Governo toda a informação relevante sobre a condução dos negócios públicos (que não esteja protegida nos termos acima referidos) para efeitos do seu escrutínio da ação governativa .

Adenda
Contra este entendimento não se pode invocar o alegado precedente de uma anterior comissão de inquérito (à compra da TVI), que recusou a utilização da gravação de escutas telefónicas ao então Primeiro-Ministro. De facto, uma coisa nada tem a ver com a outra: nesse caso, as escutas, feitas em processo penal, eram ilegais, pelo que obviamente não podiam ser conhecidas do público em nenhuma circunstância.

Adenda (2)
Pode suscitar-se o problema de saber se o direito de acesso público à informação oficial também cobre as comunicações veiculadas pelas contas pessoais dos intervenientes (em vez das suas contas oficiais). A meu ver, a resposta não pode deixar de ser positiva e não suscita dúvidas noutros países, como por exemplo, o Reino Unido.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Paraísos fiscais

(Créditos da ilustração aqui)

1. A notícia de que entre 2012 e 2014 a maior parte das transferências para paraísos fiscais devidamente reportadas pelos bancos não foi objeto de divulgação nem de escrutínio fiscal para efeito de eventual tributação é politicamente muito grave. Como se não bastasse a toxicidade política associada aos paraísos fiscais, ainda se junta o desmazelo do Ministério das Finanças no seu tratamento fiscal!
É evidente que o responsável governamental da altura pode invocar desconhecimento da inação dos serviços tributárias competentes. Mas, para além de parecer pouco credível tal desconhecimento durante vários anos, a verdade é que os governantes têm sempre de assumir a responsabilidade política pelas faltas dos serviços sob sua direta orientação. Há sempre uma obrigação de acompanhamento e de vigilância a cumprir.

2. A confirmar-se no parlamento essa responsabilidade política do Governo de Passos Coelho , ela vem somar-se à responsabilidade pela operação de manter debaixo do tapete a má situação da banca (Banif, CGD) até às eleições de 2015, o que tem comprometido visivelmente a capacidade de oposição do PSD e do CDS ao Governo do PS na área ultrassensível das finanças públicas.
Quando a oposição, cujo papel consiste em colocar o Governo à defesa, "vira" alvo de ataques fundados do Governo e se vê ela mesma acantonada na defensiva, algo lhe está a correr manifestamente mal.

3. A verdade é que, depois de ter neutralizado à partida a oposição à sua esquerda, tornando o BE e o PCP parceiros na solução governativa, o Governo de António Costa tem conseguido muitas vezes contrariar os ataques da oposição de direita com contra-ataques bem sucedidos. Esta operação é tanto mais certeira quanto é certo que o PSD manteve a liderança de Passos Coelho e a anterior ministra das Finanças como porta-voz nessa área, o que os torna alvos mais visíveis.
A direita tem sido obrigada a passar mais tempo a defender o seu anterior Governo das acusações da atual maioria do que o contrário. Mas nestas cenas de papéis trocados, a oposição só pode queixar-se de si mesma e dos esqueletos que deixou no armário!
[título modificado]

Adenda (25/2)
A assunção de responsabilidide política por parte do secretário de Estado envolvido no caso era devida mas fica impune, por não haver demissões retroativas. E a mancha sobre o Governo a que pertenceu e sobre a atual oposição de direita não vai desaparecer facilmente.

Cartão amarelo para o Labour

A vitória dos Conservadores britânicos (que estão no poder) na eleição intercalar num círculo eleitoral tradicionalmente trabalhista reforça a ideia de declínio eleitoral do Labour desde a derrota eleitoral em 2015 e a subida de Corbyn à liderança, agravada pela falta de definição e divisão do Partido no referendo do Brexit.
Na cena política britânica, a derrota em eleições intercalares - normalmente aproveitadas para sinalizar descontentamento com o Governo no poder - costuma ser mau sinal para a oposição. Pelos vistos, no Reino Unido, a viragem à esquerda e a indefinição quanto à União Europeia não se revelam apostas ganhadoras, como aqui se previu, aliás.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Direitos da oposição


1. Entre as funções constitucionais do Presidente da República conta-se explicitamente a de velar pelo "regular funcionamento das instituições", noção que, na sua relativa indeterminação, justifica quase todos os seus poderes formais e informais de supervisão e arbitragem quanto ao funcionamento do sistema político, tanto nível do Estado como das regiões autónomas, incluindo, em última instância, os poderes excecionais de demissão dos governos e de dissolução dos parlamentos.
Sempre entendi que dentro dessa função presidencial cabe especificamente a tarefa de velar pelo respeito dos direitos de oposição (constitucionais, legais e regimentais), tanto face aos governos como face às maiorias parlamentares. Não pertencendo ao Governo nem à oposição, nem devendo tomar partido na dialética do combate político entre um e outra, cabe porém ao Presidente verificar imparcialmente o cumprimento das regras do jogo político entre ambos, como é próprio uma democracia constitucional.

2. Assim, em abstrato, se tomar conhecimento fundado acerca de eventuais violações relevantes dos direitos das oposições, o Presidente da República pode decidir tomar posição - preferivelmente por via informal e discreta -, quando, no seu prudente e isento juízo, a gravidade do caso tal justificar. Por isso, uma eventual intervenção presidencial nessas circunstâncias não incorre em violação do princípio da separação de poderes, o qual só pode ser lido nos termos da própria Constituição.
Esse poder do Presidente a respeito dos direitos de oposição política é tanto mais importante, quanto é certo que os eventuais abusos de poder das maiorias não são suscetíveis de ser impugnados junto do Tribunal Constitucional, salvo quando revistam forma normativa. De facto, mesmo se desconformes com a Constituição, as decisões políticas dos órgãos do poder político (conhecidos como "atos políticos" ou "atos de governo") estão fora do âmbito da justiça constitucional.
Restam, portanto, os meios formais e informais de natureza política, incluindo os decorrentes da função de supervisão institucional do Presidente da República.
[Título do post modificado]

Adenda
Foi propositadamente que incluí as regiões autónomas ao mencionar a garantia dos direitos da oposição, visto que na Madeira tais direitos foram gravemente limitados pelos governos do PSD. Ora, pelo menos desde 2004 não restam dúvidas de que o Representante da República nas ilhas é um delegado do Presidente da República, tomando o seu lugar na tarefa de supervisão do sistema de governo regional. Por isso, não pode deixar de ser denunciada a passividade de Belém perante os atropelos dos direitos de oposição no Funchal, que de resto ainda não se equiparam aos da oposição em Lisboa.

Adenda (2) (25/2)
É de crer que no menu da conversa deste almoço entre o PR e o Presidente da AR tenham estado as queixas do PSD e do CDS sobre o alegado desrespeito dos seus direitos de oposição parlamentar na AR. A verdade é que a situação desanuviou manifestamente...

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Défice zero, pois então!


1. Alcançado um défice orçamental em 2016 bem abaixo dos 3% (pela primeira vez desde a entrada no euro), o que permitirá a saída de Portugal do "Procedimento por Défice Excessivo" da UE, logo veio quem defendesse que não deve haver mais consolidação orçamental e que se deve aproveitar a folga para aumentar a despesa pública (ou baixar impostos, dirão outros).
Mas, como já referi anteriormente, o bom senso e as normas da disciplina orçamental da UE exigem a prossecução determinada da consolidação orçamental iniciada em 2011, para continuar a reduzir o défice das contas públicas (défice nominal e défice estrutural) e diminuir o peso da dívida pública.
Reversões aqui, não, obrigado!

2. Antes de mais, como o rácio do défice depende do ciclo económico, importa baixar bem o défice quando a economia cresce, de modo a ter margem de manobra para o elevar quando a economia estagna ou deprime, sem voltar a furar o teto dos 3%. A receita mais direta para voltar a entrar em défice excessivo é manter um défice demasiado próximo desse limite na fase ascendente do ciclo económico, como é o caso agora.
É por isso que o Tratado Orçamental veio acrescentar ao limite nominal geral de 3% um limite de 0,5% de défice estrutural, ou seja, descontado dos efeitos do ciclo económico (e deduzido de medidas excecionais), que Portugal ainda está longe de alcançar. Este novo requisito da disciplina orçamental requer uma política orçamental contracíclica, obrigando a reduzir muito o défice orçamental nominal (ou mesmo a alcançar saldo positivo!) em períodos de expansão económica e permitindo a elevação do défice nominal até 3%, em situações de refluxo económico.

3. As regras de disciplina orçamental da UE não se reduzem aos limites do défice das contas públicas, estabelecendo também um teto para o endividamento público (60% do PIB), bem como regras para a sua redução em caso de dívida excessiva.
Ora, com uma elevadíssima dívida pública (perto dos 130%!) - que aumentou exponencialmente entre 2009 e 2012 no auge da crise, por causa dos elevados défices orçamentais, dos juros altos e e da contração do PIB -, Portugal não pode ficar à espera que um incerto crescimento do PIB no futuro dilua a dívida, tanto mais que esta tem custos orçamentais enormes (os maiores na Europa!). Impõe-se por isso reduzir significativamente o ritmo anual de endividamento, a fim de baixar o rácio da dívida e os seus custos (tal como previsto, aliás).
Ora, para isso torna-se necessário aprofundar a consolidação orçamental. Mantendo-se a expansão do PIB, a ambição deveria ser mesmo alcançar em curto prazo um défice zero ou, até, um superávite orçamental, tal como aliás estabelece o Tratado Orçamental.

Coimbra Business and Human Rights Centre


Lançamento desta nova iniciativa no próximo dia 3 de março.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Sem glória nem proveito


1. Ao permitir-se não somente revelar as conversas dos seus encontros com um primeiro-ministro mas também desqualificar pessoal e politicamente o mesmo chefe do Governo, o ex-Presidente da Republica, Cavaco Silva, revela nas suas memórias que o tempo não moderou a sua aversão pessoal e política a José Sócrates, que há seis anos deixou destilar publicamente nos rancorosos discursos da sua vitória eleitoral de 2011 e de tomada de posse na AR, sem paralelo em nenhum discurso presidencial antecedente.
Decididamente a malquerença pessoal e o ressentimento político não são bons conselheiros de memórias políticas. E golpear um inimigo quando ele está politicamente na mó de baixo, como é o caso de Sócrates, é feio. Como era de esperar, e no exercício de um legítimo direito de resposta, o visado respondeu vigorosamente, como é seu timbre. Os testemunhos sectários não podem ficar para a posteridades sem a devida contradita.

2. Cavaco Silva já havia terminado sem glória o seu segundo mandato presidencial, depois de obrigado a "engolir" um governo cuja nomeação tentou evitar até à última, apesar de constitucionalmente legítimo. Agora, com este testemunho incontinente, suscita a primeira polémica de baixo nível e alta tensão entre um ex-presidente da República e um ex-primeiro-ministro na nossa história constitucional democrática. Nem Eanes em relação a Soares, nem Soares em relação ao próprio Cavaco Silva, nem Sampaio em relação a Santana Lopes entraram por aí. Não é precedente de que se deva orgulhar.
E no entanto, não fora o seu desastrado segundo mandato presidencial, a herança política de Cavaco Silva seria lembrada globalmente pelos prolongados e relevantes serviços anteriormente prestados ao País (por mais controvertidos que tenham sido). Não havia necessidade de arruinar ingloriamente e sem proveito essa herança meritória no final da sua carreira, em aras ao ressentimento pessoal e político!

Uma no cravo...


1. A ter fundamento esta manchete do Expresso sobre a revisão do currículo letivo do ensino básico/secundário, há uma mudança que merece todo o apoio e outra, não.
A primeira é a reintrodução da disciplina de Educação Cívica, por que me tenho batido desde sempre (por exemplo, aqui e aqui). Considero imprescindível a educação para a cidadania, os direitos humanos, o civismo e a responsabilidade cívica, a educação financeira básica, educação ambiental, os riscos dos comportamento adictivos, o bullying e o assédio, etc.
O republicanismo cívico começa na escola.

2. Já não concordo nada com uma eventual redução da carga letiva do Português e da Matemática, quer por serem o fundamento de todo o conhecimento, quer pelo evidente défice de saber nessas duas áreas de que padece grande parte dos alunos que completam o ensino obrigatório (para não falar dos que ainda ficam pelo caminho...).
É inaceitável que haja jovens portugueses que chegam à Universidade após 12 anos de escolaridade com enormes deficiências na língua materna e sem serem capazes de calcular uma percentagem (como constato anualmente no meu ensino), o que há algumas décadas não seria admitido no final do ensino básico de quatro anos....

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Diferenças


1. Em relação ao post anterior, sobre a oposição do BE e do PCP à proposta governamental de municipalização de mais algumas tarefas do Estado, um leitor observa que não se trata de nenhuma surpresa nem de nenhuma mudança estratégica, pois os partidos comunistas e neocomunistas nunca podem ser genuinamente descentralistas, sendo como são ideologicamente partidários da "unidade do poder" e da tendencial omnipotência estatal.
Por isso, não podem aceitar que a repartição de competências entre Estado central e as coletividades territoriais infraestatais seja regulada pelo princípio da subsidiaridade (como estabelece a Constituição).

2. Nessa ordem de ideias, as posições de ambos os partidos até agora em favor de descentralização seriam puramente oportunistas, próprias de partidos excluídos do poder no plano nacional e que, portanto, viam na descentralização um meio de enfraquecer o poder central. Por conseguinte, agora que fazem parte da solução governamental ao nivel nacional, esses partidos podem assumir as suas posições intrinsecamente centralistas que por conveniência esconderam até agora.
A ser assim, então temos de somar a descentralização territorial às demais diferenças político-ideológicas mais importantes que separam o PS dos dois partidos à sua esquerda, a juntar à lista onde se encontram a democracia liberal, a economia de mercado, o papel do Estado na economia, a disciplina orçamental e a redução da dívida pública, a União Europeia e o euro, as alianças internacionais, a globalização regulada.
Apesar da coabitação política trazida pela atual parceria governamental, a linha divisória entre as "duas esquerdas" (como mostrei aqui e aqui, por exemplo) não deixou de existir nem perdeu relevância.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Quem diria?


É oficial: depois do PCP, também o BE se manifesta contra uma maior descentralização territorial mediante a municipalização de novas tarefas atualmente nas mãos do Estado.
O argumento de que os municípios não têm "escala" para assumir novas competências é obviamente falso: primeiro, porque eles mesmos apoiam a descentralização (desde que, naturalmente, sejam munidos dos necessários meios financeiros adicionais); segundo, porque os municípios podem sempre adotar soluções intermunicipais, para exercer as tarefas que exijam maior escala, como já hoje sucede.
O argumento é um simples pretexto para justificar a estranha metamorfose centralista da extrema-esquerda. Mas a verdadeira justificação é outra: fazendo agora parte da solução de Governo ao nível nacional e tendo portanto meios de influenciar o poder central, tanto ao PCP como o BE preferem exercer esse inesperado poder do que transferir competências para o poder local, onde têm uma influência limitada e localizada (no caso do BE nem isso). Tudo somado, ambos preferem influenciar o poder ao nível nacional. Afinal, sempre é uma questão de "escala"...
O surpreendente neocentralismo da extrema-esquerda é, portanto, um "efeito colateral" da "geringonça". Quem diria?

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Um pouco mais de jornalismo, sff



Esta peça pseudojornalística sobre o acordo de comércio e investimento entre a UE e o Canadá (conhecido pela sigla CETA), publicada no site da RTP, viola os mais elementares deveres deontológicos do jornalismo decente: informação falseada, mistura de informação com opinião do autor, sectarismo ideológico lesivo de qualquer objetividade.
Assim, entre outras coisas:
   - o título da peça, sem aspas nem ponto de interrogação, é uma pura opinião política do autor, sublinhada pela ilustração escolhida (na imagem);
   - a alegada filiação do CETA no TTIP (acordo UE-Estados-Unidos) é um disparate grosseiro, quer quanto ao calendário da negociação (pois o primeiro precedeu o segundo em quatro aos), quer quanto ao conteúdo (pois as negociações do TTIP ficaram a meio, pelo que nunca poderiam ter influenciado o CETA);
   - a acusação relativa à resolução dos litígios de investimento repete pela milionésima vez a falsíssima pseudoinformação sobre os alegados "tribunais arbitrais dominados pelas multinacionais", como já mostrei aqui;
  - o militante juízo condenatório global sobre o CETA limita-ser a reproduzir as acusações e o ponto de vista dos opositores do acordo no campo das esquerdas "antiglobalização" e "altermundistas", que é sem dúvida legítimo mas não deixa de ser politicamente assaz minoritário, como a votação no Parlamento Europeu mostrou mais uma vez.
Como é que um texto destes pôde ser publicado como peça jornalística no site da RTP, eis um mistéio digno de especulação.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

O que o Presidente não deve fazer (5)


1. A propósito do já famoso encontro entre o Presidente da República e o Ministro das Finanças sobre o caso da anterior administração da CGD, um leitor pergunta se o Presidente tem o poder de interpelar diretamente os ministros sobre questões da competência governamental.
Constitucionalmente, a reposta é simples. Não pode haver nenhuma "interlocução" política substantiva entre o PR e os ministros, à margem do Primeiro-Ministro. Só este responde pelo Governo perante Belém e só ele tem a obrigação de informar o Presidente sobre os assuntos governativos e dar-lhe as devidas explicações políticas.
Por isso, o Presidente não pode exigir explicações diretamente aos ministros nem dirigir-lhes nenhuma orientação ou admoestação política.

2. No entanto, nada impede que, no cumprimento dessas obrigações, o Primeiro-Ministro, mediante acordo com Belém, se faça substituir ou acompanhar pelo ministro competente de cada departamento, o que poderá ser especialmente o caso dos ministros dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, dada a necessidade de informação qualificada e de acompanhamento contínuo a que o PR tem direito nessas duas áreas, na sua qualidade de Chefe do Estado e de Comandante Supremo das Forças Armadas.
Por conseguinte, no caso concreto da conferência entre o PR e o Ministro das Finanças, ela não poderia ter ocorrido por iniciativa direta de nenhuma das partes. Todavia, a informação oficial é a de que o Ministro Centeno foi a Belém a pedido do Primeiro-Ministro. Sendo assim, o referido encontro não suscita, em si mesmo, objeções constitucionais (sem prejuízo do que escrevi na adenda (3) deste meu post anterior sobre o mesmo assunto).

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Acordo de Comércio Livre UE-Canadá (CETA) - declaração de voto

 Votei contra o CETA porque, primeiro, o Sistema de Tribunais de Investimento previsto contorna os sistemas judiciais estaduais através de tribunais privados de arbitragem que favorecem o setor privado contra o interesse público.
Segundo, porque o CETA não inclui um capítulo sobre regulação financeira e fiscalidade para as empresas que dele beneficiam. É inadmissível manter o status quo, em que as grandes multinacionais e a criminalidade organizada se aproveitam da mobilidade internacional do capital para artificialmente transferir lucros para jurisdições onde a fatura fiscal é diminuta ou para “lavar” os proveitos do crime, fiscal e outro. Esta desregulação cria desigualdades e distorções na concorrência em mercado, favorecendo as multinacionais, incluindo as do crime. Um acordo de comércio UE-Canadá teria, no mínimo, de tornar vinculativo o que já foi acordado no quadro da OCDE - projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting). Essa seria forma de começar a impedir que várias jurisdições na UE funcionem como “tax swamps” e centros de branqueamento de capitais, tal como o Canadá, que é hoje conhecido por paraíso do branqueamento (snow washing).
Acordos como o CETA fazem o jogo das forças populistas e nacionalistas que cavalgam o ressentimento dos povos contra o neoliberalismo desregulatório.

Madeira - uma jurisdisção fiscal preferencial

Ontem uma cadeia de televisão pública alemã e o jornal catalão "La Vanguardia" publicaram reportagens sobre a Zona Franca da Madeira, descrita como "paraíso fiscal": http://www.lavanguardia.com/temas/madeira e http://www.br.de/nachrichten/madeira-steuerparadies-steueroase-eu-kommission-100.html
De há meses para cá, como Vice-Presidente do Comité PANA do PE (Comissão de Inquérito sobre os #PanamaPapers, tenho vindo a fazer a minha própria pesquisa sobre o duvidoso e perigoso esquema que temos ali montado na Madeira. Por isso no início do ano me desloquei à Madeira, tendo tido oportunidade de falar com  representantes do Governo Regional, da Autoridade Tributária da Madeira, do CNIM /ZFM, da Universidade da Madeira e do PS-Madeira. Em Lisboa, tive também conversas sobre a ZFM com alguns especialistas fiscais, com a direção da Autoridade Tributária, com o Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, e com o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.
Com base no que recolhi de todas as conversas, elaborei uma Nota que ontem mesmo circulei pelos membros do Comité PANA. Pode ser lida aqui: 
http://anagomes.eu/PublicDocs/c1e467c9-239e-4857-a148-95d77039fe0d.pdf

Nova Directiva: combate mesmo o terrorismo?

"Esta Diretiva, suscitada pelos ataques terroristas de Novembro de 2015 em Paris, visa harmonizar legislação penal dos Estados-Membros, melhorar a troca de informações e impedir mais ataques. (Criminaliza atos preparatórios, como treino e deslocações ao exterior e fornecimento ou recolha de fundos para fins terroristas.)
 O Parlamento conseguiu melhorar várias disposições, alertando para o perigo de respostas a quente, desenquadradas de uma estratégia global de combate à radicalização.
A Diretiva tem três principais problemas:
Primeiro, ofensas criminais não adequadamente definidas deixam porta aberta a interpretações que podem restringir desproporcionadamente  Direitos Fundamentais, (incluindo liberdades de expressão, associação e movimento). O combate ao terrorismo em plataformas como a Internet tem que se fazer de forma inteligente e tecnicamente eficaz, o que é muito diferente de criminalizar o seu próprio uso.
Grave é também que a Comissão, que sempre promete melhor legislação, tenha uma vez mais dispensado a avaliação de impacto.
Terceiro, a terminologia “foreign fighter” está errada: a esmagadora maioria dos terroristas que atacaram na Europa são europeus, desintegrados mas aqui nascidos e criados. E não precisaram de viajar para o exterior para ganhar motivação e perpretrar ataques. 
O fundamental para combater o terrorismo não está coberto nesta, nem em nenhuma directiva: exige que os nossos  governos abandonem políticas neo-liberais austeritárias  que sonegam fundos para equipar e treinar polícias e forças da lei, que criam mais guetos e segregação nas nossas cidades, que tornaram prisões em centros de radicalização em vez de reabilitação. E que esses mesmos governos parem a importação para mesquitas europeias de propagandistas do fundamentalismo wahabista."

(Minha intervenção esta tarde, em plenário do PE, sobre uma nova Directiva para combater o terrorismo)

Vacina


1. Embora ficando abaixo da meta inicialmente estabelecida e aquém do desempenho económico de 2015, o crescimento da PIB em 2016 (1,4%) subiu bem acima das projeções de há alguns meses (e, no último trimestre, mesmo acima da média da zona euro, como mostra a figura junta), o que ajuda a comprender também os bons números relativos à melhoria do emprego e das contas públicas (salvo a não redução do défice estrutural e o agravamento da dívida pública).
Havendo agora perspetivas de manutenção desta dinâmica mais positiva do crescimento económico (até porque coincide com a retoma económica europeia) e dos seus efeitos positivos na esfera orçamental, é de esperar que o Governo privilegie a redução do défice e da dívida, de modo a convencer as agências de rating e conseguir uma redução dos juros. No atual quadro político importa afastar decididamente o risco de aproveitar a "folga" orçamental para aumentar de novo a despesa pública a fim de satisfazer constituencies políticas mais influentes, à custa do arrastamento do imprescindível processo de consolidação das contas públicas.

2. Convém assegurar que as provações orçamentais por que o País passou (que provocaram a assistência externa de 2011) tenham servido de vacina contra uma recaída no facilitismo na gestão das finanças públicas.
Depois da saída do programa de assistência financeira e do regresso aos mercados da dívida em 2014, a esperada saída do "procedimento por défices excessivos" da UE testemunha os progressos feitos no saneamento financeiro do país e premeia os esforços feitos desde então.
Mas com um crescimento económico ainda insuficiente, um nível de poupança interna muito baixo, um sistema financeiro ainda fragilizado (pese embora o meritório processo de saneamento bancário em curso) e, last but not the least, uma elevadíssima dívida pública externa (pública e privada), continua a ser longo e não isento de escolhos o caminho que resta percorrer para atingir os objetivos.
Descansar sobre os resultados já alcançados e interromper o caminho encetado não é opção. Voltar à antiga despreocupação financeira seria uma dolosa irresponsabilidade.

Adenda
Não imaginava que este meu alerta pudesse ser tão justificado! Já hoje na AR a extrema-esquerda parlamentar veio criticar o Governo e protestar contra a redução excessiva do défice, defendendo que se devia ter aproveitado para gastar mais! Só faltou invocar a justa luta contra a "austeridade" orçamental. Decididamente, o seu ideal é despesa pública com dinheiro emprestado, à custa do défice e da dívida. Em vez da consolidação estrutural das contas públicas quanto antes melhor, o regresso do facilitismo despesista.

Sequelas


No lamentável imbróglio do falhado processo da anterior (e efémera) gestão da CGD, nenhum dos intervenientes sai muito bem na fotografia, com exceção do próprio António Domingues, que - tendo colocado claramente as suas condições sine qua non para aceitar o cargo e formar a sua equipa (entre elas a dispensa de declaração pública de património e rendimentos exigida aos gestores públicos) e tendo-as visto aceitas expressa ou tacitamente pelo Governo (de outro modo não teria sido nomeado, como é óbvio) - tomou depois a decisão de deixar esse mesmo cargo (apesar de assaz rendoso), em solidariedade com a maior parte da sua equipa, após uma intervenção pública do Presidente da República ter tornado politicamente inviável a satisfação da referida condição e após uma coligação política do PSD e da extrema-esquerda parlamentar a ter tornado legalmente impossível (no que foi a maior vitória política do PSD em mais de um ano de oposição...).
Apesar de esse desfecho negativo ter sido determinado pela intervenção de terceiros (incluindo os aliados parlamentares do Governo...), os diretos responsáveis governamentais não saem politicamente incólumes, tanto mais que as sequelas da sua imprevidente e pouco transparente condução do processo ainda não se esgotaram, como os episódios dos últimos dias penosamente mostram.