quarta-feira, 5 de abril de 2017

Afinal, o euro não mata a economia


1. Segundo os dados agora vindos a público, o desemprego na zona euro desce para o nível mais baixo em oito anos, por efeito da robusta retoma económica em curso. As exceções são a França e a Itália, e não por acaso.
Impulsionada pela política monetária expansionista do BCE e pela melhoria da situação orçamental e financeira, a economia da UE deixa definitivamente para trás os traumas da crise financeira e da crise da dívida pública - em que alguns viram o princípio do fim do euro -, bem como da ameaça deflacionista que se seguiu.
Tendo a sua economia profundamente ligada à zona euro - como mostra o aumento das exportações intra-europeias -, Portugal beneficia obviamente dessa aceleração do crescimento económico nos seus principais parceiros comerciais (por exemplo, a Espanha projeta crescer perto de 3% este ano!), como é notório nos últimos trimestres.

2. Para além de desmentir a suposta maldição dos efeitos nocivos do euro sobre a economia, é de prever que a consistente retoma económica e a consequente diminuição do desemprego e melhoria da situação social retirem alimento à forças anti-europeístas em geral e ao populismo da extrema-direita em especial, o que é francamente positivo na perspetiva da próximas eleições francesas e alemãs.
Apesar do Brexit e da incerteza quanto aos próximos passos na integração europeia, eis boas notícias nos 60 anos do Tratado de Roma.
[Título modificado]

terça-feira, 4 de abril de 2017

Refugiados e migrantes: a acção externa da UE

"Externalizar responsabilidades e fronteiras é receita para o desastre, para o descrédito da União Europeia e para mais insegurança, dentro e fora dela.

Comissão e Conselho invocam a segurança. Mas que seguranca, quando os Estados Membros recusam abrir vias legais e seguras para refugiados e migrantes, através de vistos humanitários ou da reunificação familiar, e assim alimentam o negócio das redes de traficantes, entregando gente desesperada à morte no Mediterrâneo e à criminalidade organizada detrás essas redes, incluindo a terrorista?

Comissão e Conselho invocam "acordos de readmissão" como exemplo de cooperação com parceiros estratégicos: mas qual a estratégia face a uma Líbia que a UE deixou soçobrar na actual incapacidade de governação? Qual a estratégia de nos tornarmos reféns de Erdogan num negócio imoral e ilegal? Ou em financiar governos que fabricam refugiados pela opressão e miséria que impõem ao seus povos, como o governo etíope?

Como apontam os colegas Valenciano e Diaz de Mera, é urgente acção externa com visão estratégica, consequente com os valores e princípios europeus, que lidere pelo exemplo, respeite os direitos humanos e tenha a coragem de dizer aos europeus que migrantes e refugiados ajudam a combater o declínio demográfico nas nossas sociedades. Só assim defenderemos realmente a seguranca dos europeus."


(Minha intervenção em debate plenário no PE, hoje, sobre "Movimentos de refugiados e migrantes: a acção externa da UE")

"Vacas gordas"


1. Este quadro, retirado de um estudo do Forum para Competitividade citado no Expresso, mostra duas coisas indesmentíveis:
  - que o impacto económico da adesão tanto à UE como ao euro - muito positivo nuns países, muito menos noutros - depende essencialmente das políticas nacionais;
  - que o desempenho económico de Portugal foi um desastre, agravado pela recessão de 2011-14, tendo o país sido ultrapassado por vários outros, que partiram muito mais atrasados.
O nosso miserável desempenho económico é o resultado de opções económico-financeiras erradas, baseadas no crescimento da despesa pública e no endividamento, na aposta em investimento nos setores não transacionáveis (nomeadamente a construção civil), no crescimento de salários acima da produtividade, na falta de aposta na produtividade e na competitividade externa, no excessivo endividamento de empresas e famílias, no desequilibrio comercial externo.

2. Quanto o ciclo económico está de novo em alta, como agora - puxado pela robusta retoma europeia - e os juros permanecem baixos - cortesia do BCE -, é mais fácil alimentar a despesa pública, aumentar rendimentos, descer o défice nominal (que não o estrutural) e o rácio da dívida e até conseguir uma melhoria de notação das agências de rating.
O problema é o de saber se não estamos agora a repetir alguns dos principais erros da década de 90, quando a enorme descida da taxa de juro ligada à perspetiva de entrada no euro foi aproveitada para aumentar imprudentemente a despesa pública e privada, para investir no imobiliário, para subir os salários acima da produtividade, para aumentar exponencialmente o consumo a crédito e reduzir a poupança interna, ou seja, para viver outra vez "acima das possibilidades".
O pior vem depois, quando aquela virtuosa e pouco comum combinação de crescimento económico e juros baixos se desfizer, ou seja, quando vier a inevitável subida da taxa de juro e, mais tarde,  o arrefecimento ou a inversão do ciclo económico.

3. Quem se refastela imprudentemente em período de "vacas gordas", como sucedeu há vinte anos, corre o riso de amargar a vida quando os tempos fastos virarem.
Se a situação se repetir, não nos queixemos outra vez ingratamente da Europa, para esconder a nossa recidiva nos mesmos erros.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

A minha "última aula"


De facto, na FDUC a "última aula" só é o fim de tarefas letivas nos cursos regulares de licenciatura e mestrado. Ficam os cursos de pós-graduação e de pós-douramento, mais os seminários e conferências, que vou continuar a dar. Felizmente, pouco muda. E há também, agora, as aulas na Universidade de Lusíada do Porto, onde não há limite de idade.

Falta de cidadania laboral nas empresas


1. Este quadro, tirado do suplemento do Expresso de sábado passado, constitui uma tremenda acusação contra a passividade organizativa dos trabalhadores portugueses nas suas empresas.
Num estudo aí citado, da autoria de dois professores, sobre "Greves, representação dos trabalhadores nas empresa e sindicalização", Portugal surge num vergonhoso último lugar, bem destacado, quanto à percentagem de empresas onde existem comissões de trabalhadores, delegados sindicais ou ambos.
Portugal deve ter a Constituição e o código de trabalho mais avançados em matéria de reconhecimento de comissões de trabalhadores e dos seus direitos (incluindo direito a instalações e crédito de horas); verifica-se que, de facto, é o mais recuado na Europa.
Esta falta de "cidadania laboral" na empresa constitui uma enorme debilidade. Organização é poder; falta de organização significa ausência de capacidade de intervenção.

3. Esta dramática falta de representação dos trabalhadores nas empresas justifica também a total ausência de participação dos trabalhadores na gestão empresarial (cogestão), apesar de ela ser constitucionalmente obrigatória nas empresas públicas. Também aqui Portugal deve estar em último lugar.
Na Assembleia Constituinte travou-se uma batalha muito ideológica entre os partidários da cogestão (PPD) e os partidários do "controlo de gestão" (PCP e PS), tendo vencido esta última, salvo no caso das empresas públicas. O resultado está à vista: nem cogestão nem controlo de gestão!
Tudo somado, o que existe é uma absoluta autocracia patronal nas empresas, sem nenhum contrapoder dos trabalhadores, que tem como contrapartida, fora das empresas, um sindicalismo confrontacional dominado pela CGTP, de inspiração leninista, que se reproduz a si mesmo, baseado no princípio do "centralismo democrático".
[revisto]


domingo, 2 de abril de 2017

30 anos


Foi há trinta anos, por esta altura, que o grupo de membros do PCP que depois ficou conhecido pelo "Grupo dos Seis" - que há anos se reunia numa tertúlia de reflexão política - decidiu elaborar um documento para a reforma do PCP, que foi entregue antes do verão ao então Secretário-Geral, Álvaro Cunhal.
Tendo sido um dos membros desse grupo, recordo aqui essa primeira iniciativa organizada e pública de contestação da linha leninista do PCP (dois anos antes da queda do muro de Berlim), cujo (esperado) insucesso acabou por levar à nossa saída.
Perdi o texto desse primeiro documento, que nunca foi publicado. Mas ele foi continuado por mais quatro documentos nesse ano e no ano seguinte, que foram publicados total ou parcialmente na imprensa, e que no ano seguinte foram reunidos por alguém em publicação autónoma (na imagem), a qual, embora sem ter sido colocada no circuito livreiro, teve uma ampla difusão interna.

sábado, 1 de abril de 2017

Obrigado, Presidente!


Não é todos os dias que se recebe uma saudação pessoal pública do Presidente da República.
Bem haja, Presidente!

Adenda
Também recordo, não sem emoção, a nosso trabalho conjunto na Assembleia Constituinte (1975-76), especialmente na 5ª Comissão, onde, durante meses seguidos, junto com outros deputados (como Jorge Miranda, Carlos Candal e outros que a história justamente regista), elaborámos o projeto de quase metade da Constituição (organização política do Estado), num clima tranquilo e amistoso, para não dizer cordial (almoçávamos muitas vezes juntos depois das reuniões nas proximidades da Assembleia) e que gerou relações de amizade que perduram até hoje. Tenho para mim que esse excelente clima de relações pessoais na Constituinte ajudou a encontrar os necessários compromissos constitucionais, que o ambiente político externo fraturado e conflituoso não favorecia.

quarta-feira, 29 de março de 2017

Este país não tem emenda (5)


Segundo uma auditoria oficial, os trabalhadores da Segurança Social têm 12 folgas a mais por ano e há duas coordenadoras técnicas a chefiarem um e três trabalhadores, respetivamente!
Trata-se de uma situação escandalosa de ilegalidade e de privilégio, que devia dar lugar imediatamente ao apuramento de responsabilidade disciplinar e financeira das chefias dos serviços.
Como diz um leitor do Causa Nossa, então foi tudo decidido por um mero diretor-geral, sem conhecimento de qualquer Secretário de Estado ou Ministro? E as inspeções, o que andaram a fazer? Ou será que já se tornou "direito adquirido", merecedor de proteção do Tribunal Constitucional?
Os funcionários públicos ja gozam de importantes regalias em relação aos do setor privado (horário de trabalho, não despedimento, etc.). Se a isto somarmos outras regalias ilegais, temos privilégios a dobrar.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Antologia da ficção política


Em política toda a ambição é legítima. Mas o irrealismo eleitoral, quando óbvio, pode ser anedótico.

O que o Presidente não deve fazer (8)


1. Em relação aos comentários divergentes referidos nesta noticia relativos a este meu post, importa observar que:
  - não conheço nenhum precedente de um PR manter um encontro com a Comissão Europeia, que é o "poder executivo" da União, para tratar das relações entre Portugal e a União;
  - a função de representação externa do Presidente, normalmente estabelecida entre chefes de Estado, limita-se a isso mesmo e não pode sobrepor-se à competência constitucional do Governo para definir e executar a política externa;
  - o exemplo da "diplomacia paralela" de Eanes não é pertinente, visto que era praticada de modo informal, ele era presidente do Conselho da Revolução (e por isso era responsável pelas relações externas em matéria de defesa) e havia então um verdadeiro regime semipresidencialista, com responsabilidade política do Governo perante o PR e poder discricionário deste para demitir aquele, o que não é o caso desde 1982.
Considero, por isso, improcedentes os argumentos contrários.

2. Por mais latitudinária que possa ser a interpretação sobre os poderes do PR, estes acabam lá onde começam os poderes constitucionais exclusivos do Governo para definir e executar as políticas públicas - e esses são claros na Constituição. Separação de poderes oblige!
Mesmo que não haja divergência, ver o Presidente a "fazer de Governo" só pode gerar confusão de papeis, que não ajuda ao "regular funcionamento das instituições" (que incumbe ao próprio PR salvaguardar...). O árbitro não pode fazer de jogador.
De resto, só o Governo, e não o Presidente, responde politicamente pelo exercício desses poderes perante a AR (na imagem, propositadamente). O PR não pode ser chamado à AR nem as suas acções podem ser objeto de censura parlamentar. Ora, numa democracia constitucional não pode haver poder político sem responsabilidade política.

Este País não tem emenda (4)


Segundo um estudo da DECO, quase um em cada dez médicos passa atestados de doença a pedido, sem fundamento clínico.
Os números não surpreendem e só pecam por defeito, tendo em conta o que observamos nas empresas e instituições e os casos escandalosos que, volta meia volta, surgem a público (como o que está ilustrado na imagem). O que surpreende é irresponsabilidade cívica que o recuro ao atestado médico fraudulento revela, a atávica impunidade com que a Ordem do Médicos "premeia" essa grave infração deontológica (e criminal!) e a complacência social geral perante situações que privam as empresas e os serviços públicos de milhões de horas de trabalho por ano, ou obrigam a repetir diligências e atrasam processos, e que custam à segurança social muito dinheiro, retirado a outras prestações sociais.
Para sermos um país civilizado não basta bem-estar económico e direitos sociais. Enquanto persistirem esta situações generalizadas de parasitismo individual à custa da coletividade, mercê da irresponsabilidade profissional de uns e da benevolência cúmplice de todos, não vamos lá!

quinta-feira, 23 de março de 2017

Metáforas



Quanto ao seu conteúdo, a polémica mensagem de Dijsselbloem, na sua qualidade de presidente do Eurogrupo (cargo que competentemente tem desempenhado), não traz nada de novo e é incontroversa: a devida solidariedade financeira da UE em relação aos Estados-membros em dificuldades orçamentais implica responsabilidade financeira dos beneficiários e não se pode gastar irresponsavelmente à conta do endividamento público e depois ir pedir solidariedade aos contribuintes dos outros países.
Mas, mesmo quando citada no seu contexto (o que não tem sido o caso), a metáfora por ele utilizada não podia ser mais despropositada, para além do mau gosto. Estúpida, por isso. Não menos despropositados, porém, são os protestos de vestal ofendida de alguns responsáveis políticos, especialmente num país que beneficiou e ainda beneficia da referida solidariedade europeia. Eles perceberam a mensagem!

"Europa Global"


Amanhã vou estar neste debate, tendo a meu cargo a política económica externa da União.
Vou tentar responder a esta dúvida: pode haver uma "Europa global" quando a globalização é ameaçada pelo nacionalismo político e pelo protecionismo económico?

quarta-feira, 22 de março de 2017

O que o Presidente não deve fazer (7)


Não sei ao abrigo de que poder constitucional é que o Presidente da República decidiu empreender uma visita às instituições executivas da União Europeia, Comissão e Conselho (que suponho não tem precedente), para tratar das relações entre Portugal e a UE.
Na nossa ordem constitucional, o PR não é titular nem cotitular da política externa nem da política europeia (diferentemente do que ocorre em regimes presidencialistas, como Chipre, ou semipresidencialistas, como a França ou a Lituânia), e por isso nem sequer representa o país no Conselho Europeu. O PR tem todo o direito de acompanhar a política europeia do Pais. que compete exclusivamente ao Governo, através da informação que o Primeiro-Ministro está constitucionalmente obrigado a proporcionar-lhe, podendo obviamente transmitir ao chefe fo Governo as suas opiniões e posições nesse domínio. Mas o interlocutor oficial das instituições europeias em Lisboa e em Bruxelas só pode ser o Governo. O caminho entre Belém e Berlaymont passa por S. Bento.
Também não vejo nenhuma vantagem política nestas iniciativas de "diplomacia paralela" (mesmo se convergente), que só podem causar perplexidade e confusão em Bruxelas sobre quem é responsável por quê na política europeia do País.

terça-feira, 21 de março de 2017

Prodígio

Com a economia a crescer, puxada pela retoma europeia e mundial, e a "bombar" emprego e receita fiscal, com a extrema-esquerda rendida à gratificação do poder e conformada com a UE e a disciplina orçamental, com a oposição de direita em estado catatónico, em risco de um derrota histórica nas eleições locais de setembro e de provável abertura de uma crise de liderança no seu principal partido -, quem poderia prever há um ano que a "Geringonça" viria a usufruir de tal estado de bem-aventurança política, sem paralelo na nossa história política na atual era constitucional?
Não sendo de bom tom falar em "milagres" políticos, fiquemo-nos pela noção de prodígio. Realmente, na vida política há conjunções astrais assaz inusitadas...

Adenda
É claro que há algumas "sombras" neste ambiente irénico, como os problemas do sistema bancário e da dívida pública. Mas, com a economia em alta, até esses riscos parecem menores (prouvera que fossem...).

segunda-feira, 20 de março de 2017

Oportunismo

Que a extrema-esquerda proteste contra a planeada redução de balcões da CGD - peça imprescindível da sua recapitalização e recuperação - compreende-se, visto que, como sempre, se está "marimbando" para a sustentabilidade económica e financeira do banco público, ou de qualquer outra empresa pública. Mas que ela seja acompanhada nesse protesto pela direita - que durante quatro anos deixou arrastar e agravar a situação, tornando mais exigente a sua solução -, só se pode explicar a título de um descabelado oportunismo político, a fim de pôr areia no plano de recuperação da Caixa e de estabilização do sistema bancário nacional, que o País só pode esperar seja bem-sucedido.
Que a direita não goste da existência de um banco público, isso é sabido, e os desastres da gestão da Caixa até lhe podem dar argumentos suplementares (que, porém, só seriam convincentes se os desastres da gestão de vários bancos privados não fossem ainda maiores!...). Mas que desça a níveis de "reserva mental" tão óbvios como este, já é um exagero que retira credibilidade política. Manifestamente, a direita liberal está sem norte na oposição.

Adenda
Constitui obrigação constitucional do Estado «zelar pela eficiência do setor empresarial público». Ora, não consta que isso seja compatível com a manutenção de balcões redundantes da CGD ou com atividade marginal. Sendo uma empresa pública no mercado, a Caixa não é um serviço público, ao contrário do que se tem ouvido por estes dias. E, mesmo que fosse, isso não é equivalente a desperdício público.

Levar a sério a igualdade de género


1. Pode o Estado impor "quotas de género" na composição dos órgãos colegiais das entidades privadas, nomeadamente nas empresas cotadas em bolsa - como agora propõe o Governo -, ou trata-se de uma restrição inconstitucional da liberdade de organização privada em geral e da liberdade de empresa em especial?
Constitucionalmente, a questão não oferece grandes dúvidas. Tais liberdades podem ser restringidas por lei para proteger outros direitos fundamentais ou outros interesses públicos constitucionalmente protegidos. Ora, uma das incumbências constitucionais do Estado é «promover a igualdade entre homens e  mulheres» [CRP, art. 9º, al. h)]. Por isso, desde que sejam necessárias para esse efeito e desde que observado o princípio da proporcionalidade (e o mínimo de 1/3 de representação de cada sexo não é exagerado), nada há a objetar constitucionalmente a tais "quotas de género" em empresas privadas, para mais limitadas às empresas cotadas em bolsa.

2. Politicamente, creio que há sólidos argumentos a favor da "ação afirmativa" do Estado para promover a igualdade efetiva no exercício de cargos diretivos de entidades privadas especialmente relevantes, corrigindo as mais gritantes desigualdades de facto. Claramente, não basta a igualdade jurídica de oportunidades para assegurar a igualdade de acesso "no terreno", quando a seleção é discricionária. Por vezes, é preciso ajudar a história a andar mais depressa na superação de atavismos ancestrais.
Aliás, com o crescente predomínio de mulheres em muitas ocupações (desde as universidades às profissões liberais), virá o tempo em que a situação se inverterá e que tais quotas já não serão precisas para assegurar um mínimo de mulheres mas sim um mínimo de homens em muitas instituições...
[Rubrica originária modificada]

sexta-feira, 17 de março de 2017

Religião fora do trabalho?


1. No recente e já famoso caso Achbita, o Tribunal de Justiça da UE decidiu que «a proibição de usar um lenço islâmico, que decorre de uma regra interna de uma empresa privada que proíbe o uso visível de quaisquer sinais políticos, filosóficos ou religiosos no local de trabalho, não constitui uma discriminação direta em razão da religião ou das convicções, na aceção da diretiva [da UE sobre não discriminação no trabalho]».
Esta decisão levanta dois problemas: (i) saber se a norma da empresa sobre a tal neutralidade religiosa no trabalho não foi feita somente para as muçulmanas, e para aquela trabalhadora em particular, sendo portanto uma falsa regra geral; (ii) saber se a liberdade de empresa prevalece automaticamente sobre a liberdade religiosa dos seus trabalhadores.
O facto de uma restrição da liberdade religiosa ser igual para todos não a torna legítima.

2. Ao pronunciar-se sobre a questão da eventual discriminação, o Tribunal deixa em aberto a possibilidade de haver "discriminação indireta" no caso em análise, mas valoriza o facto de a norma não discriminar efetivamente nenhuma religião e ser de aplicação geral.
Ao considerar a questão da liberdade individual de religião (garantida na CDFUE) - e que vale também nas relações entre particulares -, o Tribunal entendeu igualmente que a empresa pode, por razões de neutralidade religiosa interna e perante os seus clientes, determinar a proibição geral de todos os sinais de pertença religiosa no local de trabalho. Foi pena o Tribunal não elaborar esta segunda tese quanto à restrição da liberdade religiosa nas relações de trabalho e quanto à ponderação entre as duas liberdades em causa, ou seja, a liberdade do empresário quanto à organização do trabalho e a liberdade religiosa dos trabalhadores.
Seria interessante que o caso ainda viesse parar ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos, de Estrasburgo, em recurso da decisão que for tomada sobre o caso na Bélgica, por violação da liberdade religiosa garantida na CEDH.
[revisto]

Ai, a dívida! (9)


1. Há quem continue a reagir "à patada" aos alertas vindos do exterior sobre os riscos que continuam a pesar sobre a nossa dívida pública, por causa do seu nivel muito alto (o gráfico ilustra o aumento desde 2012) e do elevado spread de juros em relação aos das dívidas mais seguras.
Mas os números não enganam. Passada a "crise das dívidas soberanas", Portugal continua com a 3ª maior dívida (depois da Grécia e da Itália) e o 3º spread mais elevado (só superado pela Grécia e por Chipre). É evidente que, depois da crise, os mercados (e as agências de rating) passaram a diferenciar as dívidas soberanas pelo seu grau de risco.

2. Por isso, em vez de puxar da pistola contra quem faz avisos, seria melhor trabalhar consistentemente para prosseguir a consolidação orçamental, baixar significativamente o rácio da dívida pública e melhorar o seu rating, aproveitando tanto a evolução favorável da economia no plano nacional e ao nivel europeu como a preciosa ajuda da política monetária expansionista do BCE e do seu programa de compra de dívida pública (que não dura sempre).
Se, em vez disso, aproveitarmos a "folga" para fazer mais despesa pública à conta de mais dívida - como alguns defendem -, não saímos da zona de risco. Nem nos livramos das advertências externas!

quinta-feira, 16 de março de 2017

Democracia europeia


1. A oposição absoluta da esquerda comunista e neocomunista à União Europeia baseia-se antes de mais no facto de a integração europeia assentar numa economia de mercado (baseada na liberdade de empresa e na concorrência) e num "mercado único" (baseado na liberdade de circulação dos fatores de produção e de produtos e serviços dentro da União), o que contraria frontalmente os seus objetivos "anticapitalistas" de coletivização e de estatização da economia.
Realmente, não se lhes pode pedir que reneguem as suas opções ideológicas...

2. Todavia, os opositores domésticos da UE preferem focar a ideia de que a integração europeia sacrifica não somente a soberania nacional mas também a democracia, que no seu entender só pode funcionar num quadro nacional. Ora, se a primeira afirmação sobre a transferência de poderes soberanos é óbvia, não sendo negada por ninguém, já a segunda é falsa a um triplo título.
Primeiro, a decisão de entrada na União depende sempre de um pedido nacional de acordo com decisões democráticas internas e da aprovação e ratificação interna do tratado de adesão. Do mesmo modo, cada país pode sair quando lhe aprouver, por decisão unilateral.
Em segundo lugar, desde sempre - primeiro, implicitamente e depois, explicitamente ("critérios de Copenhaga") -, uma das condições de acesso à UE é os Estados interessados respeitarem os princípios do Estado de direito democrático. Não se ignora que para Mário Soares, o principal motivo para a adesão à então CEE foi criar um "seguro de vida" da nossa novel democracia constitucional.
Por último, e decisivamente, pelo menos desde o Tratado de Lisboa, a UE respeita no fundamental os princípios e regras de uma democracia representativa, em que as decisões da União observam um processo de codecisão entre o organismo que representa os Estados-membros (o Conselho da União) e o Parlamento Europeu, eleito diretamente pelos cidadãos da UE.
Em conclusão, a União goza de uma dupla legitimidade democrática.

3. As decisões tomadas ao nível da UE obedecem aos mesmos cânones e procedimentos democráticos das que são tomadas ao nível nacional.
De resto, as posições que os governos nacionais tomam no Conselho da União podem ser controladas pelos parlamentos nacionais, que também podem impugnar as decisões da UE contrárias ao princípio da subsidiaridade.
A integração europeia é seguramente incompatível com a preservação de uma soberania nacional plena, mas não é incompatível com a democracia, como mostram todos os processos históricos de federalização por agregação de Estados preexistentes.
Aliás, como mostrou Dan Rodrick na sua célebre tese sobre o trilema nas relações entre integração económica, soberania e democracia, é impossível ter os três ao mesmo tempo, mas é possível ter dois deles. A integração europeia (económica e politica) sacrifica uma parte da soberania, mas não tem de descartar a democracia, desde que aquilo que deixa de ser decidido de acordo com a democracia nacional passe a ser decidido de acordo com a democracia supranacional, que aliás em vários aspetos pede meças às democracias nacionais.
Não é por acaso que, em vários Estados-membros, os cidadãos europeus têm mais confiança nas instituições da União do que nas instituições nacionais...

terça-feira, 14 de março de 2017

Este País não tem emenda (3)


Na PSP há 15-quinze-15 sindicatos, alguns deles constituídos só para permitir que os seus dirigentes e delegados sindicais sejam dispensados do trabalho. Num caso, 93% dos filiados estão "ocupados" em tarefas sindicais. Vale a pena ouvir a Ministra da Administração Interna sobre isto.
Como é que é possível um tal abuso e instrumentalização dos sindicatos ao serviço da ociosidade da quantidade multitudinária dos seus dirigentes?  Como foi possível que sucessivos governos tenham ignorado este despautério, à custa do erário público e dos contribuintes?

segunda-feira, 13 de março de 2017

Debater a Europa

Na próximo dia 15 vou estar aqui, num Colóquio "Debater a Europa», nos 10 anos do Tratado de Lisboa e nos 60 anos do Tratado de Roma.
Cabe-me falar sobre "Democracia e direitos fundamentais na UE depois do Tratado de Lisboa".

Falsa semelhança


1. Num debate televisivo há dias sobre o exercício do atual mandato presidencial, um dos participantes afirmou que o nosso sistema de governo governo é muito diferente da França, apesar de a nossa Constituição ser "igual à francesa" quanto aos poderes presidenciais.
Ora, sendo óbvia a diferença de funcionamento dos dois sistemas de governo, não é verdadeira a premissa de que as duas constituições são idênticas. Muito pelo contrário.
Em França, na interpretação prevalecente da Constituição, o Presidente da República tem, entre outros, quatro poderes decisivos que não tem em Portugal: (i) preside por direito próprio ao Conselho de Ministros e dirige as respetivas reuniões, o que lhe permiti estabelecer a agenda governativa e influenciar decisivamente a política governamental; (ii)  dirige a política de defesa e a politica externa, o que inclui a política europeia, que hoje é decisiva em qualquer Estado-membro da UE, sendo por isso que é o PR, e não o primeiro-ministro, que representa o país no Conselho Europeu e no G20; (iii) nomeia todos os cargos civis e militares, salvo delegação; (iv) tem poderes próprios excecionais, à margem do Governo e do Parlamento, em situação de crise.
Portanto, a referida tese da identidade constitucional entre a França e Portugal não tem fundamento.

2. Em França, o PR é uma espécie de chairman do Governo, sendo o primeiro-ministro o CEO, e mesmo aí com a importante ressalva dos poderes presidenciais na área de defesa e das relações externas.
Não admira, portanto, que o PR seja percecionado como o verdadeiro chefe do Governo e que as eleições presidenciais sejam determinantes quanto às opções políticas do país. Quando excecionalmente a maioria parlamentar não coincide com a "maioria presidencial" (o que gera uma "coabitação" forçada do Eliseu com Matignon), o PR não descansa enquanto não encontra uma oportunidade de convocar eleições legislativas para alinhar a primeira com a segunda.
Se a França é um genuíno sistema semipresidencialista (por vezes, hiperpresidencialista), em que o Presidente é o primeiro titular da função governamental, que compartilha com o primeiro-ministro, tal não se passa em Portugal, por força do diferente enquadramento constitucional, onde o PR não faz parte da função governativa nem o Governo depende politicamente do PR.

domingo, 12 de março de 2017

Um pouco mais de rigor sff

A rubrica desta notícia de ontem diz que «Jorge Miranda defende que deputados podem ver SMS de Domingues». Mas o que a notícia diz é que os deputados (em comissão de inquérito) podem ver não somente os SMS de Domingues mas sim toda a correspondência (SMS e emails) trocada entre ele e o Ministério das Finanças, o que é coisa bem diferente. Portanto, a rubrica não é fiel ao conteúdo da notícia.
Cabe dizer que eu próprio já tinha defendido essa posição, há algum tempo.

sábado, 11 de março de 2017

O que o Presidente não deve fazer (6)

O jornal Público informa que uma nova tendência interna do CDS vai organizar uma conferência de lançamento com a intervenção de três ex-líderes do partido e com «o alto patrocínio do Presidente da República». Esta notícia não foi desautorizada por Belém.
Não me parece, porém, que na função presidencial, por mais ampla que seja entendida, caiba o "alto patrocínio" de organizações ou de eventos partidários, hoje de uma conferência do partido X, amanhã da convenção do partido Y, depois no congresso do partido Z. O "patrocínio" será sempre interpretado como apoio ou "bênção" presidencial. Ora, como "Presidente de todos os portugueses", na feliz fórmula consagrada desde o início da era constitucional de 1976, o PR deve estar cima dos partidos e não privilegiar nem "patrocinar" nenhum deles (muito menos nenhuma tendência dentro deles).
Manifestamente, MRS quer "estar em todas" e dá-se bem assim (do que, aliás, não vem mal ao mundo); mas entrar dentro dos partidos não deveria contar-se entre os seus destinos elegíveis.

Fora da lei (2)

1. Seguindo as pisadas da Ordem dos Médicos (ver post anterior), também a Ordem dos Enfermeiros julga ser um sindicato e assumir a defesa dos direitos laborais dos seus associados que trabalham no SNS.
Penso que o Ministério da Saúde e as instituições do SNS devem pura e simplemente recusar qualquer discussão de matérias dessas com a Ordem. E era mesmo bom que a Ordem concretizasse a ameaça de pôr o Governo em tribunal, porque era uma excelente oportunidade de ver declarada a sua ilegitimidade para se substituir aos sindicatos e pleitear matérias do foro das relações laborais, seja no setor público seja no setor privado.

2. Uma coisa que me intriga é a de saber se, dedicando-se tão zelosamente a tratar de assuntos para que não têm competência, ainda resta algum tempo e energia às ordens profissionais para se ocuparem daquilo que as justifica como organismos públicos, ou seja, as tarefas públicas de supervisão e de disciplina do exercício da respetiva profissão, independentemente do regime laboral em que a exerçam (autónomo ou assalariado, público ou privado).
É tempo de acabar com esta confusão de papeis!

Fora da lei


1. Segundo esta notícia, após uma reunião com os sindicatos médicos, o bastonário da Ordem dos Médicos declarou estar a ser «pondera[da] a possibilidade de vir a ser convocada uma greve».
Ora, a Ordem dos Médicos está manifestamente a mais neste filme, pois não tem nada a ver com as reivindicações laborais dos médicos do SNS (nem de outros) e com a possível declaração de greves, que são matéria da exclusiva competência dos sindicatos.
Depois de se ter apresentado abusivamente no papel de grémio dos médicos-empresários, a Ordem apresenta-se agora despropositadamente como sindicato dos médicos-trabalhadores. Ora, não pode desempenhar nenhum desses papeis.
Sendo organismos públicos, as ordens profissionais estão ao exclusivamente ao serviço do interesse público, não podendo representar nem defender interesses particulares de nenhum grupo ou categoria dos seus membros.

2. A Ordem dos Médicos resolveu colocar-se ostensivamente fora da lei, extravasando das suas funções oficiais e comportando-se como um organismo de defesa de interesses privados.
O Estado não pode aceitar passivamente este desafio de uma entidade pública, e o Governo, além de recusar qualquer discussão dessas matérias com a Ordem, deve adverti-la formalmente para as consequências da sua atuação ilegal. Se a advertência cair em ouvidos moucos, o Ministério Público deve solicitar uma providência judicial-administrativa para intimar a Ordem a cessar a sua atuação ilegal.
Em todo o caso, resta lembrar que as ordens são uma criação discricionária do Estado e que tal como podem ser criadas também podem ser extintas, se não servirem para as funções que as justificam como entidades públicas.

sexta-feira, 10 de março de 2017

Independência regulatória

"A eficácia da regulação deve medir-se ainda pela protecção da sua independência face aos regulados. Este é o verdadeiro e único indicador de independência de que devemos falar. A independência em relação àqueles que são objecto das suas decisões."
1. Nestas palavras do Ministro das Finanças vai todo um programa de reduzir ou eliminar a independência dos supervisores financeiros em relação ao Governo.
Mas a tese de que só importa a independência dos reguladores face aos regulados, e não a daqueles perante o Governo, não é procedente. A independência face aos particulares é uma caraterística óbvia de toda a ação pública. Só faz sentido falar em autoridades públicas independentes para referir a sua independência face à tutela governamental.

2. De resto, no caso das funções de supervisão do Banco de Portugal em particular, não pode deixar de haver independência face ao Governo.
Por duas razões:
  - primeiro, o BdP é necessariamente uma instituição independente do Governo no seu papel de banco central, independência garantida pelo direito da UE; ora, não se vê como é que pode deixar de ser independente também no seu papel de autoridade reguladora;
  - segundo, se o principal banco regulado é a CGD, que é um banco público, sob controlo governamental, não se vê como é que o regulador pode ser independente dos regulados se não for também independente do dono do banco público, ou seja, o Estado.
Por isso, se os reguladores dependessem do Governo não haveria verdadeira regulação independente.

Rousseau em Lisboa


1. A diferença fundamental entre a democracia liberal e a "democracia popular" (inspirada em Rousseau e teorizada por Lenine) está em que naquela o poder político é limitado por vários mecanismos, enquanto na segunda não há limites ao império da "vontade geral" ou da "vontade popular".
Entre os limites ao poder da maioria política numa democracia liberal contam-se desde o início a separação de poderes, a independência dos tribunais, os direitos fundamentais constitucionais, o direito de oposição. Mas esses limites podem incluir outros dispositivos, como a descentralização territorial do poder político e o "governo em vários níveis", a exigência de maiorias qualificadas para aprovar as revisões constitucionais e outras leis importantes, os poderes de veto presidenciais, as obrigações de transparência no exercício do poder e também a existência de entidades públicas independentes, sem tutela governamental, entre os quais se contam hoje os bancos centrais, as entidades de defesa de certos direitos fundamentais mais sensíveis (os média, os dados pessoais, etc.) e as autoridades reguladoras da economia.
Esses vários mecanismos impedem que a maioria política de cada momento se aproprie do Estado e se torne numa "ditadura da maioria".

2. Impera hoje em Portugal uma clara hostilidade política às entidades públicas independentes, traduzida nos episódios recentes sobre o Conselho das Finanças Públicas, o Banco de Portugal e as autoridades reguladoras independentes em geral.
Compreende-se que as forças de esquerda comunista ou neocomunista, que são tributárias da ideia de democracia sem limites, apoiem essa ofensiva contra as entidades públicas independentes, agora que fazem parte do "arco do poder" (mas quando estão na oposição ninguém defende mais a limitação do poder da maioria!). Já se compreende menos que as forças políticas adeptas da democracia liberal, como o Partido Socialista, apoiem essa mesma ofensiva e a correspondente ideia de "todo o poder à maioria".
Há alinhamentos políticos que comprometem, mesmo quando conjunturais.