1. O PSD e o PS acordaram em impor uma "contribuição regulatória" às plataformas digitais, tipo Uber, que procedem à intermediação de serviços de transporte entre os utentes e os operadores de transporte a elas associados. Foi abandonada a designação de "taxa", inicialmente proposta pelo PSD, e foi revisto o seu regime, que aqui critiquei oportunamente, incluindo quanto ao montante de tal contribuição.
A figura da "contribuição regulatória" - que importa distinguir das taxas propriamente ditas -, está expressamente prevista na Lei-quadro das autoridades reguladoras, de 2013, e foi criada em benefício de várias autoridades reguladoras, estando também prevista nos Estatutos da Autoridade para a Mobilidade e os Transportes (AMT), de 2014, que, porém, remetem a sua instituição para legislação própria, até agora não emitida (salvo erro).
A independência das autoridades reguladoras supõe a sua autossuficência financeira, sem dependerem do orçamento do Estado, sendo justo que sejam financiadas pelos agentes regulados (princípio do "regulado-pagador". Tal vale também para a regulação dos transportes.
2. Todavia, tal como vem descrita, a nova contribuição sobre as referidas plataformas digitais na área dos transportes - assumindo que se trata de operadores de transportes, o que é tudo menos incontroverso - coloca três problemas:
- deveria ter como beneficiária apenas a autoridade reguladora dos transportes (a AMT) e não outras entidades públicas que nada têm a ver com tal contribuição, sob pena de esta passar a ser um imposto;
- deveria aplicar-se igualmente às plataformas eletrónicas afins que hoje já existem para outras modalidades de transporte, incluindo os táxis, sob pena de manifesta violação do princípio da igualdade;
- pela mesma razão, deveria aplicar-se a todos os operadores de transporte sujeitos à jurisdição da respetiva autoridade reguladora, no âmbito da legislação sobre a referida "Contribuição da Mobilidade e Transportes", não havendo nenhuma justificação para criar avulsamente uma contribuição específica para uma categoria limitada de empresas, que operam numa submodalidade de transporte em automóveis com condutor, que, aliás, não causam nenhuma sobrecarga regulatória, pelo contrário.
Além de coerência tributária, o "Estado de direito tributário" supõe respeito pela igualdade na repartição dos encargos públicos.
Adenda
Como declaração de interesses, convém informar que prestei serviços de consultoria jurídico-constitucional à Uber, tendo autorizado a empresa a divulgar o meu "parecer" (como, aliás, sempre faço).
Blogue fundado em 22 de Novembro de 2003 por Ana Gomes, Jorge Wemans, Luís Filipe Borges, Luís Nazaré, Luís Osório, Maria Manuel Leitão Marques, Vicente Jorge Silva e Vital Moreira
sábado, 10 de março de 2018
sexta-feira, 9 de março de 2018
Geringonça (7): Geometria variável
Publicado por
Vital Moreira
1. A primeira página da edição de ontem do Jornal de Negócios titulava que "Socialistas entendem-se à direita sobre as regras para a Uber", como se fosse algo incomum.
Ora, a pergunta que tem de ser feita é justamente esta: com quem, senão com a direita, poderia o PS entender-se sobre uma lei que implica mais concorrência no mercado de transporte individual em automóvel com condutor?
É evidente que não poderia ser com o BE nem com o PCP, que no seu anticapitalismo primário vetam tudo o que cheire a liberdade económica e concorrência, tendo eles defendido a aplicação à Uber (e outras empresas concorrentes) das mesmas regras que vigoram para os táxis, incluindo a contingentação da oferta, como se fosse a mesma coisa!
2. Há pouco tempo, perante os indícios da disponibilidade de Rui Rio para negociar com o Governo alguns dossiers políticos mais importantes (plano de investimentos em infraestruturas e descentralização), o líder do PCP, Jerónimo de Sousa, apressou-se a alertar contra uma política de alianças de "geometria variável" por parte do PS.
Ora, a verdade é que, desde o início, a Geringonça pressupõe necessariamente alianças de geometria variável para o Governo minoritário do PS. Para se defender da direita, o Governo conta com o apoio parlamentar das esquerdas, nos termos acordados, a quem compensa prodigamente com medidas favoráveis em especial aos funcionários públicos e aos pensionistas. Mas para poder governar noutras áreas, o Governo só pode esperar o apoio vindo da sua direita, como em tudo o que tem a ver, por exemplo, com política externa, política europeia, política de defesa e de segurança interna, política comercial externa, política económica, etc.
3. A aliança do PS com os parceiros das esquerdas parlamentares é assumidamente de via política reduzida, tendo a sua cobertura focada nas áreas do trabalho, da segurança social e da saúde, mais a função pública. É manifestamente pouco para governar!
É por isso que a Geringonça assenta em acordos separados e fragmentários com os aliados, não podendo consubstanciar um programa comum de governo. Não é por acaso que não temos um governo de coligação, que pressuporia a solidariedade intragovernamental com toda da acção do Governo. Assim, se o Bloco e o PCP ficaram livres de se demarcar do Governo (ou até de se lhe opor) em matérias não contempladas nos seus acordos com o PS, também este ficou livre de buscar outros apoios políticos e parlamentares nas mesmas áreas. O que distingue o atual Governo de um comum governo minoritário é o facto de ter assumido compromissos políticos setoriais com uma parte da oposição, a troco da sustentação parlamentar do Governo (o que não é pouco!), evitando o seu derrube pela outra oposição.
Há, portanto, mais governo para além da Geringonça!
[revisto]
Adenda (11/3)
Concordo com este editorial do diretor do Público, que glosa o mesmo tema, até no título.
quinta-feira, 8 de março de 2018
Discordo(6): Radicalismo de género
Publicado por
Vital Moreira
1. Em declarações colhidas num artigo de hoje no Público sobre o sexo dos nomes de ruas que homenageiam pessoas (não disponível online), um arquiteta defende que doravante deve haver paridade de género na toponímia!
Eis uma ideia tão radical quanto desassisada. A escassez de nomes femininos na toponímia urbana tem a ver essencialmente com a "divisão de trabalho" entre homens e mulheres ao longo da história na guerra, na vida económica, na política, na literatura e nas artes e na própria religião (os protagonistas das religiões monoteístas são quase todos masculinos...). Só a mudança desse paradigma, em curso nas últimas décadas, pode levar a uma progressiva mudança nessa área. Mas vai demorar o seu tempo. Entretanto, o universo dos elegíveis - não devendo incluir pessoas em vida - vai continuar a ser maioritariamente masculino A história não pode ser revista nesse ponto, em busca das mulheres ausentes.
Por isso, não faz sentido nenhum exigir já que daqui em diante haja tantos nomes masculinos como masculinos nos novos nomes de ruas, podendo haver mais ou menos, de acordo com critérios próprios das comissões de toponímia local, quanto à relevância dos que devem aparecer nas placas das ruas e praças. Decididamente, nem tudo nesta vida é elegível para aplicação dogmática dos discurso sobre a paridade de género.
2. Esta sugestão é bem ilustrativa do radicalismo que domina algum discurso feminista quanto à igualdade de género, por exemplo na exigência de "genderização" absoluta da língua, incluindo os discurso jurídico, literário e académico, como se ela fosse matéria plástica, livremente moldável, à revelia da sua formação histórica e cultural.
Já se imaginou, por exemplo, a Constituição ou os Lusíadas reescritos de acordo com esta norma de "paridade de género linguística"?!
Como diziam os antigos (ou deveria dizer "como diziam os/as antigos/as"?), est modus in rebus (haja moderação)!
Eis uma ideia tão radical quanto desassisada. A escassez de nomes femininos na toponímia urbana tem a ver essencialmente com a "divisão de trabalho" entre homens e mulheres ao longo da história na guerra, na vida económica, na política, na literatura e nas artes e na própria religião (os protagonistas das religiões monoteístas são quase todos masculinos...). Só a mudança desse paradigma, em curso nas últimas décadas, pode levar a uma progressiva mudança nessa área. Mas vai demorar o seu tempo. Entretanto, o universo dos elegíveis - não devendo incluir pessoas em vida - vai continuar a ser maioritariamente masculino A história não pode ser revista nesse ponto, em busca das mulheres ausentes.
Por isso, não faz sentido nenhum exigir já que daqui em diante haja tantos nomes masculinos como masculinos nos novos nomes de ruas, podendo haver mais ou menos, de acordo com critérios próprios das comissões de toponímia local, quanto à relevância dos que devem aparecer nas placas das ruas e praças. Decididamente, nem tudo nesta vida é elegível para aplicação dogmática dos discurso sobre a paridade de género.
2. Esta sugestão é bem ilustrativa do radicalismo que domina algum discurso feminista quanto à igualdade de género, por exemplo na exigência de "genderização" absoluta da língua, incluindo os discurso jurídico, literário e académico, como se ela fosse matéria plástica, livremente moldável, à revelia da sua formação histórica e cultural.
Já se imaginou, por exemplo, a Constituição ou os Lusíadas reescritos de acordo com esta norma de "paridade de género linguística"?!
Como diziam os antigos (ou deveria dizer "como diziam os/as antigos/as"?), est modus in rebus (haja moderação)!
Concordo (5) : Equilíbrio de género nos cargos públicos
Publicado por
Vital Moreira
(Fonte da imagem aqui)
1. Há muito tempo que defendo a "ação afirmativa" nas regras de acesso a cargos públicos - designadamente através do estabelecimento legal de quotas mínimas para qualquer dos sexos -, de modo a alcançar um razoável "equilíbrio de género" nos lugares de direção, tanto na esfera política como na esfera administrativa, corrigindo o tradicional predomínio masculino.São de apoiar, por isso, as propostas legislativas hoje anunciadas pelo Governo, no sentido de:
- reforçar as regras já constantes da chamada "lei da paridade" de 2006, sobre o equilíbrio de género nas candidaturas aos órgãos políticos representativos (desde a AR e o Parlamento Europeu às assembleias de freguesia), corrigindo as insuficiências daquela lei;
- estabelecer regras afins em relação aos cargos diretivos da Administração pública, lato sensu, desde a administração central às ordens profissionais, passando pelas universidades públicas.
Aliás, hoje em dia não deve haver nenhuma dificuldade no cumprimento dessas regras nessas áreas, dado o peso feminino no pessoal do setor público, bem como nas universidades e nas profissões liberais organizadas em ordens.
2. No regime anunciado só não sufrago a ideia de exigir à CRESAP, no caso dos cargos dirigentes providos por concurso público, que doravante tenha em consideração o equilíbrio de género na sua proposta de três nomes a apresentar ao Governo.
De facto, a única função da CRESAP é - e só pode ser - a de apreciar e selecionar três candidatos de acordo com as suas credenciais e méritos para o desempenho do lugar posto a concurso. Não se vê qual o papel que o sexo dos candidatos pode ter nessa equação. O resultado pode ser três candidatos apurados de qualquer dos géneros ou uma repartição 2/1 para qualquer do lados. Cabe depois ao Ministro responsável ter em conta, na nomeação, o respeito pela equilíbrio de género, pelo que, se no seu departamento um dos sexos estiver representado abaixo de 40%, ele será então obrigado a nomear candidatos desse sexo até alcançar o limiar da quota, salvo nos casos em que não haja nenhum entre os três candidatos selecionados pela CRESAP.
Pedir à própria CRESAP que tenha em consideração o equilíbrio de género na sua seleção dos três candidatos inquina a sua missão e contraria a própria ideia da igualdade, que assenta no pressuposto de que não há cargos mais femininos nem mais masculinos. De resto, nos últimos tempos até tem havido mais nomeações femininas do que masculinas para tais cargos, provando que não é necessário alterar o mandato da CRESAP para cumprir os objetivos do novo regime.
Não havia, portanto, necessidade de enveredar por aí.
segunda-feira, 5 de março de 2018
Preocupante Itália
Publicado por
Vital Moreira
Em resumo, uma clara vitória do populismo e das direitas mais conservadoras e uma humilhante derrota do PD (centro esquerda), atualmente no Governo, que fica a 13pp do M5E e pouco acima da Liga! Como aqui se antecipara, a social-democracia europeia acentua a sua crise à escala europeia, perdendo o poder no único dos grandes Estados-membros da UE onde ainda liderava o Governo...
2. Em princípio, estes resultados não proporcionam uma maioria parlamentar a nenhuma força política, mas o sistema eleitoral misto, com cerca de um terço dos deputados e senadores a serem eleitos em círculos uninominais por maiora relativa, dá vantagem à coligação de direita, que não deve ficar muito longe da maiora absoluta, sendo naturalmente candidata a formar governo.
Todavia, se coligação de direta ficar aquém da maioria parlamentar e com o PD fora de qualquer coligação governativa depois desta severa punição eleitoral, não antevê fácil formar um governo maioritário à margem do M5E. Uma dificuldade inesperada provém do facto de dentro da coligação de direita, a Liga ficar surpreendentemente à frente da Força Itália, o que lhe dará força para reivindicar a liderança do governo. Impensável, ver Salvini à frente do Governo de Roma e a integrar o Conselho Europeu da UE!
3. Enfim, estes resultados não auguram nada de bom para a Itália e vão causar muitas dores de cabeça em Bruxelas e em muitas capitais nacionais da UE, incluindo em Lisboa, que perde um aliado na coligação dos países do sul.
Decididamente, estas eleições confirmam que, se a União se tornou um fator determinante nas eleições nacionais dos Estados-membros, em contrapartida as eleições nacionais nos grandes Estados-membros também podem afetar profundamente o quadro geral da União.
Entre a espada e a parede
Publicado por
Vital Moreira
1. A decisão do SPD alemão de confirmar no referendo interno o acordo de coligação de governo com Merkel é boa para a Alemanha, que evita uma crise política ou um problemático governo minoritário, e para a Europa, que é poupada à turbulência dessa eventual crise e pode beneficiar do forte empenhamento do novo Governo alemão na reforma e aprofundamento da União Europeia.
Resta saber se é boa para o próprio SPD.
2. Colocado entre a espada e a parede - pois a provável consequência de uma crise política resultante da eventual recusa do acordo seria a convocação de eleições antecipadas, com o risco de mais um desaire eleitoral agravado (como as sondagens eleitorais indiciam) -, o SPD optou pelo mal menor, reeditando a coligação de governo com a direita do CDU/CSU.
Todavia, para além da divisão do partido nessa decisão, tendo um em cada três votantes recusado o acordo, o SPD arrisca-se novamente, como sucedeu na passada legislatura, a pagar este novo envolvimento numa "grande coligação" com mais uma etapa do seu declínio político. O destino da social-democracia europeia pode estar em jogo nesta arriscada opção do SPD alemão...
Resta saber se é boa para o próprio SPD.
2. Colocado entre a espada e a parede - pois a provável consequência de uma crise política resultante da eventual recusa do acordo seria a convocação de eleições antecipadas, com o risco de mais um desaire eleitoral agravado (como as sondagens eleitorais indiciam) -, o SPD optou pelo mal menor, reeditando a coligação de governo com a direita do CDU/CSU.
Todavia, para além da divisão do partido nessa decisão, tendo um em cada três votantes recusado o acordo, o SPD arrisca-se novamente, como sucedeu na passada legislatura, a pagar este novo envolvimento numa "grande coligação" com mais uma etapa do seu declínio político. O destino da social-democracia europeia pode estar em jogo nesta arriscada opção do SPD alemão...
sexta-feira, 2 de março de 2018
Aplauso
Publicado por
Vital Moreira
Já é possível pagar impostos por meio de uma aplicação digital ou, ainda mais simples, por débito direto em conta bancária.
Em matéria de impostos já basta ter de os pagar. Quanto mais simples o seu pagamento, melhor! Simplex, no seu melhor.
Em matéria de impostos já basta ter de os pagar. Quanto mais simples o seu pagamento, melhor! Simplex, no seu melhor.
Corporativismo (8): O caso do Ministério Público
Publicado por
Vital Moreira
1. Na sua corajosa entrevista ao Público e à Rádio Renascença, o antigo Procurador-Geral da República, Consº Pinto Monteiro, traça um quadro preocupante da "captura" do governo do Ministério Público pelo respetivo sindicato profissional, através do Conselho Superior, em aliança com os representantes partidários a ele afetos, designados pela AR, daí resultando um enorme constrangimento da capacidade de ação do PGR, apesar de este ser nomeado pelo PR sob proposta do Governo e dispor, portanto, de uma elevada legitimidade democrática.
Ora, a Constituição não define nem a composição concreta do Conselho Superior, nem os seus poderes, aspetos que ficaram em aberto para definição legislativa, pelo que nada obriga a manter o status quo institucional. Nada na principiologia do Estado de direito constitucional requer o autogoverno, de direito ou de facto, do Ministério Público. Infelizmente, a mesma relação de forças político-sindicais que proporcionou a atual solução legislativa tem também impedido a sua revisão no sentido da redução da autogestão corporativa do Ministério Público, aliás reforçada pela entrega do cargo de PGR a membros da respetiva magistratura.
2. Não alinhei no aplauso generalizado do recente "Pacto da Justiça", acordado entre as profissões da justiça, onde vejo mais a expressão de um compromisso eclético entre os diversos interesses sectoriais do que uma visão coerente de uma sistema judicial ao serviço do interesse geral, que o Estado representa, e dos cidadãos, que são os seus destinatários, como utentes, e seus financiadores, como contribuintes. Um e outros estiveram ausentes do procedimento que conduziu ao tal Pacto.
Penso, de resto, que uma das linhas centrais de uma reforma da justiça digna desse nome deveria consistir justamente da sua "descorporativização". Os sindicatos profissionais servem para defender os respetivos interesses particulares de grupo, não para governar as instituições em função deles, sacrificando o interesse público.
O maior risco para a independência da justiça consiste justamente na instrumentalização sindical das suas instituições de governo. A autogestão sindical não constitui a resposta apropriada para evitar a governamentalização da justiça.
Ora, a Constituição não define nem a composição concreta do Conselho Superior, nem os seus poderes, aspetos que ficaram em aberto para definição legislativa, pelo que nada obriga a manter o status quo institucional. Nada na principiologia do Estado de direito constitucional requer o autogoverno, de direito ou de facto, do Ministério Público. Infelizmente, a mesma relação de forças político-sindicais que proporcionou a atual solução legislativa tem também impedido a sua revisão no sentido da redução da autogestão corporativa do Ministério Público, aliás reforçada pela entrega do cargo de PGR a membros da respetiva magistratura.
2. Não alinhei no aplauso generalizado do recente "Pacto da Justiça", acordado entre as profissões da justiça, onde vejo mais a expressão de um compromisso eclético entre os diversos interesses sectoriais do que uma visão coerente de uma sistema judicial ao serviço do interesse geral, que o Estado representa, e dos cidadãos, que são os seus destinatários, como utentes, e seus financiadores, como contribuintes. Um e outros estiveram ausentes do procedimento que conduziu ao tal Pacto.
Penso, de resto, que uma das linhas centrais de uma reforma da justiça digna desse nome deveria consistir justamente da sua "descorporativização". Os sindicatos profissionais servem para defender os respetivos interesses particulares de grupo, não para governar as instituições em função deles, sacrificando o interesse público.
O maior risco para a independência da justiça consiste justamente na instrumentalização sindical das suas instituições de governo. A autogestão sindical não constitui a resposta apropriada para evitar a governamentalização da justiça.
Observatório do comércio internacional (7): Trump abre "guerra comercial"
Publicado por
Vital Moreira
1. Concretizando a ameaça que tinha anunciado, o Presidente Trump decidiu impor sobretarifas de 25% e de 10% sobre as importações de aço e de alumínio, respetivamente.
Embora as medidas protecionistas das respetivas indústrias americanas - à custa de outras indústrias, que beneficiavam desses metais importados mais baratos - tenham sido justificadas por alegadas razões de "segurança nacional", numa aplicação abusiva de uma norma do GATT, a verdade é elas vão afetar principalmente os aliados dos Estados Unidos, incluindo da NATO (UE e Canadá).
2. Como era de esperar, Bruxelas não perdeu tempo a anunciar a tomada de medidas de retaliação comercial, embora "proporcionadas" e "compatíveis com a OMC". Seguramente, outros países prejudicados, como a China, a Coreia, o Japão e o Brasil, não deixarão também de responder.
Sem surpresa, a insensata deriva protecionista de Trump só poderia dar nisto, uma improvável guerra comercial entre as duas potências comerciais que até há pouco tempo negociavam entre si o mais ambicioso acordo de liberalização comercial (o TTIP) e que lideraram durante décadas a criação de uma ordem comercial liberal global sujeita a regras, destinadas justamente a evitar guerras comerciais de que ninguém sai ileso...
Adenda
Este editorial do New York Times diz tudo: "As guerras comerciais são destrutivas. E é óbvio que Trump quer uma".
Embora as medidas protecionistas das respetivas indústrias americanas - à custa de outras indústrias, que beneficiavam desses metais importados mais baratos - tenham sido justificadas por alegadas razões de "segurança nacional", numa aplicação abusiva de uma norma do GATT, a verdade é elas vão afetar principalmente os aliados dos Estados Unidos, incluindo da NATO (UE e Canadá).
2. Como era de esperar, Bruxelas não perdeu tempo a anunciar a tomada de medidas de retaliação comercial, embora "proporcionadas" e "compatíveis com a OMC". Seguramente, outros países prejudicados, como a China, a Coreia, o Japão e o Brasil, não deixarão também de responder.
Sem surpresa, a insensata deriva protecionista de Trump só poderia dar nisto, uma improvável guerra comercial entre as duas potências comerciais que até há pouco tempo negociavam entre si o mais ambicioso acordo de liberalização comercial (o TTIP) e que lideraram durante décadas a criação de uma ordem comercial liberal global sujeita a regras, destinadas justamente a evitar guerras comerciais de que ninguém sai ileso...
Adenda
Este editorial do New York Times diz tudo: "As guerras comerciais são destrutivas. E é óbvio que Trump quer uma".
quinta-feira, 1 de março de 2018
Haja moralidade...!
Publicado por
Vital Moreira
1. Cumprindo uma orientação constitucional, que aliás sufrago, a Assembleia da República afadiga-se a legislar (ou a exigir do Governo) medidas de promoção do "equilíbrio de género" na esfera pública, a fim de aumentar a representação feminina nas instituições políticas, na Administração pública e nas empresas públicas (e até nas empresas privadas cotadas em bolsa), contrariando o tradicional domínio masculino na vida política e económica.
Porém, não se conhece nenhuma iniciativa parlamentar tendente a legislar idênticas medidas também para constituição dos órgãos de governo dos próprios partidos políticos, apesar de, como se mostra no quadro junto (tirado do Jornal de Negócios de hoje), vários dos partidos com representação parlamentar não respeitarem dentro de portas aquilo que impõem, por via legislativa, a outras entidades.
2. Ora, os partidos políticos, embora sendo organizações de direito privado, estão constitucionalmente obrigados a regras de organização e de atuação democrática e gozam do monopólio de apresentação de candidaturas ao parlamento, sendo os protagonistas da vida política. Não se compreende por isso que, enquanto estão obrigados a apresentar listas aos órgãos do poder político que respeitem requisitos legais de igualdade de género, não estejam eles próprios sujeitos aos mesmos requisitos na sua organização interna.
De resto, com que autoridade política os partidos parlamentares estendem tal obrigação a entidades privadas, como as empresas cotadas (que estão fora da esfera política e que gozam constitucionalmente de um direito de se governarem livremente), se não impõem as mesmas regras legais a si mesmos?
"Haja moralidade..."! Aqui fica o desafio.
Porém, não se conhece nenhuma iniciativa parlamentar tendente a legislar idênticas medidas também para constituição dos órgãos de governo dos próprios partidos políticos, apesar de, como se mostra no quadro junto (tirado do Jornal de Negócios de hoje), vários dos partidos com representação parlamentar não respeitarem dentro de portas aquilo que impõem, por via legislativa, a outras entidades.
2. Ora, os partidos políticos, embora sendo organizações de direito privado, estão constitucionalmente obrigados a regras de organização e de atuação democrática e gozam do monopólio de apresentação de candidaturas ao parlamento, sendo os protagonistas da vida política. Não se compreende por isso que, enquanto estão obrigados a apresentar listas aos órgãos do poder político que respeitem requisitos legais de igualdade de género, não estejam eles próprios sujeitos aos mesmos requisitos na sua organização interna.
De resto, com que autoridade política os partidos parlamentares estendem tal obrigação a entidades privadas, como as empresas cotadas (que estão fora da esfera política e que gozam constitucionalmente de um direito de se governarem livremente), se não impõem as mesmas regras legais a si mesmos?
"Haja moralidade..."! Aqui fica o desafio.
quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018
Discordo (5): Devem os votos brancos e nulos contar?
Publicado por
Vital Moreira
(Foto: Visão)
1. Esta proposta de reconhecimento e valorização de "votos contra" em eleições uninominais (ou por lista) não faz nenhum sentido.Nas eleições vota-se, ou não, nos candidatos em liça, não a favor ou contra eles, como sucede nos plebiscitos pessoais, próprios de regimes autoritários e/ou populistas. Mesmo nos referendos vota-se sim ou não a certa solução política ou legislativa colocada à decisão dos cidadãos; não se vota em pessoas, nem a favor ou contra elas. Importa manter clara esta distinção.
Nas eleições, os modos de exprimir discordância ou rejeição política de todos os candidatos são o voto branco e o voto nulo, mas estes não contam para a eleição, ou não, do(s) candidatos, salvo se houver uma norma eleitoral que exija o voto favorável de uma certa percentagem mínima de votantes (ou até de eleitores). Na falta de tal norma expressa, numa eleição uninominal é eleito o candidato com mais votos (maioria relativa), independentemente da percentagem em relação ao número de votantes.
Numa eleição com um só candidato, por não se terem apresentado outros, é juridicamente indiferente o número de votos expressos válidos e o número de votos brancos e/ou nulos. O elevado número de votos brancos ou nulos pode afetar a legitimidade e autoridade política do eleito, não o resultado nem a validade da sua eleição. Os votos brancos não apagam outros tantos votos expressos, nem os votos nulos anulam outros tantos votos válidos.
2. Pela mesma razão, também discordo absolutamente da ideia, por vezes apresentada de modo pouco avisado, de reconhecer valor eleitoral aos votos brancos / ou nulos nas eleições parlamentares, deixando por atribuir um número de mandatos proporcional à taxa desses votos.
A democracia representativa visa representar quem participa na escolha dos seus representantes, não quem se recusa a tê-los, que muitas vezes é um voto contra a própria democracia representativa. Os "brancosos" e "nulosos" não devem ter "representação" virtual no parlamento, através de cadeiras vazias, justamente porque se recusam a participar na escolha de representantes.
Numa democracia liberal, quem não está satisfeito com a oferta eleitoral que lhe é apresentada deve promover o seu alargamento, sendo embora evidente que não pode haver tantos partidos quantas as preferências individuais privativas de cada eleitor, como por vezes parece ser a exigência. Mesmo num sistema, como o nosso, em que só os partidos políticos podem apresentar candidaturas, a verdade é que é relativamente fácil criar um novo partido (como, aliás, teria de ser, sob pena de excessiva restrição democrática), como tem mostrado a nossa história constitucional e é confirmado pelo registo de partidos no Tribunal Constitucional (neste momento, existem 22!).
Adenda
Um eleitor pergunta quantas vezes recorri ao voto branco ou nulo. A reposta é nunca, e também nunca me abstive. Mas se me exigisse a concordância com todas as propostas dos partidos/candidatos em que votei, nunca teria deixado de votar em branco! Suponho que se passa com muitos outros cidadãos: só concordaremos em absoluto com o nosso próprio partido uninominal! Mas isso não há...
segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018
Observatório do comércio internacional (6): Algo está a mudar em Brasília e em Buenos Aires
Publicado por
Vital Moreira
1. Os países do Mercosul, nomeadamente o Brasil e Argentina, são tradicionalmente caracterizados por uma reduzida abertura ao comércio com terceiros países.
Para além de uma elevada tarifa externa média, o Mercosul praticamente não tem acordos de liberalização comercial com outros países fora da sua área de influência, o que contrasta com outros países latino-americanos, designadamente os da orla do Pacífico, que concluíram acordos comerciais com as principais economias (UE, EUA, Japão, etc.), abrindo assim acesso preferencial aos grandes mercados mundiais.
Mas nos últimos tempos, depois das mudanças políticas em Buenos Aires e em Brasília, as coisas parecem estar em vias de uma substancial mudança de orientação também no respeitante à política comercial externa. Como aqui já se assinalou, as negociações do acordo comercial com a UE, que se arrastavam há 20 anos sem perspetiva de conclusão, sofreram um notável avanço, estando perto de ser bem-sucedidas. E agora tem-se notícia de inicio de negociações com outras economias avançadas, designadamente o Canadá!
2. Não se pode deixar de sublinhar a importância desta entrada do bloco sul-americano na senda da liberalização das trocas comerciais por via de acordos bilaterais, quer pelo significativo peso conjunto das suas economias (mesmo descontando a Venezuela, não abrangida nestes acordos), quer pelo facto de se tratar de um bloco até agora muito "virado para dentro", com reduzida participação na globalização económica e nas cadeias de produção globais.
A concretizarem-se estes acordos, o Mercosul aumentará rapidamente a sua participação no comércio internacional, que é inferior ao seu peso na economia global, tal como vai subir a importância do comércio externo no PIB dos países que o integram. Trata-se de uma mudança tanto mais de assinalar quanto mais ela vai ao arrepio da deriva protecionista que se desenrola nos Estados Unidos, sinalizando o seu isolamento. Enquanto Washington abandona o seu protagonismo no alargamento da ordem comercial liberal, Brasília e Buenos Aires propõem-se aderir.
Sejam bem-vindos!
Para além de uma elevada tarifa externa média, o Mercosul praticamente não tem acordos de liberalização comercial com outros países fora da sua área de influência, o que contrasta com outros países latino-americanos, designadamente os da orla do Pacífico, que concluíram acordos comerciais com as principais economias (UE, EUA, Japão, etc.), abrindo assim acesso preferencial aos grandes mercados mundiais.
Mas nos últimos tempos, depois das mudanças políticas em Buenos Aires e em Brasília, as coisas parecem estar em vias de uma substancial mudança de orientação também no respeitante à política comercial externa. Como aqui já se assinalou, as negociações do acordo comercial com a UE, que se arrastavam há 20 anos sem perspetiva de conclusão, sofreram um notável avanço, estando perto de ser bem-sucedidas. E agora tem-se notícia de inicio de negociações com outras economias avançadas, designadamente o Canadá!
2. Não se pode deixar de sublinhar a importância desta entrada do bloco sul-americano na senda da liberalização das trocas comerciais por via de acordos bilaterais, quer pelo significativo peso conjunto das suas economias (mesmo descontando a Venezuela, não abrangida nestes acordos), quer pelo facto de se tratar de um bloco até agora muito "virado para dentro", com reduzida participação na globalização económica e nas cadeias de produção globais.
A concretizarem-se estes acordos, o Mercosul aumentará rapidamente a sua participação no comércio internacional, que é inferior ao seu peso na economia global, tal como vai subir a importância do comércio externo no PIB dos países que o integram. Trata-se de uma mudança tanto mais de assinalar quanto mais ela vai ao arrepio da deriva protecionista que se desenrola nos Estados Unidos, sinalizando o seu isolamento. Enquanto Washington abandona o seu protagonismo no alargamento da ordem comercial liberal, Brasília e Buenos Aires propõem-se aderir.
Sejam bem-vindos!
sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018
Um pouco mais de rigor sff (66): "Portinglês"
Publicado por
Vital Moreira
É evidente que nesta notícia do Público a referência a "taxas" está rotundamente errada, devendo ler-se "impostos", que é coisa bem diversa em português. É o que faz traduzir notícias apressadamente do inglês, sem ter em conta os "falsos amigos", como sucede tantas vezes em Portugal, mesmo por parte de pessoas com educação superior. O "portinglês" está cada vez mais difundido!
Pode argumentar-se que um jornalista não tem de saber tudo, o que é verdade. Mas neste caso o tema dos impostos europeus (e não das "taxas europeias") tem estado no debate público há algumas semanas, pelo que não se justifica o referido lapso jornalístico.
Lamentavelmente, deixou de haver revisores nos jornais e o trabalho editorial sobre os títulos também desapareceu. A edição online direta tem um preço alto em termos de rigor linguístico. Mas um jornal com as responsabilidade do Público não pode incorrer em lapsos destes com a frequência com isso ocorre nas suas páginas.
Geringonça (6): O "Governo do grande capital"
Publicado por
Vital Moreira
«Os desenvolvimentos entretanto verificados mostram que o PS e o seu Governo, no quadro da suas opções de classe ao serviço do grande capital, não perde oportunidade para convergir com o PSD e o CDS».1. Esta passagem do editorial do último número do jornal oficial do PCP não deixa dúvidas de que na visão comunista o PS e o Governo representam o "inimigo de classe", uma das mais graves acusações políticas no jargão do PCP, condenação historicamente agravada pelo facto de o PS ousar reclamar-se da esquerda, da qual o PCP se arroga o monopólio ideológico.
É certo que o PCP sempre fez este juízo do PS, muitas vezes erigido em "inimigo principal", tendo sempre guerreado afincadamente todos os governos socialistas, sendo igualmente certo que o PS sempre considerou o PCP como expressão de uma esquerda antidemocrática. Só que desta vez, prodigiosamente, o atual Governo do PS só existe porque teve o apoio do PCP na sua formação, como o tem tido na sua sustentação. Como conciliar a histórica inimizade recíproca com a circunstância da atual aliança política de conveniência?
2. As questões que esta insólita (e anteriormente impensável) situação suscita são, essencialmente, duas: (i) saber até onde pode ir o cinismo político do PCP na sustentação política de um Governo que tanto despreza, bem como o do PS, ao fazer de conta que se trata de uma "solução natural" (se não mesmo "ideal") de governo; (ii) saber se, com esta reiterada marcação de fronteiras por parte do PCP, é possível equacionar a repetição da atual parceria partidária na próxima legislatura, fora das condições que ditaram a "Geringonça", como faz menção de querer o PS.
Seja como for, sabendo o preço político a pagar por uma crise de governo, ambos os lados lado estão condenados a engolir com boa cara a sua dose de "sapos políticos" até ao fim da legislatura. O bom momento da economia e as boas perspetivas eleitorais para 2019 ajudam a manter o atual arranjo político, por mais artificial e menos consensual que ele se apresente com o decorrer do tempo, à medida que os seus objetivos iniciais se vão esgotando.
quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018
Ai a dívida (15): Acrescentar dívida à dívida
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Vital Moreira
1. É óbvio que, apesar do título enganador desta notícia, a dívida pública não "afundou" em 2017, antes aumentou em cerca de 1700 milhões de euros.
E mesmo considerando a sua percentagem no PIB, que é o que a notícia quer referir, o resultado não é de molde a festejar. De facto, a nova percentagem de 126,2%, embora melhor do que a modesta meta inicialmente estabelecida no orçamento de 2017 - que em devido tempo qualifiquei como pouco ambiciosa -, não se pode considerar um êxito, visto que aquela meta foi estabelecida para uma previsão de crescimento do PIB bem inferior ao que se veio a verificar (2,7%), o que quer dizer que este maior crescimento não se refletiu inteiramente, como seria de esperar, numa melhoria correspondente do rácio da dívida, tendo sido aproveitado, ao invés, para aumentar o endividamento inicialmente previsto!
2. Estando a economia num pico de crescimento sem paralelo há muitos anos - o que se traduz em substancial aumento da receita pública e em redução da despesa pública com encargos sociais (subsídio de desemprego e outros) -, não se compreende que se mantenha um significativo défice orçamental, que implica um aumento continuado do já elevadíssimo stock da dívida pública.
A meta deveria ser, pelo menos, congelar o atual montante da dívida, em vez de acrescentar mais dívida à montanha da dívida. Se com a economia a crescer 2,7% não conseguimos uma situação orçamental equilibrada (e um "défice estrutural" compatível com as regras da UE) e de nulo endividamento adicional, quando é que vamos consegui-lo?
3. Sendo de admitir que o ritmo do crescimento económico pode vir a abrandar já no corrente ano, como indicam todas as estimativas, e que a taxa de juro pode vir a aumentar dentro em breve, como preveem todos os observadores, Portugal continua sem se preparar adequadamente para enfrentar sem receios condições económicas e financeiras menos bonançosas do que as atuais.
A atual conjunção astral favorável - robusta retoma económica da zona euro e da economia global, pródiga política monetária do BCE, etc. - não vai durar indefinidamente. É quando faz sol que se reparam os telhados. E os nossos telhados financeiros continuam longe de estar à prova de novas tempestades...
Adenda
Como mostra este artigo, a redução do peso da dívida pública no PIB, que se iniciou apenas em 2015, para recair no ano seguinte e retomar em 2017, foi mais tardia e menos intensa do que a redução da dívida privada (dos particulares e das empresas), que começou ainda em 2013, ano de início da retoma económica, e que tem decaído a bom ritmo, embora com alguma travagem no ano passado. Este défice de redução do peso da dívida pública tem, portanto, impedido uma mais rápida "desalavancagem" do conjunto da economia, o que se impunha, tendo em conta o elevado crescimento económico que se verifica.
E mesmo considerando a sua percentagem no PIB, que é o que a notícia quer referir, o resultado não é de molde a festejar. De facto, a nova percentagem de 126,2%, embora melhor do que a modesta meta inicialmente estabelecida no orçamento de 2017 - que em devido tempo qualifiquei como pouco ambiciosa -, não se pode considerar um êxito, visto que aquela meta foi estabelecida para uma previsão de crescimento do PIB bem inferior ao que se veio a verificar (2,7%), o que quer dizer que este maior crescimento não se refletiu inteiramente, como seria de esperar, numa melhoria correspondente do rácio da dívida, tendo sido aproveitado, ao invés, para aumentar o endividamento inicialmente previsto!
2. Estando a economia num pico de crescimento sem paralelo há muitos anos - o que se traduz em substancial aumento da receita pública e em redução da despesa pública com encargos sociais (subsídio de desemprego e outros) -, não se compreende que se mantenha um significativo défice orçamental, que implica um aumento continuado do já elevadíssimo stock da dívida pública.
A meta deveria ser, pelo menos, congelar o atual montante da dívida, em vez de acrescentar mais dívida à montanha da dívida. Se com a economia a crescer 2,7% não conseguimos uma situação orçamental equilibrada (e um "défice estrutural" compatível com as regras da UE) e de nulo endividamento adicional, quando é que vamos consegui-lo?
3. Sendo de admitir que o ritmo do crescimento económico pode vir a abrandar já no corrente ano, como indicam todas as estimativas, e que a taxa de juro pode vir a aumentar dentro em breve, como preveem todos os observadores, Portugal continua sem se preparar adequadamente para enfrentar sem receios condições económicas e financeiras menos bonançosas do que as atuais.
A atual conjunção astral favorável - robusta retoma económica da zona euro e da economia global, pródiga política monetária do BCE, etc. - não vai durar indefinidamente. É quando faz sol que se reparam os telhados. E os nossos telhados financeiros continuam longe de estar à prova de novas tempestades...
Adenda
Como mostra este artigo, a redução do peso da dívida pública no PIB, que se iniciou apenas em 2015, para recair no ano seguinte e retomar em 2017, foi mais tardia e menos intensa do que a redução da dívida privada (dos particulares e das empresas), que começou ainda em 2013, ano de início da retoma económica, e que tem decaído a bom ritmo, embora com alguma travagem no ano passado. Este défice de redução do peso da dívida pública tem, portanto, impedido uma mais rápida "desalavancagem" do conjunto da economia, o que se impunha, tendo em conta o elevado crescimento económico que se verifica.
terça-feira, 20 de fevereiro de 2018
Direi mesmo mais: Municipalização da saúde e da educação
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Vital Moreira
1. Segundo esta notícia, os municípios das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto querem compartilhar da gestão dos centros de saúde e prolongar o seu horário de abertura.
Vou mais longe: defendo há muito que os centros de saúde deveriam ser integralmente transferidos para responsabilidade municipal, ou intermunicipal, e não apenas a gestão dos edifícios, como agora se propõe no processo de descentralização administrativa apresentado pelo Governo. O mesmo tenho proposto também quanto ao ensino básico, ficando o Estado somente com o ensino secundário e o ensino superior. Não vejo porque é que, ao abrigo do princípio constitucional da subsidiariedade, tais serviços continuam a cargo do Estado.
2. Infelizmente, nesta matéria, como noutras, os governos estão reféns da oposição dos sindicatos dos respetivos setores, que perderiam a sua capacidade de paralisar os sistemas públicos de saúde e de ensino com greves nacionais contra o Estado; e, além disso, o atual Governo está refém da oposição dos partidos da extrema-esquerda parlamentar, que se opõem a tal descentralização, pelo mesmo motivo.
"Externalidades" políticas da Geringonça!...
Vou mais longe: defendo há muito que os centros de saúde deveriam ser integralmente transferidos para responsabilidade municipal, ou intermunicipal, e não apenas a gestão dos edifícios, como agora se propõe no processo de descentralização administrativa apresentado pelo Governo. O mesmo tenho proposto também quanto ao ensino básico, ficando o Estado somente com o ensino secundário e o ensino superior. Não vejo porque é que, ao abrigo do princípio constitucional da subsidiariedade, tais serviços continuam a cargo do Estado.
2. Infelizmente, nesta matéria, como noutras, os governos estão reféns da oposição dos sindicatos dos respetivos setores, que perderiam a sua capacidade de paralisar os sistemas públicos de saúde e de ensino com greves nacionais contra o Estado; e, além disso, o atual Governo está refém da oposição dos partidos da extrema-esquerda parlamentar, que se opõem a tal descentralização, pelo mesmo motivo.
"Externalidades" políticas da Geringonça!...
segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018
Lisbon first (6): O caso de Coimbra
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Vital Moreira
1. Para avaliar os privilégios de Lisboa em matéria de investimento público, onde ele nunca falta, mesmo quando não se devia tratar de responsabilidade do Estado (ver post precedente), basta referir o caso de Coimbra, onde investimentos prioritários esperam anos e anos sem execução, como é o caso das obras de recuperação da Escola Secundária José Falcão (na imagem), uma das principais da cidade, há anos em acentuada degradação.
Mas a este exemplo do "esquecimento" central podem acrescentar-se muitos outros, por vezes com atraso de décadas, como por exemplo:
- a construção de uma verdadeira estação ferroviária, substituindo o desconfortável "apeadeiro" existente;
- o "sistema de mobilidade do Mondego", em substituição da antiga linha férrea do ramal da Lousã, que foi desativada em troca de um prometido "metropolitano de superfície", nunca posto em obra, muitos anos e muitos projetos depois;
- a construção de um novo tribunal, há muito projetado, acabando com a dispersão dos vários tribunais por diferentes instalações da cidade;
- a solução da ligação em autoestrada entre Coimbra e Viseu, atualmente ligadas pelo acanhado e fatídico IP3, apesar das diferentes soluções já aventadas;
- a conclusão do acesso à cidade da A13 (autoestrada Tomar-Coimbra), abruptamente interrompida a alguns quilómetro da cidade.
Coimbra conta-se seguramente entre as principais vítimas da persistente "austeridade orçamental" quanto a investimento público, longe de recuperar os níveis de antes da crise, apesar do nutrido aumento de receitas públicas geradas pela retoma económica.
2. A preferência dos investimentos públicos por Lisboa não tem a ver somente com o seu maior peso político, com o facto de quase todos os decisores políticos lá viverem e com a visibilidade que os problemas da capital têm nos média nacionais, para quem qualquer problema local de Lisboa assume foros de questão nacional, enquanto qualquer caso da "província" constitui sempre uma questão local, indigna de ser mencionada, por mais interesse nacional que assuma (imagine-se só que a escola José Falcão de situava em Lisboa...).
Penso que para essa desconsideração do resto do Pais em matéria de investimento público conta também a inércia e a falta de capacidade e de vontade reivindicativa das suas instituições do poder local, bem como dos deputados e dirigentes locais dos partidos do poder, que raramente fazem ouvir os interesses das suas regiões nas sedes do poder, porventura inibidos pela fácil acusação de darem expressão a "interesses localistas".
O Porto e as regiões autónomas há muito mostraram, porém, que quem não reivindica de forma audível tende a ser esquecido nas prioridades orçamentais. Lisbon first!...
[revisto]
Mas a este exemplo do "esquecimento" central podem acrescentar-se muitos outros, por vezes com atraso de décadas, como por exemplo:
- a construção de uma verdadeira estação ferroviária, substituindo o desconfortável "apeadeiro" existente;
- o "sistema de mobilidade do Mondego", em substituição da antiga linha férrea do ramal da Lousã, que foi desativada em troca de um prometido "metropolitano de superfície", nunca posto em obra, muitos anos e muitos projetos depois;
- a construção de um novo tribunal, há muito projetado, acabando com a dispersão dos vários tribunais por diferentes instalações da cidade;
- a solução da ligação em autoestrada entre Coimbra e Viseu, atualmente ligadas pelo acanhado e fatídico IP3, apesar das diferentes soluções já aventadas;
- a conclusão do acesso à cidade da A13 (autoestrada Tomar-Coimbra), abruptamente interrompida a alguns quilómetro da cidade.
Coimbra conta-se seguramente entre as principais vítimas da persistente "austeridade orçamental" quanto a investimento público, longe de recuperar os níveis de antes da crise, apesar do nutrido aumento de receitas públicas geradas pela retoma económica.
2. A preferência dos investimentos públicos por Lisboa não tem a ver somente com o seu maior peso político, com o facto de quase todos os decisores políticos lá viverem e com a visibilidade que os problemas da capital têm nos média nacionais, para quem qualquer problema local de Lisboa assume foros de questão nacional, enquanto qualquer caso da "província" constitui sempre uma questão local, indigna de ser mencionada, por mais interesse nacional que assuma (imagine-se só que a escola José Falcão de situava em Lisboa...).
Penso que para essa desconsideração do resto do Pais em matéria de investimento público conta também a inércia e a falta de capacidade e de vontade reivindicativa das suas instituições do poder local, bem como dos deputados e dirigentes locais dos partidos do poder, que raramente fazem ouvir os interesses das suas regiões nas sedes do poder, porventura inibidos pela fácil acusação de darem expressão a "interesses localistas".
O Porto e as regiões autónomas há muito mostraram, porém, que quem não reivindica de forma audível tende a ser esquecido nas prioridades orçamentais. Lisbon first!...
[revisto]
sábado, 17 de fevereiro de 2018
Voltar ao mesmo (16): O crédito hipotecário
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Vital Moreira
1. Um dos fatores que mais contribuíram para a grande penosidade social da crise de 2011 foi o sobre-endividamento dos particulares, sobretudo com o crédito à habitação, que o laxismo do Governos e do Banco de Portugal tinha deixado disparar.
O resultado da crise (subida dos juros, redução de rendimentos ou desemprego de muitos devedores) foi a perda de muitas casas por execução da hipoteca, sem que em muitos casos os bancos recuperassem todo o dinheiro emprestado, por efeito da desvalorização do imobiliário durante a crise. Todos perderam.
Todavia, como mostra o quadro acima (colhido aqui), o crédito à habitação, que sofreu uma drástica redução no auge das recessão, começou a recuperar logo em 2014, com o início da retoma económica, e tem acelerado desde então, por efeito dos juros extremamente baixos, tendo atingido no ano passado o máximo desde 2011, nas vésperas da crise, apesar de o PIB ainda não ter recuperado o nível de antes da crise.
2. Face ao nível extremamente baixo de poupança interna, este disparo do crédito hipotecário não pode deixar de ser preocupante, sobretudo tendo em conta que a taxa de juro há de voltar a aumentar algures num futuro próximo, sobrecarregando os orçamentos familiares dos endividados.
São por isso de aplaudir as orientações agora estabelecidas pelo Banco de Portugal para morigerar a concessão de crédito à habitação pelos bancos. O que se pode questionar é saber se não se trata de medidas demasiado tímidas, desde logo por não serem vinculativas e algumas não serem aplicáveis imediatamente (como o limite de 30 anos à longevidade dos empréstimos).
Claramente, no seu papel de regulador prudencial , o BdP só teve em conta o risco para a estabilidade do sistema bancário, tendo de tomar em consideração a decisiva importância do crédito à habitação para a recuperação da rentabilidade dos bancos.
Pela mesma razão, o tema do excesso de endividamento dos particulares tem estado também fora da agenda governamental, desde logo para não estragar a narrativa do "virar de página da austeridade". Mas, como ensinam os economistas, é quando a economia aquece e o crédito dispara que importa tomar medidas de contenção do endividamento.
O resultado da crise (subida dos juros, redução de rendimentos ou desemprego de muitos devedores) foi a perda de muitas casas por execução da hipoteca, sem que em muitos casos os bancos recuperassem todo o dinheiro emprestado, por efeito da desvalorização do imobiliário durante a crise. Todos perderam.
Todavia, como mostra o quadro acima (colhido aqui), o crédito à habitação, que sofreu uma drástica redução no auge das recessão, começou a recuperar logo em 2014, com o início da retoma económica, e tem acelerado desde então, por efeito dos juros extremamente baixos, tendo atingido no ano passado o máximo desde 2011, nas vésperas da crise, apesar de o PIB ainda não ter recuperado o nível de antes da crise.
2. Face ao nível extremamente baixo de poupança interna, este disparo do crédito hipotecário não pode deixar de ser preocupante, sobretudo tendo em conta que a taxa de juro há de voltar a aumentar algures num futuro próximo, sobrecarregando os orçamentos familiares dos endividados.
São por isso de aplaudir as orientações agora estabelecidas pelo Banco de Portugal para morigerar a concessão de crédito à habitação pelos bancos. O que se pode questionar é saber se não se trata de medidas demasiado tímidas, desde logo por não serem vinculativas e algumas não serem aplicáveis imediatamente (como o limite de 30 anos à longevidade dos empréstimos).
Claramente, no seu papel de regulador prudencial , o BdP só teve em conta o risco para a estabilidade do sistema bancário, tendo de tomar em consideração a decisiva importância do crédito à habitação para a recuperação da rentabilidade dos bancos.
Pela mesma razão, o tema do excesso de endividamento dos particulares tem estado também fora da agenda governamental, desde logo para não estragar a narrativa do "virar de página da austeridade". Mas, como ensinam os economistas, é quando a economia aquece e o crédito dispara que importa tomar medidas de contenção do endividamento.
sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018
Lisbon first (5): Metropolitano de Lisboa contra a ferrovia nacional
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Vital Moreira
Sem surpresa, dados os antecedentes, enquanto não falta dinheiro para o metropolitano de Lisboa (e o mesmo se diga do do Porto) - que nem sequer deveria ser uma responsabilidade do Estado, mais sim dos municípios interessados, sendo um serviço de transporte urbano -, fica-se a saber que do plano ferroviário nacional só está em execução 15% do plano que devia estar em obra.
É certo que, apesar do crescimento exponencial das receitas fiscais e outras (mercê da robusta retoma económica), o orçamento do investimento público tem sido substancialmente sacrificado, em homenagem ao aumento da despesa com salários e pensões do setor público. Mas, então, isso constitui mais uma razão para dar prioridade às obras de infraestruturas de interesse nacional, como a ferrovia, que são responsabilidade primeira do Estado e que têm a ver com as ligações internacionais do País (valorização das linhas do Minho, da Beira Alta e da Beira Baixa e a nova linha Évora-Caia) e não de obras que deviam ser da responsabilidade municipal, de interesse local.
Como tenho defendido várias vezes, não existe nenhuma razão para que os contribuintes do resto do país sustentem com os seus impostos os transportes urbanos de Lisboa e do Porto, para mais sacrificando obras de interesse nacional!
Adenda
Mais investimento estatal na expansão do metro de Lisboa e do Porto. Prodigalidade eleitoral.
É certo que, apesar do crescimento exponencial das receitas fiscais e outras (mercê da robusta retoma económica), o orçamento do investimento público tem sido substancialmente sacrificado, em homenagem ao aumento da despesa com salários e pensões do setor público. Mas, então, isso constitui mais uma razão para dar prioridade às obras de infraestruturas de interesse nacional, como a ferrovia, que são responsabilidade primeira do Estado e que têm a ver com as ligações internacionais do País (valorização das linhas do Minho, da Beira Alta e da Beira Baixa e a nova linha Évora-Caia) e não de obras que deviam ser da responsabilidade municipal, de interesse local.
Como tenho defendido várias vezes, não existe nenhuma razão para que os contribuintes do resto do país sustentem com os seus impostos os transportes urbanos de Lisboa e do Porto, para mais sacrificando obras de interesse nacional!
Adenda
Mais investimento estatal na expansão do metro de Lisboa e do Porto. Prodigalidade eleitoral.
quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018
+ Europa (8): Não há omeletes sem ovos
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Vital Moreira
1. Parece que agora se tornou natural, em Bruxelas e entre nós, defender sem pruridos a criação de impostos da União Europeia, e o Primeiro-Ministro fez bem em manifestar o apoio de Portugal a essa via de reforço da sustentabilidade orçamental da União, secundando a posição da Comissão Europeia nesta matéria em relação ao próximo Quadro Financeiro Multianual para 2020-2027.
Não era assim em 1999, quando Mário Soares ousou propor isso, nem sequer em 2009, quando eu próprio me atrevi a defender o mesmo, na minha candidatura ao Parlamento Europeu desse ano. Pouco faltou para ser politicamente crucificado pela imprensa e pelos meus concorrentes (e com o próprio PS a demarcar-se da ideia!).
Como era de esperar, antes e agora, essa iniciativa defronta a oposição das forças antieuropeístas, à esquerda e à direita, em nome da "soberania fiscal" dos Estados, como se a União não fosse no seu cerne um exercício de partilha e de cedência comum de soberania (legislação, poder judicial, política monetária e cambial, política comercial comum, etc. etc.). O que não explicam é a quadratura do círculo de quererem mais dinheiro e mais ação da União sem lhe proporcionarem mais receita, pelo menos para compensar a que é perdida com a saída do Reino Unido.
2. Nas atuais circunstâncias, a criação de recursos fiscais próprios da União, constitui o único meio de responder à perda da importante contribuição britânica e ao aumento das tarefas da União (imigração, defesa, investigação e inovação, etc.), sem ter de cortar excessivamente nos programas tradicionais e sem ter de aumentar as contribuições financeiras diretas dos Estados-membros, o que é tabu para alguns deles (e que inviabiliza essa solução).
Ao contrário destas, as receitas fiscais próprias não constituem despesa orçamental dos Estados-membros (por isso, não contam para o seu próprio saldo orçamental) e diluem a lógica perversa da distinção entre países "contribuintes líquidos" e países "beneficiários líquidos" do orçamento da União.
3. Penso, porém, que em caso de não haver reforço das receitas próprias da União nem das contribuições financeiras dos Estados-Membros, as poupanças a efetuar nos programas tradicionais não podem deixar de atingir em primeira linha a Política Agrícola Comum.
Primeiro, não se justifica que a União continue a gastar mais de um terço do seu orçamento num só dos seus programas, que aliás beneficia uma pequena parte dos agricultores europeus, já de si uma pequena minoria. Em segundo lugar, não faz muito sentido continuar a subsidiar maciçamente a agricultura europeia, quando os consumidores podem ter acesso a produtos agrícolas mais baratos provindos de terceiros países, nomeadamente o Brasil e os Estados Unidos, se for reduzida a elvada proteção pautal dessas importações (obtendo em troca um acesso preferencial ao mercado desses países para outros produtos e serviços europeus).
Os europeus pagam duas vezes o protecionismo agrícola da União: primeiro, sustentam o enorme envelope orçamental dos subsídios; depois, pagam preços mais caros pelos mesmos produtos, por causa da proteção aduaneira.
É tempo de de acabar com este contrassenso!
Não era assim em 1999, quando Mário Soares ousou propor isso, nem sequer em 2009, quando eu próprio me atrevi a defender o mesmo, na minha candidatura ao Parlamento Europeu desse ano. Pouco faltou para ser politicamente crucificado pela imprensa e pelos meus concorrentes (e com o próprio PS a demarcar-se da ideia!).
Como era de esperar, antes e agora, essa iniciativa defronta a oposição das forças antieuropeístas, à esquerda e à direita, em nome da "soberania fiscal" dos Estados, como se a União não fosse no seu cerne um exercício de partilha e de cedência comum de soberania (legislação, poder judicial, política monetária e cambial, política comercial comum, etc. etc.). O que não explicam é a quadratura do círculo de quererem mais dinheiro e mais ação da União sem lhe proporcionarem mais receita, pelo menos para compensar a que é perdida com a saída do Reino Unido.
2. Nas atuais circunstâncias, a criação de recursos fiscais próprios da União, constitui o único meio de responder à perda da importante contribuição britânica e ao aumento das tarefas da União (imigração, defesa, investigação e inovação, etc.), sem ter de cortar excessivamente nos programas tradicionais e sem ter de aumentar as contribuições financeiras diretas dos Estados-membros, o que é tabu para alguns deles (e que inviabiliza essa solução).
Ao contrário destas, as receitas fiscais próprias não constituem despesa orçamental dos Estados-membros (por isso, não contam para o seu próprio saldo orçamental) e diluem a lógica perversa da distinção entre países "contribuintes líquidos" e países "beneficiários líquidos" do orçamento da União.
3. Penso, porém, que em caso de não haver reforço das receitas próprias da União nem das contribuições financeiras dos Estados-Membros, as poupanças a efetuar nos programas tradicionais não podem deixar de atingir em primeira linha a Política Agrícola Comum.
Primeiro, não se justifica que a União continue a gastar mais de um terço do seu orçamento num só dos seus programas, que aliás beneficia uma pequena parte dos agricultores europeus, já de si uma pequena minoria. Em segundo lugar, não faz muito sentido continuar a subsidiar maciçamente a agricultura europeia, quando os consumidores podem ter acesso a produtos agrícolas mais baratos provindos de terceiros países, nomeadamente o Brasil e os Estados Unidos, se for reduzida a elvada proteção pautal dessas importações (obtendo em troca um acesso preferencial ao mercado desses países para outros produtos e serviços europeus).
Os europeus pagam duas vezes o protecionismo agrícola da União: primeiro, sustentam o enorme envelope orçamental dos subsídios; depois, pagam preços mais caros pelos mesmos produtos, por causa da proteção aduaneira.
É tempo de de acabar com este contrassenso!
terça-feira, 13 de fevereiro de 2018
Voltar ao mesmo (15): Reversão permanente
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Vital Moreira
1. Não contentes com a reversão das medidas de austeridade orçamental - que, aliás, só foi possível porque esta foi bem-sucedida e cumpriu os seus objetivos no plano orçamental e económico! -, os partidos "juniores" da Geringonça reclamam agora a reversão de duas das mais importantes reformas do programa de assistência financeira externa, nomeadamente a reforma da lei do arrendamento e a da lei laboral.
É de esperar que o Governo resista desta vez a tais pretensões. Primeiro, porque essas reformas tiveram o apoio do PS na negociação do acordo de assistência em 2011; segundo, porque tal reversão não consta do programa eleitoral do PS nem do programa do Governo em 2015; terceiro, porque essas reformas contribuíram decisivamente para êxito do programa de assistência externa, nomeadamente quanto à retoma económica e do emprego e quanto ao dinamismo do mercado habitacional e da reabilitação urbana em curso.
2. Que a Geringonça justifique a não adoção de novas reformas no campo das políticas económica e social, por causa do veto dos parceiros da protocoligação governamental, pode compreender-se: não há apoios políticos grátis.
Mas que ela justifique a reversão de reformas que estão na base da recuperação da economia e do emprego - que, importa lembrar, começou ainda em 2013, bem antes da reversão da austeridade orçamental - seria um insensato contrassenso político.
É de esperar que o Governo resista desta vez a tais pretensões. Primeiro, porque essas reformas tiveram o apoio do PS na negociação do acordo de assistência em 2011; segundo, porque tal reversão não consta do programa eleitoral do PS nem do programa do Governo em 2015; terceiro, porque essas reformas contribuíram decisivamente para êxito do programa de assistência externa, nomeadamente quanto à retoma económica e do emprego e quanto ao dinamismo do mercado habitacional e da reabilitação urbana em curso.
2. Que a Geringonça justifique a não adoção de novas reformas no campo das políticas económica e social, por causa do veto dos parceiros da protocoligação governamental, pode compreender-se: não há apoios políticos grátis.
Mas que ela justifique a reversão de reformas que estão na base da recuperação da economia e do emprego - que, importa lembrar, começou ainda em 2013, bem antes da reversão da austeridade orçamental - seria um insensato contrassenso político.
sábado, 10 de fevereiro de 2018
Ai, o défice ! (3)
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Vital Moreira
1. Pelo segundo ano consecutivo, verificou-se em 2017 um aumento do défice da balança comercial de mercadorias, com as exportações a ficarem bem abaixo das importações, sendo o maior défice desde 2011 (como mostra a tabela do INE acima). Para isso terá contribuído, apesar de um assinalável incremento das exportações, um ainda maior crescimento das importações, mercê do aumento do investimento (importação de matérias primas e de equipamentos) e do consumo interno, alimentado pelo aumento do poder de compra e do crédito ao consumo.
Só o confortável excedente no comércio externo de serviços (cortesia da vaga turística) permite manter um saldo positivo da balança comercial geral, mesmo assim provavelmente inferior ao do ano anterior (como aqui se antecipou há meses).
2. A manter-se esta tendência, o País pode vir a experimentar de novo um défice comercial geral dentro de algum tempo, situação de que somente saiu há poucos anos, durante o período de assistência financeira externa, em grande parte devido à forte contração da procura interna (e consequentemente das importações), por causa da crise económica e da situação de austeridade orçamental.
Caso se confirme essa involução, tal mostra que o problema da competitividade externa da economia portuguesa continua por resolver de forma sustentável.
Só o confortável excedente no comércio externo de serviços (cortesia da vaga turística) permite manter um saldo positivo da balança comercial geral, mesmo assim provavelmente inferior ao do ano anterior (como aqui se antecipou há meses).
2. A manter-se esta tendência, o País pode vir a experimentar de novo um défice comercial geral dentro de algum tempo, situação de que somente saiu há poucos anos, durante o período de assistência financeira externa, em grande parte devido à forte contração da procura interna (e consequentemente das importações), por causa da crise económica e da situação de austeridade orçamental.
Caso se confirme essa involução, tal mostra que o problema da competitividade externa da economia portuguesa continua por resolver de forma sustentável.
quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018
Ainda bem! (2)
Publicado por
Vital Moreira
1. O Parlamento Europeu voltou a defender a apresentação de candidatos a presidente da Comissão Europeia nas eleições europeias (conhecidos pelo termo alemão "Spitzenkandidaten"), abrindo caminho à designação para essa posição do candidato do partido vencedor nas eleições.
Defendo essa ideia desde 2009, e apoiei-a no Parlamento Europeu, tendo ela sido posta em prática pela primeira vez nas eleições de 2014, que levaram à designação de Juncquer como presidente da atual Comissão, por ter sido o candidato do PPE, o partido mais votado nessas eleições. Isso mudou decididamente o modo de seleção do presidente da Comissão, até aí efetuada pelos chefes de governo dos Estados-membros em negociação de bastidores, por vezes ao arrepio dos próprios resultados eleitorais.
2. Ao contrário da lista transnacional, agora justamente rejeitada, a apresentação prévia de candidatos a presidente da Comissão pelos partidos europeus constitui uma real mais-valia para a democracia na UE, valorizando o voto dos cidadãos europeus e as próprias eleições europeias, dando visibilidade aos partidos políticos paneuropeus e combatendo a tradicional "nacionalização" das eleições e, por último (mas não menos importante), conferindo mais legitimidade e autoridade ao chefe de executivo da União.
É lícito esperar que a repetição, nas eleições do ano que vem, da bem-sucedida experiência de 2014 vai consolidar definitivamente essa inovativa prática constitucional, a caminho de uma genuína democracia parlamentar na UE.
Defendo essa ideia desde 2009, e apoiei-a no Parlamento Europeu, tendo ela sido posta em prática pela primeira vez nas eleições de 2014, que levaram à designação de Juncquer como presidente da atual Comissão, por ter sido o candidato do PPE, o partido mais votado nessas eleições. Isso mudou decididamente o modo de seleção do presidente da Comissão, até aí efetuada pelos chefes de governo dos Estados-membros em negociação de bastidores, por vezes ao arrepio dos próprios resultados eleitorais.
2. Ao contrário da lista transnacional, agora justamente rejeitada, a apresentação prévia de candidatos a presidente da Comissão pelos partidos europeus constitui uma real mais-valia para a democracia na UE, valorizando o voto dos cidadãos europeus e as próprias eleições europeias, dando visibilidade aos partidos políticos paneuropeus e combatendo a tradicional "nacionalização" das eleições e, por último (mas não menos importante), conferindo mais legitimidade e autoridade ao chefe de executivo da União.
É lícito esperar que a repetição, nas eleições do ano que vem, da bem-sucedida experiência de 2014 vai consolidar definitivamente essa inovativa prática constitucional, a caminho de uma genuína democracia parlamentar na UE.
Ainda bem!
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Vital Moreira
O Parlamento Europeu rejeitou a proposta de criar um círculo eleitoral transnacional nas eleições europeias.
Pelas razões aqui expostas contra essa proposta, ainda bem! Prevaleceram os príncipios e o bom-senso político.
Pelas razões aqui expostas contra essa proposta, ainda bem! Prevaleceram os príncipios e o bom-senso político.
Observatório do comércio internacional (4): A imparável ascensão comercial da China
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Vital Moreira
«Em 2014, as exportações de mercadorias da UE representaram 15,0 % do total mundial. Pela primeira vez desde a criação da UE, as exportações europeias foram ultrapassadas pelas da China (15,5 %), mas mantiveram-se à frente das dos Estados Unidos (12,2 %), cuja parte das importações mundiais (15,9 %) excedeu quer a da UE (14,8 %) quer a da China (12,9 %).»1. Apesar de se manter como a maior economia mundial, a UE passou a ser apenas a segunda potência comercial no que respeita ao comércio mundial de mercadorias, tanto nas exportações, agora lideradas pela China, como nas importações, com os Estados Unidos à cabeça (tabela A7 abaixo, segundo a OMC). Todavia, a União mantém uma folgada liderança mundial no comércio de serviços, como mostra a tabela A9 abaixo, o que continua a assegurar-lhe a liderança nas exportações em geral (mercadorias + serviços).
Esta ultrapassagem da UE no comércio de mercadorias é justificada pelo maior dinamismo do crescimento económico da China e dos Estados Unidos, sendo o primeiro voltado especialmente para as exportações, enquanto o aumento da procura nos Estados Unidos faz crescer as importações e agravar o enorme défice comercial do País, que a deriva protecionista de Trump ainda não conseguiu inverter.
2. A elevação da China como principal potência exportadora mundial de mercadorias (e já em 3º lugar no comércio de serviços), apenas quinze anos depois do seu acesso à OMC, testemunha sem margem para dúvida a sua imparável ascensão económica.
Se, em termos económicos, o séc. XIX foi o século britânico e o séc. XX o século norte-americano, o séc. XXI está em vias de ser o século chinês. Não admira por isso que Pequim se tenha tornado um campeão do comércio livre, enquanto Washington recua para posições protecionistas. Trata-se de uma dramática transformação geo-económica.
Como é bom de ver, o Brexit vai acentuar a perda de liderança da UE no comércio internacional em favor da China, dado o importante peso britânico no atual comércio externo da União.
quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018
Gostaria de ter escrito isto (20): A contaminação populista
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Vital Moreira
«Populists do not need to win elections to enact their policies and spread their style of politics. They can do so through the very mainstream parties whose votes they threaten to take; infecting them and living off their political blood. “Eventually,” warns Mr Bale, “the parasite may end up consuming the host.”».
(Do The Economist, desta semana)
Quando a fortuna sorri a todos, de pouco vale reinvidicar louros próprios
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Vital Moreira
1. Nos últimos meses todos os governos dos países da UE festejam e atribuem a mérito próprio o robusto crescimento económico, acompanhado de quebra do desemprego, do aumento do rendimento disponível e do consumo e do investimento, da subida das bolsas, etc. Os tempos da recessão e da contenção orçamental estão para trás, quase uma década depois. A economia europeia cresce ao ritmo mais elevado desde a crise (até a Grécia e a Itália alinham...). O mesmo sucede um pouco por todo o mundo, aliás.
Ora, sendo comum a todos os países, o bom estado da economia em cada um deles não pode obvimente ser devido primordialmente a nenhuma política económia nacional em particular, tanto mais que na UE há governos de várias orientações políticas (conservadores, centro-direita, liberais, social-democratas e mais à esquerda) com desempenhos semelhantes. De resto, com a crescente integração económica europeia e a cada vez maior abertura económica de todos os países ao exterior, as políticas económicas nacionais contam cada vez menos. O mérito tem de ser creditado sobretudo às instituições europeias, e sobretudo ao BCE, pela sua determinação na defesa da moeda comum e numa política monetária ultra-expansionista, que reduziu substancialmente os custos da financimento público, das empresas e dos consumidores.
2. Por conseguinte, os referidos resultados económicos em cada país seriam conseguidos, sem grandes variações, com qualquer outro governo. Sorte de quem está no poder para beneficiar da boa onda...
A única distinção importante, e não despicienda, é quiçá o que cada país faz com a prosperidade que a retoma económica europeia e mundial trouxe. Há quem mantenha a cabeça fria e tome precauções para o futuro, sabendo que os períodos de crescimento não duram sempre, e há quem entre em euforia autocongratulatória e volte às velhas pechas do "chapa ganha, chapa gasta", confiando levianamente em que desta vez a bem-aventurança económica e financeira veio para ficar indefinidamente.
Ora, sendo comum a todos os países, o bom estado da economia em cada um deles não pode obvimente ser devido primordialmente a nenhuma política económia nacional em particular, tanto mais que na UE há governos de várias orientações políticas (conservadores, centro-direita, liberais, social-democratas e mais à esquerda) com desempenhos semelhantes. De resto, com a crescente integração económica europeia e a cada vez maior abertura económica de todos os países ao exterior, as políticas económicas nacionais contam cada vez menos. O mérito tem de ser creditado sobretudo às instituições europeias, e sobretudo ao BCE, pela sua determinação na defesa da moeda comum e numa política monetária ultra-expansionista, que reduziu substancialmente os custos da financimento público, das empresas e dos consumidores.
2. Por conseguinte, os referidos resultados económicos em cada país seriam conseguidos, sem grandes variações, com qualquer outro governo. Sorte de quem está no poder para beneficiar da boa onda...
A única distinção importante, e não despicienda, é quiçá o que cada país faz com a prosperidade que a retoma económica europeia e mundial trouxe. Há quem mantenha a cabeça fria e tome precauções para o futuro, sabendo que os períodos de crescimento não duram sempre, e há quem entre em euforia autocongratulatória e volte às velhas pechas do "chapa ganha, chapa gasta", confiando levianamente em que desta vez a bem-aventurança económica e financeira veio para ficar indefinidamente.
domingo, 28 de janeiro de 2018
Discordo (4) - Contra a reabertura do mapa das freguesias
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Vital Moreira
A extemporânea reabertura do processo de reordenamento territorial das freguesias, efetuado pelo Governo do PSD/CDS em execução de uma imposição do programa de assistência financeira (que, aliás, se referia às autarquias em geral e não somente às freguesias....), só pode resultar na pressão de toda a gente, incluindo dentro do PS, para a reversão integral da reforma e a reconstituição de todas as freguesias extintas, o que é um grave erro. Vai sobrar a algazarra populista à custa da racionalidade técnica, financeira... e política.
Quando uma das propostas de descentralização territorial é o reforço das competências das freguesias, não se compreende a reconstituição de freguesias sem população suficiente e sem a massa crítica necessária para cumprir essas competências. Face ao despovoamento de grandes áreas do país - quer do país rural, quer dos centros da cidades -, não faz sentido voltar à fragmentação das freguesias. Em vez de reverter a reforma efetuada - quando ela funciona sem grandes problemas, como mostraram as eleições autárquicas -, melhor seria apostar na desconcentração dos serviços das freguesias, de modo a cobrir adequadamente todo o seu território.
É ilusório pensar que há soluções ótimas para as questões de ordenamento territorial das autarquias locais. Nesta questão da geografia das freguesias era importante seguir a prudência observada na pequena emenda da reordenação judicial. Mas dificilmente a demagogia política vai permitir tal contenção.
Irreversível o declínio da social-democracia?
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Vital Moreira
1. Os números do quadro acima - retirado daqui - não enganam: é evidente o declínio eleitoral dos partidos social-democratas europeus nas últimas duas décadas, traduzido em pesadas perdas nas eleições parlamentares desde 2000 em muitos países, algumas delas devastadoras (Grécia, França), com apenas duas exceções (Bulgária e Noruega). E em vários países do Leste europeu, a social-democracia praticamente não existe
Perdendo apoio eleitoral e representação parlamentar a social-democracia perde naturalmente poder governamental. Há vinte anos, os governos socialistas detinham a maioria no Conselho da União Europeia; hoje estão em reduzida minoria. As próximas eleições italianas podem trazer mais uma perda.
As perdas eleitorais dos partidos social-democratas têm beneficiado não somente os partidos à sua esquerda mas também os partidos populistas, incluindo a direita nacionalista.
2. Entre as razões geralmente apontadas - na já vasta literatura sobre o declínio da social-democracia - contam-se a recomposição económica social no países europeus, com redução acentuada do trabalho manual e da filiação sindical, base social tradicional dos principais partidos social-democratas, e a incapacidade da social-democracia tradicional para captar o apoio das novas classes médias (profissionais liberais, quadros médios e técnicos, etc.).
Há talvez outro fator não menos importante. A social-democracia cresceu politicamente na fase da luta pela edificação do Estado social na Europa (direitos dos trabalhadores e direitos sociais gerais, nomeadamente o direito à saúde, à educação, e a segurança e proteção social), de que foi protagonista. Hoje o Estado social está na defensiva, sob o desafio da sua sustentabilidade financeira. Por isso, os partidos social-democratas, quando no Governo, são levados a restringir os níveis de satisfação dos direitos sociais, contrariando a sua herança política e ideológica, o que provoca o afastamento do seu eleitorado tradicional, cativado pelo ativismo protestatário das esquerdas alternativas ou pelas ilusões salvíficas das forças populistas.
Não admira que algumas da maiores perdas foram registadas pelos partidos social-democratas que tiveram de gerir programas de austeridade ou de contenção financeira a seguir à crise da dívida pública de 2009 (Grécia, Espanha, Irlanda), como aqui se assinalou, ou que levaram a cabo reformas a favor da flexibilidade laboral e da competitividade económica (caso da Alemanha).
3. Vítima da recomposição social e da crise do Estado social, a social-democracia tarda em adaptar o seu discurso e prática política a um nova configuração social (pluriclassismo e mobilidade social) e a novas agendas políticas socialmente transversais, onde sofre a competição de outras forças políticas (ambiente e mudanças climáticas, segurança alimentar, igualdade de género, mobilidade e qualidade de vida urbana, imigração e multiculturalismo, globalização e sua regulação, etc.).
Vivemos durante muitas décadas no pressuposto de que a social-democracia era a alternativa de governo natural à direita. Hoje, porém, em muitos países, a social-democracia está inexoravelmente afastada da luta pelo poder e da governação. Ponto é saber se esse declínio é reversível...
Adenda
A posição do PS português é relativamente singular. Embora também tenha reduzido o seu score eleitoral no período assinalado, o PS foi poupado à ordália política de ter de gerir o programa de assistência financeira externa que o seu próprio Governo negociou em 2011 (cortesia da coligação entre a direita e a extrema-esquerda que o afastou do poder pouco antes...), tendo depois voltado ao governo em 2015 já com o programa de austeridade orçamental concluído e com a retoma económica iniciada e o desemprego a diminuir, apoiada no dinamismo da economia da União e em especial dos nosso principais parceiros comerciais. Eis uma conjunção astral favorável de que nenhum outro partido da família socialista beneficiou.
sexta-feira, 26 de janeiro de 2018
Observatório do comércio internacional (3): Protecionismo à moda da Trump
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Vital Moreira
1. Em vias de se transformar no campeão do protecionismo comercial entre as economias desenvolvidas, Trump anunciou "medidas de salvaguarda comercial" contra a importação de painéis solares e de máquinas de lavar roupa, o que vai prejudicar sobretudo as exportações chinesas e coreanas, respetivamente, mas atinge também todos os demais países exportadores desses produtos, que ficam sujeitos a uma tarifa suplementar na sua importação para os Estados Unidos.
Embora esta medida de proteção de emergência das indústrias nacionais esteja prevista nas regras da OMC, a verdade é que a sua aplicação está sujeita a requisitos muito exigentes, o que as torna excecionais.
2. Com esta iniciativa, os Estados Unidos passam a ser a único país desenvolvido a pôr em vigor "medidas de salvaguarda". De facto, dos 18 países que as têm em vigor (apenas 10% dos membros da OMC), nenhum integra o grupo das economias desenvolvidas, como mostra o quadro abaixo (retirado daqui). Agora passam a ter a surpreendente companhia da segunda maior economia mundial, até há pouco líder do comércio livre.
Como era de esperar, esta iniciativa protecionista suscitou uma ampla crítica, mesmo nos Estados Unidos. E a Coreia já anunciou que vai contestar essa medida na OMC, não devendo ficar sozinha. Mais um argumento para a guerra de Trump contra a OMC!
Embora esta medida de proteção de emergência das indústrias nacionais esteja prevista nas regras da OMC, a verdade é que a sua aplicação está sujeita a requisitos muito exigentes, o que as torna excecionais.
2. Com esta iniciativa, os Estados Unidos passam a ser a único país desenvolvido a pôr em vigor "medidas de salvaguarda". De facto, dos 18 países que as têm em vigor (apenas 10% dos membros da OMC), nenhum integra o grupo das economias desenvolvidas, como mostra o quadro abaixo (retirado daqui). Agora passam a ter a surpreendente companhia da segunda maior economia mundial, até há pouco líder do comércio livre.
Como era de esperar, esta iniciativa protecionista suscitou uma ampla crítica, mesmo nos Estados Unidos. E a Coreia já anunciou que vai contestar essa medida na OMC, não devendo ficar sozinha. Mais um argumento para a guerra de Trump contra a OMC!
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