sábado, 9 de fevereiro de 2019

Corporativismo (9): A Ordem fora da lei

1. Este encontro convocado pelo Ordem dos Enfermeiros com os sindicatos da profissão só pode ser o que parece - uma provocação ao Governo e à opinião pública.
De facto, a Ordem e a sua bastonária parecem não querer entender que não podem envolver-se de nenhum modo nas lutas sindicais, devendo observar a mais estrita separação e neutralidade em questões laborais. Por três razões:
   - primeiro, como organismos públicos que são, as ordens gozam de poderes públicos delegados para realizarem a sua missão pública - que é a de regular, supervisionar e disciplinar o exercício da atividade profissional, incluindo sob o aspeto deontológico - e não para defender os interesses particulares dos seus membros;
   - segundo, como dizem expressamente a Constituição e a lei-quadro das ordens profissionais, elas não podem exercer funções "de natureza sindical", o que exclui obviamente as relações de emprego e os interesses laborais, que cabem em exclusivo aos sindicatos;
   - por último, a mesma lei-quadro diz que as ordens representam o "interesse geral" da respetiva profissão, o que afasta manifestamente a defesa de interesses setoriais de grupos de profissionais (neste caso, os enfermeiros do SNS).

2. De resto, se as ordens pudessem envolver-se na defesa de reivindicações laborais (carreiras, remunerações, etc.) junto com os sindicatos, as profissões "ordenadas" gozariam de um privilégio de que as demais profissões não dispõem, ou seja, um "supersindicato" com inscrição e quotização universal e obrigatória.
Ora, numa sociedade democrática, que compreende a liberdade sindical, de filiação livre, a defesa de interesses laborais não pode caber a entidades públicas. Isso era assim no corporativismo do "Estado Novo", mas aí, para além da falta de liberdade sindical, as profissões "ordenadas" nem sequer tinham sindicatos.

3. Por isso, só peca por tardia a iniciativa do Governo de desencadear os mecanismos judiciais competentes para pôr fim a esta reiterada violação dos limites legais por parte de algumas ordens profissionais, especialmente a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Enfermeiros.
Acresce que, se se verifica que, juntamente com a sua ação ultra vires, gastando recursos naquilo em que são incompetentes, tais ordens optam por não desempenhar as missões públicas de que foram incumbidas e que justificam a sua criação - a saber, a supervisão e disciplina da profissão -, então é de equacionar a hipótese de as extinguir, devolvendo ao Estado as tarefas que este lhes delegou, mas que não são executadas.
Quando a autorregulação delegada falha, só resta voltar à heterorregulação estadual.

Adenda
Para além das inequívocas declarações e manifestações públicas da própria bastonária, esta reportagem do Diário de Notícias de sábado (acesso condicionado) mostra até que ponto tem ido a intervenção direta da Ordem na condução da greve dos enfermeiros do SNS. Não há como negar!

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Ai, o défice (7): Voltar ao défice comercial?

Estes dados do comércio externo relativos a 2018 revelam uma acentuada subida do défice comercial de mercadorias, para um máximo de 2010, devida a um aumento mais acentuado das importações do que das exportações, o que vai reduzir em igual medida o excedente da balança comercial conjunta, desde há anos alimentado pelo bom desempenho do comércio externo de serviços (cortesia especialmente do turismo). A este ritmo de agravamento da balança comercial de mercadorias, Portugal arrisca voltar, dentro de poucos anos, à situação tradicional de défice comercial, de que saiu em 2011.
Considerando que o crescimento económico abrandou em 2018, nada indica que o agravamento das importações se tenha devido principalmente ao crescimento da importação de matérias-primas e equipamentos, o que até seria virtuoso.

Adenda
Uma parte da explicação pode estar nesta notícia de que nunca os portugueses se endividaram tanto para comprar automóveis (que são em grande parte importados). O aumento de poder de compra, decorrente da política de reposição de rendimentos e da subida do emprego, viu-se pontenciado pela redução da poupança e pelo aumento excessivo do crédito ao consumo, repercutindo-se no aumento das importações, como era de temer.

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Brexit (2): Adiar para quê?

1. Depois de ter rejeitado o acordo de saída laboriosamente negociado entre o Goveno britânico e a UE, a Câmara dos Comuns aprovou, com a inesperada benção do Governo, uma resolução no sentido de pedir uma "solução alternativa" para a questão da fronteira da Irlanda do Norte. Porém, não se conhece nenhuma proposta, nem é crível que seja possivel ainda inventar uma diferente, igualmente capaz para evitar uma fronteira física entre as duas Irlandas.
Na falta de tal solução alternativa aceitável para a União, tudo se encaminha para uma saída sem acordo no próximo dia 29 de março. É certo que um "no-deal Brexit" vai necessariamente fazer criar uma fronteira entre as duas Irlandas, que Bruxelas fez tudo para evitar. Mas, a acontecer um tal desenlace, isso será inteira responsabilidade britânica, que rejeitou a solução meticulosamente negociada com a União, sem conseguir apresentar nenhuma alternativa viável.

2. Neste quadro, não se vê bem para que poderia servir o adiamento do processo do Brexit, aqui defendido por Augusto Santos Silva, para além de prolongar e agravar o estado de incerteza e de inquietação que a falta de acordo de divórcio provoca.
Por um lado, um eventual adiamento só poderia ser pedido pelo Reino Unido, o que Londres rejeita. Em segundo lugar, o protelamento só se justificaria, se houvesse em cima da mesa uma proposta nova merecedora de um segunbo exame quanto à separação - o que não é o caso -, ou se houvesse alguma credível hipótese de recuo em relação ao próprio Brexit, o que teria de passar por um novo referendo -, que não está na agenda britânica.
Se estamos condenados ao Brexit sem acordo, que ele venha na data aprazada, em vez de prolongar a incerteza e a espera. Tanto o Governo como o Parlamento britânicos ja mostraram à saciedade que não estão em condiações de sair airosamente da confusão que armaram.

Este País não tem emenda (20): Uma vergonha!

A descoberta,numa inspeção oficial, de que em 2017 corporações de bombeiros em missão de combate a incêndios florestais tinham cobrado à Proteção Civil - ou seja, ao Estado -, durante vários dias, o pagamento de muito mais refeições do que o número de bombeiros destacados - em alguns casos, 4 vezes mais! - revela que nem beneméritas organizações de longo pedigree social, que aliás já dependem essencialmente do financiamento do Estado, perdem uma boa oportunidade para meter "a mão na massa", ou seja, nos dinheiros públicos, em proveito próprio.
Uma vergonha!

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Capitalismo e democracia

Amanhã à tarde vou estar na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, a intervir neste colóquio da Associação Portuguesa de Economia Política, subordinado ao tema: "O capitalismo deixou de ser compatível com a democracia?"
Sem surpresa para quem acompanha este blogue, vou defender, não somente que a economia de mercado, desde que adequadamente regulada, continua a ser compatível com a democracia liberal, mas também que é uma condição necessária da mesma.

SNS 40 anos (7): Com "amigos" destes...

1. A Ministra da Saúde anunciou o recurso à requisição civil para parar mais uma greve dos enfermeiros às cirurgias no SNS.
A meu ver, a decisão só peca por tardia, tendo em conta o tipo de greve utilizada e os seus efeitos devastadores sobre o SNS e sobre quem precisa de cirurgias. Duvido que uma greve reincidente desta natureza fosse tolerada em muitos outros países. A greve, sobretudo em serviços de saúde, não pode ser um direito absoluto.

2. O SNS é um vítima especial do abuso das greves no setor público, sendo o setor privado muito menos afetado, apesar das vantagens da função pública (menor tempo semanal de trabalho, segurança no emprego, ADSE, etc.).
Há duas razões para isso:
- primeiro, em relação ao Estado, que não vai à falência em caso de prejuízos, nem pode encerrar os serviços públicos e despedir o pessoal, os sindicatos não temem o risco de as suas greves porem em causa a existência da empresa e os seus próprios postos de trabalho, como sucede no setor privado;
- segundo, como as greves nos serviços públicos (como transportes, educação e saúde) afetam maciçamente os respetivos utentes, em especial os de menores rendimentos, os Governos veem-se muitas vezes forçados a ceder, mesmo que as reivindicações sejam despropositadas e orçamentalmente ruinosas.
Mas é evidente que cada greve no SNS é uma ajuda ao setor privado.

3. Mesmo descontando as greves, o SNS é também é vítima de uma taxa de absentismo laboral muito superior ao setor privado. De facto, são preocupantes os números conhecidos de "baixas por doença" e, mesmo, de faltas injustificadas.
A irresponsabilidade profissional, o laxismo médico nas baixas por doença fictícia e a falta de controlo e de sanção disciplinar do absentismo injustificado explicam esta situação.

4. É evidente que, mesmo que não houvesse outras razões, estes dois handicaps endógenos bastariam para colocar o desempenho do SNS em desvantagem comparativa com o setor privado. As vítimas são obviamente os utentes, que sofrem a paragem dos serviços, e os contribuintes, que têm de suportar o sobrecusto do SNS.
Não menos importante, são estas disfuncionalidades do SNS que reforçam os argumentos em defesa de um sistema alternativo ao SNS, tendencialmente num sistema de prestação privada de cuidados de saúde financiado pelo Estado.

Imprevisível Itália (2): O elo fraco

1. Ultrapassando os piores augúrios, a Itália entrou em recessão técnica, após dois trimestres de redução do PIB.
Uma coligação de governo contraditória - entre a extrema-direita da Liga e a esquerda populista do 5 Estrelas - e um orçamento pouco credível, depois do choque com a Comissão Europeia, provocaram uma queda na confiança eonómica e a baixa do investimento.
A "geringonça" governamental que ocupa o Palácio Montecitório, a sua errática política económica e o desafio "soberanista" a Bruxelas sofrem um rude golpe.

2. Ao iniciar o ano com este mau desempenho económico, muito longe das previsões de crescimento oficiais, a Itália não vai poder cumprir as metas orçamentais quanto ao défice, a que se comprometeu com Bruxelas (mesmo se generosas), a enorme dívida pública italiana vai continuar a aumentar e os custos da dívida vão subir. Ou seja, os custos habituais da irresponsabilidade financeira de Roma.
Com estes maus dados, a Itália tornou-se mais uma vez o "elo fraco" da União Económica e Monetária. Estando a União Europeia, ela mesma, em processo de abrandamento económico - cortesia do impacto negativo das guerras comerciais alheias e do Brexit -, a recessão italiana era bem escusada.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Praça da República (8): Descentralização territorial assimétrica

1. Entre os princípios constitucionais que exigem ação do Estado, um dos menos respeitados é princípio da subsidiaridade territorial, desde logo nas relações entre o Estado central e as coletividades locais, nomeadamente os municípios. Por isso, é bem-vindo o processo de descentralização em curso, consubstanciado na respetiva Lei-quadro (Lei n.º 50/2018, de 16 de agosto) e nos decretos-leis de concretização sectorial que têm vindo a ser aprovados desde então, como, por exemplo, o que respeita à educação, hoje publicado.
Embora eu defenda há muito uma descentralização mais ambiciosa nesta área - abrangendo a gestão municipal (ou intermunicipal) integrada de todo o ensino básico, incluindo o pessoal docente, bem como a gestão a nìvel regional de todo o ensino secundário (incluindo o pessoal docente) -, é inegável que este diploma dá um importante passo em frente, confiando aos municípios (ou comunidades intermunicipais, corforme os casos) a gestão do parque e do equipamento escolar, dos transportes e da refeições escolares, do pessoal não docente, etc., em relação a todo o ensino pré-escolar, básico e secundário.

2. A minha principal reserva tem a ver com o facto de esta descentralização em prol dos municípios só abranger o território do Continente, excluindo as regiões autónomas, o que estabelece uma assimetria injustificável quanto aos níveis de autonomia municipal, entre os municípios continentais e os insulares. Ora, nos termos da Constituição, a definição das atribuições dos municípios, em todo o país, cabe induvitavelmente ao poder legislativo nacional, não às regiões autónomas, e nem sequer pode haver delegação ao poder legislativo regional.
A Lei-quadro remeteu essa matéria para leis específicas, a aprovar sob iniciativa dos parlamentos regionais respetivos - o que se pode compreender, dado que nos Açoes e da Madeira as atribuições a descentralizar já se encontram, em geral, na esfera regional -, mas não fixa, como devia, um prazo para o efeito e também não prevê a preclusão dessa iniciativa legislativa regional reservada, caso o prazo não seja observado, deixando, portanto, nas mãos das regiões autónomas a concretização da descentralização municipal no seu território. Para além disso, não me parece conforme à Constituição que a AR tenha feito condicionar o exercício do seu poder legislativo, numa matéria reservada, a uma iniciativa legislativa insular.
Autonomia regional dos Açores e da Madeira, sim, mas nem tanto!

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Terra brasilis (3): "Reserva da elite" à custa de todos

1. Aplicando a perspectiva elitista tradicional da direita conservadora, o novo ministro do ensino superior do governo Bolsonaro veio declarar que "as universidades devem ficar reservadas para uma elite intelectual", assegurando, porém, que continuarão gratuitas, como até aqui. Ou seja, os contribuntes brasileiros em geral, incluindo a maioria que não pertence à tal elite, financiam com os seus impostos o privilégio de acesso às universidades públicas...
Sucede que, como o ensino básico e secundário público deixa muito a desejar no Brasil, as possibilidades de entrar nessa elite são muito reduzidas, pelo que o acesso à universidades públicas favorece quem tem meios para frequentar o ensino pré-universitário privado! Essa enorme discriminação social no acesso à universidade só foi ligeiramente atenuada nos governos do PT, com o estabeleciimento de quotas para estudantes oriundos do ensino secundário público.
Com a nova perspectiva elitista, esta iniquidade social torna-se ainda mais gritante

2. Para agravar o privilégio e a iniquidade, é preciso dizer que no Brasil todos os graus do ensino universitário público são gratuitos, incluindo mestrados e doutoramentos, tudo à custa dos contribuintes, sem nenhuma contribuição específica dos beneficiários da formação universitária, em termos de emprego e de remuneração!
É claro que para estes, a gratuitidade é "um direito", como sempre ocorre nestas situações. Intrigante é pensar que no Brasil a esquerda alinha com este argumento para defender a gratuitidade da universidade pública, sem de dar conta de que, quanto mais gratuita a universidade for para quem a pode e deve pagar, mais onerosa fica em termos orçamentais, correndo o risco de se tornar cada vez menos universal e mais elitista.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

O que o Presidente não deve fazer (15): Deus e César

Como crente católico, Marcelo Rebelo de Sousa pode participar a título pessoal em toda e qualquer manifestação religiosa, dentro ou fora do País - como ocorreu agora no Panamá -, não estando sequer limitado por nenhuma obrigação de discrição pelo facto de também ser Presidente.
Mas, sendo Portugal constitucionalmente um Estado laico, com separação entre o Estado e as igrejas, e representando o chefe do Estado, por definição, todos os portugueses - crentes de diferentes religiões ou não crentes -,  o Presidente da República, enquanto tal, não tem religião nem pode participar nessa qualidade em manifestações religiosas, pelo que MRS deveria ser mais escrupuloso na separação das duas condições, a pessoal e a oficial, e deveria abster-se de saudar eventos religiosos em nome do todos os portugueses, por mais louváveis que sejam, como sucedeu agora com o anúncio da realização do próximo "encontro mundial da juventude" em Lisboa.
É uma questão de respeito pela natureza laica do Estado, pela liberdade religiosa de cada um e pelas diferentes opções dos cidadãos em matéria religiosa, incluindo a de não ter religião.

sábado, 26 de janeiro de 2019

Praça da República (7): Bairro Jamaica

[Fonte: aqui]
1. A violência policial contra protestos sociais, justos ou não, é sempre censurável, quando desnecessária ou desproporcional - por violação dos direitos cívicos e do código de conduta das próprias forças de segurança -, qualquer que seja a etnia dos manifestantes, só podendo qualificar-se de "violência racista" se motivada especificamente pela etnia dos seus alvos.
Nada autoriza a ver "racismo" numa ação policial mais musculada ou mesmo patentemente violenta, se ela teria sido muito provavelmente a mesma se tivesse outros alvos nas mesmas circunstâncias. Os africanos e afrodescentes não gozam de nenhuma imunidade especial contra medidas de polícia, quando justificadas pela necessidade de garantir o direito à segurança (que também é um direito humano). Por isso, salvo evidência incontornável, são precipitadas todas as acusações à polícia antes do apuramento rigoroso dos factos ocorridos no Bairro Jamaica, que obviamente impõem o devido inquérito.

2. O que tem de considerar-se social e politicamente intolerável são as condições de habitação e de vida no Bairro Jamaica, que, essas sim, revelam a profunda iniquidade no tratamento das minorias étnicas em Portugal, especialmente as de origem africana, que têm os mesmo direitos humanos a serem respeitados, sejam ou não cidadãos portugueses.
São condições de vida degradantes como aquelas que nutrem o ressentimento e a revolta etnocêntrica e que são exploradas pelo radicalismo étnico-identitário, retintamente racista (embora de sinal contrário). O racismo não tem só uma cor.

Adenda
A única justificação plausível para a invocação da cor da sua pele pelo Primeiro-Ministro no debate parlamentar sobre o incidente (que muitos consideraram despropositada), em reação à insistência da líder do CDS sobre saber se ele apoiava as forças de segurança, terá consistido em o PM ter visto nessa insistência uma tentativa de contrapor a sua responsabilidade como chefe do Governo a uma insinuada "solidariedade étnica" com os manifestantes. Mas o mais provável é que a líder do CDS quisesse somente explorar mais uma vez as contradições políticas dentro da "Geringonça", entre o Governo responsável pelas forças de segurança e os partidos da extrema-esquerda parlamentar, a protestar contra a "violência policial".

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

SNS, 40 anos (6): De universal a subsidiário?

1. Apesar de, na sua génese e configuração constitucional, o SNS ser um serviço universal e geral de provisão pública de cuidados de saúde (Estado financiador e prestador), a verdade é que ao longo destes 40 anos não cessou de minguar a sua quota no mercado de saúde em Portugal, em contrapartida da expansão do setor privado.
Foram duas as vias de desenvolvimento do setor privado:
- o crescimento autónomo de um mercado privado de saúde à margem do SNS, financiado pelos próprios utentes ou por esquemas de seguros de saúde;
- a crescente subcontratação externa de cuidados de saúde pelo próprio SNS, desde meios auxiliares de diagnóstico a cirurgias, por incapacidade de resposta do serviço público.

2. Entre as medidas que facilitaram a vida e os negócios do setor privado, em prejuízo do SNS, mencionaria os seguintes, que fui apontando ao longo dos anos:
- a manutenção da ADSE, como sistema de saúde privativo dos funcionários públicos, essencialmente assente no financiamento público de cuidados de saúde privados;
- o continuado défice de oferta do SNS em algumas áreas, como a medicina dentária e a oftalmologia, deixando terreno livre à medicina privada;
- as generosas deduções de despesas de saúde no IRS e a subsidiação dos medicamentos prescritos na medicina privada em pé de igualdade com os prescritos no SNS, que equivaleram a uma pingue subvenção do setor privado;
- a complacência com a prática sistemática da contratação externa de exames e meios de diagnóstico, com abandono ou subutilização dos recursos e serviços internos do SNS;
- o exclusivo público de formação de médicos e de especialistas, com os enormes custos financeiros envolvidos, mas sem dedicação exclusiva dos estagiários e sem exigência de nenhum período de serviço posterior no SNS, tudo se traduzindo num invetimento público na medicina privada;
- a prática de atribuição de seguros de saúde pelas próprias entidades administrativas e empresariais públicas.

3. Rejeitando teorias simplistas de "parasitização" do SNS pelo setor privado, parece evidente que este foi estimulado deliberadamente pelo Estado, como meio de reduzir a procura e os encargos financeiros do SNS.
Sem surpresa, apesar da cobertura tendencialmente universal do SNS como serviço de provisão pública, a despesa pública em saúde em Portugal (em rácio do PIB) já está abaixo da média da OCDE, enquanto a despesa privada está acima.
A manter-se esta tendência, o SNS corre o risco de tornar-se, a prazo, num subsistema subsidiário de saúde, confinado aos cuidados mais onerosos que o setor privado não cobre (oncologia, doenças vasculares, etc.) e às camadas de utentes sem meios para aceder ao setor privado. Um destino pouco condizente com a sua grandiosa consagração constitucional e com o seu percurso épico na melhoria das condições de saúde em Portugal...

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Big Ben (2): O Reino Unido já não é o que era...

[Fonte: aqui]
1. Rejeitado no Parlamento, por larga maioria, o acordo sobre o Brexit acerca dos termos de saída, laboriosamente negociado entre o Governo britânico e a União Europeia, foi vítima de uma coligação negativa, unindo contraditoriamente os "hard-brexiters" (que querem uma saída sem concessões) e os opositores ao Brexit e partidários de um Brexit mais brando.
Não parecendo haver condições para voltar atrás nesta rejeição, até porque do lado da UE não há margem para renegociar os termos do acordo, as soluções em cima da mesa são teoricamente três:
- assumir a impossibilidade de acordo e deixar consumar a saída abrupta do Reino Unido da União, na data prevista, 29 de março;
- adiar a data de saída, com o assentimento da União, e avançar nas negociações sobre a futura relação do Reino Unido com a UE depois da sua saída, tentando encontrar uma solução para a questão da fronteira entre as duas Irlandas, que tem sido o grande pomo da discórdia britânica em relação ao acordo de saída;
- suspender o processo de saída e convocar um novo referendo, seja sobre a própria saída, revogando a decisão popular anterior, seja sobre o contencioso acordo de saída.
Sendo reconhecidamente graves os efeitos de uma saída desordenada - sobretudo para parte britânica e para a relação entre as duas Irlandas -, resta saber se não serão ainda mais deletérios os efeitos económicos e políticos da prolongada incerteza do adiamento ou suspensão da saída, sem nenhuma garantia de êxito quanto ao encontro de uma solução mutuamente aceitável.

2. Parece evidente que Bruxelas pouco pode fazer para ajudar a solucionar o embróglio de Londres, que constitui uma punição autoinfligida pela leviandade e pelas divisões britânicas em todo este processo.
Tendo começado mal, com uma insensata e oportunista convocação de um referendo sobre a saída, o processo do Brexit parece encaminhar-se inexoravelmente para um desastre. Decididamente, sob o ponto de vista dos padrões de "political wisdom" e de "responsible government", que como ninguém ajudou a definir, o Reino Unido já não é que era...

SNS, 40 anos (5): O modo de financiamento do SNS

1. No modelo de SNS vigente entre nós, de tipo britânico, o financiamento público é assegurado por via orçamental, ou seja, com base nos impostos gerais, diferentemente do que sucede, por via de regra, nos sistemas de saúde de tipo bismarckiano, em que o sistema é financiado por contribuições específicas dos beneficiários, dispondo, portanto, de orçamento próprio e gestão financeira separada. É uma espécie de seguro coletivo obrigatório legalmente definido.
É, aliás, o que se passa entre nós com a ADSE, o subsistema de saúde dos funcionários públicos, embora haja também um copagamento maior ou menor dos cuidados recebidos pelos beneficiários.

2. Ora, nada impede a adoção desse modo de financiamento em relação ao SNS existente, pois a Constituição não determina o tipo de financiamento público (excluindo, porém, as taxas, como fonte de financiamento substancial, por causa da quase gratuitidade dos cuidados prestados).
Ponto é que o montante dessa nova contribuição para o SNS fosse fixado em função dos rendimentos de cada um e que a sua introdução fosse acompanhada de uma redução correspondente da carga fiscal.

3. Essa fórmula alternativa de financiamento, mediante um contribuição específica e um orçamento próprio separado do OGE - à imagem do sistema público de segurança social -, permitiria autonomizar o financiamento do sistema público de saúde em relação à política fiscal e orçamental geral de cada Governo e tornaria mais visível para os cidadãos a sua responsabilidade individual e coletiva no financiamento adequado das despesas de saúde.
Curiosamente, porém, esta hipótese nunca entrou na agenda de reforma do SNS.

SNS 40 anos (4): Um modelo alternativo?


1. Considerando que o SNS já não pode "dar conta do recado" nas atuais condições, o ex-ministro da Saúde, F. Leal da Costa (Governo Passos Coelho), apresenta neste artigo uma alternativa ao atual sistema público de saúde, que consiste no fundamental em universalizar o modelo da ADSE (o subsistema de saúde dos funcionários públicos), baseado nos seguintes traços:
- financiamento através de uma contribuição de saúde dedicada universal, de montante variável, segundo os rendimentos de cada um;
- provisão de cuidados de saúde a cargo de uma pluralidade de prestadores privados convencionados, à escolha dos beneficiários;
- remuneração dos cuidados de saúde de acordo com normas estabelecidas ou acordadas com o financiador.
No entanto, algo incoerentemente, a proposta mantém o atual SNS como subsistema autónomo residual, financiado pelo orçamento, como agora, à margem do novo sistema.

2. Trata-se no fundo de substituir o atual modelo "beveridgiano" (britânico) de SNS por uma variante do sistema de tipo "bismarckiano", que conjuga o financiamento público, por via de uma contribuição dos beneficiários, com a provisão de cuidados de saúde através de entidades, públicas ou privadas, aderentes ao sistema.
O autor sustenta que este modelo não careceria de revisão constitucional, pois respeitaria os requisitos constitucionais da universalidade, generalidade e tendencial gratuitidade (quanto à prestação concreta de cuidados de saúde). Mas é evidente que este modelo alternativo se afasta substantivamente da solução constitucional, que prevê claramente não somente o financiamento público mas também, por princípio, a provisão pública de cuidados de saúde no âmbito do SNS.

3. Resta saber se os partidos de direita - que nunca coabitaram pacificamente com o atual modelo - vão adotar esta alternativa clara ao SNS, ou se vão continuar a apostar, como tem sucedido até agora, no quadro da Lei de Bases de 1990, na sua asfixia e implosão, quer mediante a crescente privatização, por via de "subcontratação", da função de prestação do sistema público de saúde, quer através do desenvolvimento de um sistema privado de saúde alternativo (seguros de saúde), explorando as crescentes insuficiências e deficências do SNS...

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Duopólio territorial

Eis o cabeçalho do meu artigo semanal no Dinheiro Vivo de sábado passado, desta vez dedicado ao Plano Nacional de Investimentos para a próxima década anunciado pelo Governo, o qual, a meu ver, em vez de fomentar, como deveria, a coesão territorial do País, atenuando as enormes assimetrias regionais existentes, corre o risco de reforçar a concentração de população, recursos e rendimentos nas duas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, que já beneficiam do natural "efeito de escala" na atração e drenagem de gente e de empregos do resto do País.

Não dá para entender (9): Conúbio pornográfico


1. Não dá para entender porque é que, na opinião da Ministra da Justiça, a questão do segredo de justiça exige um "acordo de regime", como se não bastassem os instrumentos legislativos disponíveis, nomeadamente a punição penal da violação do segredo de justiça.
Ninguém compreende a escandalosa impunidade das sistemáticas violações do segredo de justiça, em prejuízo da investigação penal e dos direitos dos arguidos, incluindo a transmissão televisiva de vídeos com declarações de arguidos. É incompreensível que acabem em "águas de bacalhau" os inquéritos abertos pelo Ministério Público sobre o assunto. Ora, tanto é responsável o agente que transmite para o exterior material protegido, como os órgaos de comunicação que lhe dão divulgação, sabendo que ele está em segredo de justiça.

2. A liberdade de imprensa não é absoluta, não podendo prevalecer, como regra, sobre o segredo de justiça (ou o segredo de Estado), aliás constitucionalmente protegido. Limite-se o segredo de justiça ao mínimo necessário, mas façam-se cumprir as decisões judiciais que o imponham.
A ilegítima condenação sumária na praça pública, em que a imprensa tablóide serve de acusação e de juiz, não pode substituir a obrigação do Ministério Público de levar ao tribunal acusações convincentes com base em investigação escrupulosa e em provas sólidas. Dá a impressão de que ninguém está interessado em pôr termo ao conúbio pornográfico entre agentes da justiça e os média tablóide que disputam a compra de peças em segredo de justiça.

SNS, 40 anos (3): O erro da ADSE


1. Não podia concordar mais com esta opinião de Daniel Sampaio e Fredrico George sobre o erro de ter mantido a ADSE [o subsistema de saúde dos funcionários públicos proveniente do "Estado Novo"] após a criação do SNS em 1979.
E não apenas pela razão invocada ("desnatação" do SNS), mas sobretudo porque a ADSE (i) mina a universalidade e igualdade do SNS, por ser um privilégio privativo dos funcionários públicos que os afasta do SNS e (ii) obedece a uma filosofia nos antípodas do SNS, na medida em que assenta no financimento público de cuidados de saúde privados e no seu copagamento pelos beneficiários.

2. Foi com base nestes argumentos que já há 15 anos - num artigo com o título provocativo de "sobrevivências corporativas" - propus publicamente a extinção da ADSE ou, em segunda linha, a sua despublicização, terminando o seu financiamento por via orçamental (pois nessa altura os contribuintes em geral ainda financiavam o subsistema dos funcionários públicos!), cessando a inscrição obrigatória e transferindo a sua responsabilidade para os próprios beneficiários.
Não tendo nenhum Governo tido a coragem política de proceder à sua extinção - não somente pelo peso político dos funcionários, mas também pela pressão que ela acrescentaria sobre o SNS -, pelo menos foram extintos o financiamento orçamental e a inscrição obrigatória. E foi pena que, tendo o PS previsto a mutualização do serviço e a sua gestão pelos interessados, tenha depois recuado, limitando-se a criar um instituto público "de gestão participada" para o gerir.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Portucaliptal (31): Corrida ao eucalipto


1. Foi finalmente publicado o pacote legislativo sobre a floresta, incluindo a contenção do eucaliptal.
Infelizmente, passaram três anos desta legislatura, permitindo uma "corrida ao eucalipto" antes da entrada em vigor do novo regime. Nunca se plantaram tantos eucaliptos em Portugal. Com este prolongado "banquete", prevalecendo-se da lei de liberalização do eucalito de 2013 (Governo PDS-CDS), a fileira agro-industrial da celulose contornou antecipadamente a anunciada contenção (mas não reversão) legal do eucalipto.
O Governo e a maioria parlamentar da Geringonça não ficam bem nesta história.

2. Mais grave ainda é o facto de o novo regime não ser dotado de instrumentos apropriados para conter efetivamente a continuação da eucaliptização extensiva do País:
-  primeiro, as coimas para a sua violação (cujo montante não foi alterado) não são suficientemente elevadas para serem dissuasórias das grandes plantações, dado o elevado rendimento que proporcionam;
- segundo, as plantações ilegais em execuação ou concluídas não têm de ser obrigatoriamente embargadas ou removidas (como devia ser sempre o caso), sendo essa somente uma possiblidade deixada ao poder discrionário da administração florestal, com todo o risco de decisões de conveniência e de complacência com os factos consumados.
Ora, nesta matéria não deveria haver margem para "o crime compensar".

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

SNS, 40 anos (2): Os males do SNS

1. Ao longo deste 40 anos do sistema público de saúde não faltaram medidas legislativas e governativas que, em grande parte, explicam a atual acumulação de dificuldades no SNS e o crescimento do setor privado dos cuidados de saúde. Apesar dos inegáveis ganhos de saúde do país, o SNS está em crescente dificuldades para realizar satisfatoriamente os objetivos que presidiram à sua criação.
Não concordo, porém, em incluir entre essas medidas duas das enunciadas neste artigo de Manuel Alegre, a saber, as taxas moderadoras (de que, aliás, estão isentos metade dos utentes) e a gestão empresarial dos hospitais públicos (que visou aumentar a autonomia, a eficiência e a responsabilidade da gestão hospitalar do SNS, embora sem o conseguir em grande medida). De registar que, ao contrário de outros críticos mais doutrinários, Alegre não menciona as PPPs hospitlares entre essas medidas negativas.

2. Pelo meu lado, entre as medidas que geraram ou reforçaram as dificuldades do SNS, incluo as seguintes, que nunca deixei de criticar publicamente:
- a autorização sem limites da acumulação de funções no SNS e no setor privado, incluindo em situações de óbvio conflito de interesses, como sucede no caso de diretores de serviço;
- o frequente recrutamento político de gestores hospitalares do SNS, em prejuízo do critério de mérito e da competência, e a falta de responsabilização dos gestores pelos resultados da gestão e pelos frustrantes ganhos de eficência;
- a cedência durante muitos anos aos interesses da indústria do medicamento e a falta de protocolos relativos à utilização de medicamentos inovadores, de preços exorbitantes;
- o elevado nível de absentismo e a frequência de greves no SNS, quando comparados com o setor privado, e a atitude corporativista de quase todas as ordens profissionais da saúde;
- a falta de avaliação de desempenho dos profissonais e dos serviços, para efeitos de remuneração e de financiamento de uns e outros, respetivamente;
- a sobrecarga do SNS com pacientes hospitalizados que não têm alta por falta de cobertura da rede de cuidados continuados ou por falta de apoio familar domiciliário;
- o subfinancimento crónico, que causa a degradação dos serviços, fomenta a contratualização externa e aumenta os atrasos nos pagamentos, agravando os preços cobrados.

3. A redução do horário semanal de trabalho nos serviços públicos das 40 para as 35 horas afetou especialmente o SNS, quer em termos de operacionalidade dos serviços, quer em termos de despesa orçamental, dada a necessidade de recrutar mais pessoal. E a complacência oficial perante a recente "greve cirúrgica" dos enfermeiros, que afetou milhares de cirurgias - e que dificilmente seria tolerada noutros países -, mostra que o SNS continua refém de chantagem sindical como nenhum outro serviço público, tanto mais que o setor privado da saúde se vê poupado a semelhantes formas de paralização, o que ajuda à sua procura.
Nada disto ajuda o SNS a cumprir a sua missão constitucional.
[revisto]

domingo, 20 de janeiro de 2019

SNS, 40 anos (1): O público e o privado

1. Quando passam quatro décadas sobre a institucionalização do SNS em 1979, cumprindo a Constituição de 1976, e quando se discute no Parlamento uma nova "lei de bases da Saúde", parece evidente que, se se mantém um amplo consenso social e político sobre a importância essencial do SNS para garantir o direito de todos aos cuidados de saúde, já são assaz diferentes as perspetivas políticas sobre a sua configuração concreta, designadamente sobre o papel do setor privado (e do setor social).
Embora essas divergências entre a esquerda e a direita venham desde o início do próprio SNS - tendo o PSD votado contra a sua criação em 1979 e decretado a sua revogação quatro anos depois -, a verdade é que, após algumas décadas de relativa atenuação, o confronto voltou a acentuar-se nos últimos anos, à medida que o SNS foi perdendo capacidade de resposta e o setor privado foi aumentando a sua oferta e os seus recursos.

2. Por minha parte, não tenho dúvidas em entender que no atual quadro constitucional, sem prejuízo da liberdade individual de recorrer ao setor privado (mediante financiamento próprio ou de seguros de saúde), o SNS é, antes de mais, um serviço universal de prestação pública de cuidados de saúde e que o Estado só deve financiar a sua prestação privada a título subsidiário, ou seja, no caso de défice de capacidade do SNS ou para beneficiar de soluções financeiramente mais vantajosas.
Por isso, não faz sentido - desde logo porque não tem cabimento constitucional - o modelo alternativo, defendido desde há anos pelo PSD e pelo CDS, de tornar o Estado essencialmente um financiador de cuidados de saúde, deixando a cada utente a opção pelos prestadores, públicos ou privados, em concorrência na conquista de utentes.

3. Já não me causa nenhuma objeção de fundo - nem, a meu ver, a Constituição impede - o recurso às PPPs hospitalares, seja para o investimento em novos hospitais do SNS que o Estado não tenha condições orçamentais para financiar, seja para proporcionar um comparador de gestão hospitalar, com vista à redução do conhecido défice de eficiência da gestão pública do SNS.
Ponto é que a equação financeira seja comprovadamente vantajosa para o SNS - envolvendo poupança de gasto público em comparação com a solução pública - e os hospitais PPP sejam sujeitos estritamente às mesmas obrigações que os hospitais de gestão pública, sob escrutínio de uma entidade de supervisão independente, como é o caso desde 2003.
Excluir as PPPs só por razões doutrinárias constitui puro dogmatismo político, que só redunda em prejuízo do SNS e dos contribuintes.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Portucaliptal (30): David contra Golias

Apesar de bem-intencionadas, estas iniciativas locais isoladas contra a eucaliptização selvagem do País dificilmente podem vir a ter algum impacto substancial, sem que o Estado faça impender sobre a fileira agro-industrial da celulose os custos das "externalidades negativas" do eucaliptização extensiva, em termos de depredação dos recursos hídricos, de redução da biodiversidade, de fealdade da paisagem, de potenciação dos incêndios florestais.
Sem reduzir a rentabilidade orçamental do eucalipto, imputando-lhe os seus custos sociais, pouco apelo podem ter as campanhas a favor das espécies autóctones, de muito menor rendimento comercial, se o Estado não financiar as suas "externalidades positivas", como devia (mas não faz...).

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

"Livres & Iguais: Os Direitos Humanos na Escola"

Já está disponível nas livrarias o livro "Livres e Iguais: os Direitos Humanos na Escola", da autoria de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, com ilustrações de Ana Seixas, que tive a honra de prefaciar, publicado pela Imprensa Nacional, no âmbito das Comemorações dos 70 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos, realizadas no ano passado (de que fui comissário).
Trata-se de uma bela e acessível introdução aos direitos humanos para o público infantil, preeenchendo uma lacuna editorial entre nós.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Big Ben (1): Brexit à deriva


1. Seria difícil, imaginar maior confusão e imprevidência política, num sistema político tradicionalmente tão responsavel e previsível como o britânico, do que o caso do Brexit.
Decidido num referendo levianamente convocado há dois anos, o processo de saída do Reino Unido da União Europeia foi vítima da irresponsabilidade do seus promotores na previsão dos problemas suscitados pela saída e da falta de consenso entre os seus apoiantes acerca dos objetivos e das modalidades da relação a manter com a União.
O resultado foi a esmagadora rejeição do acordo de saída laboriosamente negociado pelo Governo conservador com Bruxelas, mercê da oposição conjunta não somente dos que desejam a permanência na UE, mas também dos que propugnam a manutenção de uma relação estreita com a União e dos que desejam um Brexit mais radical. Uma perfeita coligação negativa e contraditória.

2. Rejeitado o acordo de forma tão esmagadora, parece dificil imaginar como pode a mesma maioria parlamentar contraditória alcançar um consenso sobre uma alternativa entre as diferentes fações, que, além do mais, respeite as "linhas vermelhas" colocadas pela União, nomeadamente a questão da fronteira entre as duas Irlandas.
A dois meses da data de saída, e a não ser que esta seja adiada, não se vê como evitar um desenlace desordenado, com as consequências devastadoras fáceis de imaginar, sobretudo do lado britânico.
A saída da União é livre, mas implica opções quanto ao que se segue, que Londres não conseguiu definir. Claramente, a elite política britânica não esteve à altura da aventura que desencadeou. Shame on them!

A insensatez da gratuidade do ensino superior

1. Eis o meu artigo de opinião no Dinheiro Vivo de sábado passado, contra a abolição das taxas de frequência ("propinas") no primeiro ciclo do ensino superior público, inopinadamente anunciada pelo Governo neste final da legislatura, manifestamente em vista das eleições no horizonte.

2. Como venho defendendo há décadas, além de ser quase irrelevante em termos de facilitar o acesso ao ensino superior, a abolição das propinas é socialmente iníqua, na medida em que põe a cargo de todos os contribuintes, incluindo os mais pobres, o financiamento do investimento individual na formação académica dos mais abastados. Neste contexto, o que surpreende é que essa medida seja adiantada por um Governo de esquerda, em homenagem acrítica ao velho mito dos serviços públicois gratuitos.

Adenda
No mesmo sentido, com argumentos adicionais, ver o clarividente texto de L. Aguiar-Conraria, "Universidades públicas para ricos", no Público de hoje.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Lisbon first (14): Os aeroportos

E pronto, com a abertura do novo aeroporto do Montijo (adaptando a atual base aérea) e mais uma ampliação da acanhada Portela (a rebentar pelas costuras), Lisboa realiza o seu sonho: ter um aeroporto no quintal e outro do outro lado da rua. Nada como ter um Governo amigo da capital...
Enquanto se gastam milhares de milhões de euros a atamancar soluções aeroportuárias de recurso concentradas em Lisboa, a país continuará sem o há muito planeado aeroporto internacional com a dimensão, os recursos e os acessos que o tráfego intercontinental hoje exigem. Madrid agradece...

Viagem a Cuba


1. Este degradado "Edifício Cuba" na Havana velha serve de metáfora para a má situação do país, 60 anos depois da revolução: depredação do riquíssimo património histórico, infraestruturas em mau estado (estradas, caminhos de ferro, portos), enome atraso tecnológico, economia ineficiente, baixo nível de vida. Uma gande deceção, mesmo para quem não esperava muito.
Aliás, o próprio entusiasmo revolucionário parece ser coisa do passado, a ter em conta as discretas comemorações oficiais dos 60 anos da tomada do poder.

2. A aposta no turismo externo, assente em concessões a cadeias hoteleiras internacionais, e a abertura interna à atividade económica de "trabalhadores autonómos" (profissões liberais, comércio, atividades turísticas, etc.) estão a criar um dualismo monetário, económico e social, cujas contradições são evidentes.
Uma crescente classe profissional independente bem remunerada, claramente destacada da generalidade da população, não vai tardar a exigir o acesso a bens e serviços que a economia cubana e as restrições às importações não proporcionam. Para já, beneficia de uma óbvia economia paralela em moeda forte, o "peso convertível", indexado ao dólar, criada para manter no país as divisas trazidas pelos milhões de turistas.

3. As exigências de maior papel do setor privado como meio de dinamização económica fazem-se sentir mesmo dentro da elite governante, e tiveram algum eco na revisão cosntitucional em curso, apesar da resistência da ortodoxia comunista.
Mas a abertura ao capitalismo pode não se traduzir necessariamente numa transição para a democracia liberal. Como mostraram os exemplos da China e do Vietnam, bem pode suceder que o progressivo abandono do comunismo no campo económico seja acompanhado da sua indefetível persistência no campo político.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Puerta del Sol (2). Na Andaluzia afastar do Governo o partido que ganhou as eleições não é antidemocrático...

1. Em 2015, a direita nacional e os comentadores com ela alinhados passaram semanas a denunciar, urbi et orbi, como "antidemocrática" a solução de governo da "Geringonça" - liderada pelo PS com apoio parlamentar dos demais partidos à sua esquerda -, por ela afastar do Governo a coligação eleitoral que tinha vencido as eleições (PSD+CDS) e o partido com maior representação parlamentar (o PSD). E ainda hoje há quem insista em recordar esse "pecado original" do atual Governo, para o tentar deslegitimar.
Embora sem sufragar politicamente a solução governativa, não me cansei de argumentar que a fórmula governativa em nada bulia com as regras de uma democracia parlamentar como a nossa, quer no plano constitucional, quer no plano democrático. Quem ganha as eleições sem maioria absoluta não goza de nenhum "direito potestativo" a governar.

2. Desde então não faltaram por esse mundo fora situações semelhantes de formação de governos de "coligação dos vencidos" contra o maior partido parlamentar, como, por exemplo, na Nova Zelândia, na Espanha e, possivelmente, na Suécia.
Agora, aqui bem pertinho, também na Andaluzia, o PSOE, vencedor das recentes eleições parlamentares regionais, vê-se afastado do governo regional, que sempre deteve, por uma coligação das direitas, incluindo o apoio do extrema-direita do Vox.
Por concidência, retiro esta noticia do Observador, que em 2015 foi um dos órgãos de comunicação mais agueridos na denúncia do "golpe antidemocrático" perpetrado pelo PS em aliança com a esquerda radical, mas que agora não vê (e bem) nenhum problema democrático na formação de uma "geringonça" andaluza, incluindo a direita radical, contra o PSOE. Mudam-se os protagonistas, muda-se a opinião...

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

"Livres & Iguais" (45): Direitos Humanos em Coimbra

Eis o cartaz da 21ª edição da pós-graduação em Direitos Humanos, de que sou codiretor (informações e inscrições AQUI).
Ministrado pelo Ius Gentium Conimbrigae / Centro de Direitos Humanos (IGC / CDH) da FDUC, o curso visa essencialmente oferecer informação e formação sobre a proteção internacional de direitos humanos, quer no plano universal, quer no plano europeu, assim como a sua refração no plano nacional.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Exceção portuguesa

1. Este gráfico, retirado de um estudo da The Economist, mostra o impressionante declínio do tradicional bipartidarismo no sistema representativo de vários países da União Europeia, traduzido numa baixa acentuda da soma da votação dos dois principais partidos, especialmente na França, nos Países Baixos e na Itália.
Esse panorama foi abalado pelo aparecimento de novos partidos e substituído por uma acentuada fragmentação partidária dos parlamentos, levando a novas fórmulas governativas, incluindo "geringonças" politicamente assaz incongruentes, como na Itália. Nada indica que esta tendência fique por aqui, como mostram os indicadores de intenções de voto por exemplo em Espanha.

2. Neste contexto, não deixa de ser surpreendente a exceção portuguesa, onde os dois principais partidos tradícionais (PS e PSD) continuam a somar mais de 60% das intenções de voto, onde o número de partidos com representação parlamentar direta se fica pela meia dúzia e onde várias famílias políticas europeias continuam sem expressão política autónoma entre nós, como os verdes, os liberais e a direita nacionalista.
Para além de não ser fácil a explicação para esta notável estabilidade do sistema partidário, também não se pode antecipar por quanto tempo ela se vai manter. Resta saber se as eleições europeias e parlamentares de 2019 vão trazer alguma novidade nesse aspeto.