terça-feira, 14 de abril de 2020

Pandemia (2): Às avessas

1. No meio da tensão criada pela pandemia, há o risco de medidas precipitadas, insuficientemente justificadas e debatidas, só para corresponder a queixas de grupo.
Tal me parece ser o caso da recente lei do perdão genérico de penas de prisão (e outras medidas de saída da prisão). Não tendo a lei um preâmbulo justificativo, que devia ter, temos de nos basear na justificação dada pelos proponentes da lei, que invocam a necessidade de poupar os presos ao risco de contágio da pandemia.

2. Ora, para além das dúvidas não especificadas do Presidente da República quanto a algumas soluções concretas, ao promulgar a lei, a minha dúvida tem a ver com a própria lógica da lei.
A questão é a seguinte, ecoando um bem argumentado artigo de opinião: não era mais fácil defender os presos da pandemia dentro da prisão, mediante testes generalizados e pronto isolamento e tratamento dos eventuais casos de contágio, do que enviá-los para fora, aliás sem testes prévios, sujeitando-os ao risco do contágio familiar ou comunitário, sendo certo que alguns deles nem sequer têm família para onde regressar?

3. Parece-me haver um incongruência de base, entre sujeitar o país a confinamento domiciliário generalizado, e depois "desconfinar" justamente aqueles que estão mais confinados, enviando-os para ambientes muito menos restritivos, onde correm mais riscos do que na prisão.
Era preciso uma justificação mais sólida para afastar as possíveis acusações malévolas daqueles que podem argumentar que esta medida foi sobretudo uma boa ocasião de aliviar a sobrelotação das prisões entre nós...

Não concordo (15): Excessos

1. Não alinho na campanha pública que por aí vai contra a UE em geral, por alegada insuficiência de medidas de financiamento do combate à pandemia e aos seus efeitos económicos e sociais, nem na diabolização de certos Estados-membros, apontados como especiais culpados por essa insuficiência, nomeadamente a rejeição dos chamados eurobonds (obrigações de dívida mutualizada).
Mesmo se a UE devesse fazer mais, como penso, não se justificam os excessos críticos, com alguma pulsão populista pelo meio. E quanto aos referidos alvos especiais, Países Baixos à cabeça, provavelmente faríamos o mesmo, se tivéssemos os constrangimentos políticos, sociais e culturais que eles têm. Em todo o caso, numa união política, baseada na confiança recíproca, as campanhas públicas condenatórias de uns contra os outros fazem mais mal do que bem. As reuniões das instituições da União são o local apropriado para terçar armas.

2. Se achamos que a União nos está a desamparar, experimentemos só pensar como seria a nossa situação, se estivéssemos fora da União e da zona euro.
Estando dentro, beneficiamos do enorme programa de compra de dívida pública do BCE e dos empréstimos a baixo juro e com condicionalidade limitada do Mecanismo Europeu de Estabilidade financeira, assim como de financiamento suplementar do Banco Europeu de Investimentos, instrumentos que, somados, devem cobrir a maior parte das necessidades de financiamento adicionais resultantes da crise pandémica. Se a isto juntarmos os programas da Comissão Europeia, financiados pelo orçamento da União, é assaz desproporcionado o aranzel crítico que por aí vai.
Se Portugal estivesse fora da União e da zona euro, neste momento os seus custos de acesso ao mercado da dívida já teriam disparado e o País poderia ver-se na emergência de ter de recorrer ao FMI, como está a suceder com vários países, com juros elevados e condicionalidade intensa.

3. Penso que a pandemia poderia ser uma ocasião oportuna para lançar, a título experimental e em escala reduzida, um fundo de dívida mutualizada ao nível da União, para financiar diretamente programas de resposta dos Estados-membros, sem passar pelo seu orçamento nem pela sua dívida.
Mas não posso deixar de compreender a oposição de princípio dos países que entendem que, não sendo a UE uma união orçamental nem tendo recursos fiscais próprios, as obrigações europeias seriam um instrumento de "transferência financeira" transfronteiriça, com elevado "risco moral", o que seria "invendável" ao seus contribuintes. E não me impressiona a aparente mudança de posição da Alemanha a este respeito, provavelmente mais cínica do que sincera, contando com o eventual chumbo do Tribunal Constitucional Alemão.

Adenda (15/4)
Revejo-me em geral neste artigo no Público de hoje.

"We, the People": Prémio merecido


1. Portugal subiu ao sétimo lugar no ranking global da qualidade das democracias liberais, publicado anualmente pelo prestigiado instituto V-Democracy da Universidade Gotemburgo na Suécia, tendo em conta as cinco variáveis consideradas por esse índice (eleições, liberdades, igualdade, participação e debate democrático).
Num índice em que nos primeiros dez lugares aparecem oito países europeus, à frente de Portugal só estão, por esta ordem, a Dinamarca, a Letónia, a Suécia, a Suíça, a Noruega e a Bélgica. É o justo prémio por uma consolidação democrática bem conseguida, no quadro da CRP de 1976. E é um orgulho para todos quantos deram o seu melhor para este resultado ao longo destas quatro décadas e meia.

2.  Dos países da União Europeia, vários deles mal colocados, pela primeira vez aparece um país, a Hungria, que surge classificado como autocracia, fora portanto da família das democracias, o que compromete toda a União e vem reforçar a posição daqueles que têm exigido a sujeição desse país ao procedimento do art. 7º do Tratado da União.
Cabo Verde é o mais bem classificado dos membros da CPLP, ficando entre os primeiros trinta países, o que merece o devido reconhecimento, enquanto o Brasil surge num pobre 60º lugar. Sem surpresa, a Guiné Equatorial aparece no fundo da tabela, entre as piores autocracias do mundo, o que é uma vergonha para a organização.
Com a autoridade que lhe dá o seu elevado ranking democrático, Portugal deveria liderar a pressão da CPLP para a transiação democrática na Guiné Equatorial.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Lisbon first (22): Até no SNS?


Dá para perguntar porque é que a taxa de casos fatais da epidemia na Região Centro (~5%) é muito superior à média nacional (~3%) e mais do dobro da da região de Lisboa (~2,5%).
Não procede a explicação já aventada dos lares de idosos, pois não há razão para pensar que há mais no Centro do que noutras regiões. A explicação mais óbvia - que somente uma investigação oficial pode afastar - só pode estar na concentração de meios do SNS (testes, ventiladores, etc.) em Lisboa e o correspondente défice na Região Centro.
A ser assim, é caso para, mais uma vez, concluir que é uma fatalidade estar longe do poder, mesmo quando está em causa o direito à saúde individual e à segurança sanitária coletiva.

Pandemia (1): Necessariamente temporária

1. Perguntam-me o que penso sobre o confinamento obrigatório decretado desde há semanas, por causa da pandemia.
Julgo que, apesar dos enormes custos económicos, a "quarentena" se impunha quando a epidemia começou a disparar, para travar o seu crescimento, a fim de evitar o colapso do SNS, com consequências dramáticas em termos de mortes e de caos social. Além disso, não havia alternativa ao confinamento, por insuficiência de meios de teste para detetar a tempo focos de infeção e de "transmissão comunitária" e por falta de máscaras para uso em ajuntamentos pessoais.
Opção política justa e oportuna, portanto, em que felizmente convieram PR, Governo e AR, incluindo a oposição. Foi um bom teste da maturidade da nossa democracia, num momento crítico.

2. Agora, porém, que a curva de crescimento da epidemia está a aplanar, mostrando o êxito do  isolamento social decretado, que o número de testes está aumentar e que já há máscaras disponíveis para o público, penso que é de equacionar um retorno programado à normalidade económica, ressalvados os grupos de risco e os locais de concentração de infeção, assim como a aplicação de normas adequadas de conduta social, entre as quais a proibição de ajuntamentos e o uso obrigatório de máscara em espaços fechados.
Não se deve prolongar a paralisação da economia para além do necessário, pois os seus custos económicos, financeiros e sociais podem ser abissais.

3. Questão delicada é a proposta de controlo eletrónico, via telemóvel, do isolamento dos infetados não internados e do rastreamento dos seus contatos anteriores para despiste de contágio.
Pessolmente, sou a favor - sem ignorar a delicadeza da questão sob o ponto de vista da proteção de dados pessoais nem o fundamentalismo que vigora entre nós sobre o assunto (aliás, alimentado pela CNPD) -, desde que com as devidas cautelas, designadamente o controlo por entidade independente, o sigilo dos dados apurados e a garantia de destruição dos dados recolhidos depois de tudo passado.
Mas, tal como defendi várias vezes a possibilidade de internamento compulsivo de pessoas portadoras de doenças altamente contagiosas, a fim de defender a saúde pública e o direito à saúde de terceiros (o que carece de revisão constitucional), também me parece justo, nas mesmas circunstâncias, a vigilância eletrónica passiva dos movimentos dos infetados antes de ser detetada a sua infeção.  Não há direitos absolutos, sobretudo quando afetem os direitos alheios.

Falsas boas ideias

1. Era de esperar que os tempos de crise que correm sejam propícios à proliferação de falsas boas ideias, como a que hoje defendem dois académicos no Público, propondo um "rendimento básico incondicional" universal, de caráter temporário (seis meses) e reembolsável, no valor mensal de 450 euros (reduzido a um terço no caso de crianças e jovens), a ser financiado pelo Estado e pela UE.
Pelas suas próprias contas, a medida custaria, só na parte nacional, cerca de 20 000 milhões de euros, o que revela o nível de leviandade política da proposta, pois não se vê como é que o Estado poderia financiar tal custo sem agravar seriamente o nível de endividamento público (que já vai aumentar muito por causa da crise) nem como é que a UE poderia embarcar nela.

2. Pior do que isso, não se vê que razoabilidade pode assistir a tal proposta de distribuir um subsídio a toda a gente, independentemente da sua situação financeira.
É evidente que muita gente vai perder rendimento no setor privado, designadamente os trabalhadores que vão ficar desempregados e os prestadores de serviços que perderam clientes e as empresas em geral que vão ser afetadas pela recessão económica que se vai seguir. Mas que sentido faz atribuir tal subsídio temporário aos funcionários públicos (como os próprios autores!) ou aqueles cujo rendimento em nada foi afetado, como os pensionistas e trabalhadores que mantiveram o emprego? Sucede que estes até tiveram redução de despesas durante a crise (combustível, restaurantes, viagens, etc.)!
Francamente, há ideias que não valem o tempo de as refutar!

Ilusões indevidas

1. António Costa não pode ser sincero quando declara que «Ficaria muito desiludido, se tivéssemos de chegar à conclusão de que só podemos contar com o PCP e com o BE em momentos de vacas gordas».
De facto, não há nenhum motivo para desilusão, pela simples razão de que era manifestamente indevida tal ilusão. É evidente que para a extrema-esquerda, governar é aumentar a despesa - e não só a despesa social -, independentemente das conjunturas. A Geringonça só foi possível porque o robusto crescimento económico, a redução dos encargos da dívida pública (cortesia do BCE) e o corte no investimento público permitiram libertar muitos milhões de euros por ano para satisfazer as insaciáveis reivindicações orçamentais daqueles dois partidos.

2. Infelizmente, com a pandemia, o Eldorado orçamental acabou. Tal como outros países, Portugal vai sair desta crise sanitária - mesmo que ela não dure muito mais tempo - não somente com uma grave crise económica, mas também com um enorme défice orçamental e uma subida exponencial da dívida pública. Vai ser dura e prolongada a tarefa de recuperar a economia e reequilibrar as contas públicas, o que não pode deixar de passar pela frugalidade da despesa pública, tanto mais que agora não há margem para o "enorme aumento de impostos" de 2012, que não foi revertido.
Imaginar que se poderia contar com os dois partidos da "esquerda da esquerda" para cooperar nessa tarefa seria uma ilusão irresponsável. Se há algum prognóstico político relativamente fácil, é o de que vamos ver novamente o PCP e o Bloco na oposição contra a "nova política de austeridade"...


domingo, 12 de abril de 2020

Regresso

Peço desculpa aos meus leitores por esta longa interrupção, mais de dois meses, do Causa Nossa, devida a uma acumulação de compromissos editoriais inadiáveis.
Aliviada essa pressão, anuncio que vou regressar.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Não dá para entender (16): A honra perdida de Rui Rio

1. O líder do PSD apostou decididamente em desbaratar a sua antiga aura de rigor nas finanças públicas, em aras à prodigalidade orçamental. Depois do tristemente célebre episódio da recuperação do tempo de serviço dos professores, Rui Rio avança agora, no debate sobre o orçamento do Estado para este ano, com um conjunto de propostas de aumento da despesa e de corte na receita, incluindo uma irresponsável descida do IVA na energia, que poriam em causa o equilíbrio das contas públicas.
Num e noutro caso o PSD coloca-se em convergência com a extrema-esquerda parlamentar, que, porém, nunca sacrificou nada à disciplina orçamental. Além disso, esses partidos não defendem a descida de impostos, como o PSD faz, pelo que são menos incoerentes quando propõem aumento da despesa..

2. Sempre considerei que, mesmo na oposição, os partidos de vocação governamental devem comportar-se como se estivessem a governar, sob pena de incoerência e oportunismo político, que os eleitores tendem, justamente, a penalizar.
Ora, é óbvio que, se estivesse no Governo, o PSD não tomaria tais posições; pelo contrário, denunciá-las-ia como irresponsáveis -, que efetivamente são...

Concordo (12): Defesa da saúde pública

Estou de acordo com esta proposta de Frederico George, hoje no Público, de permitir constitucionalmente o internamento obrigatório de pessoas por imperiosas razões de saúde pública (e obviamente com prévio controlo judicial, ou imediato, em caso de urgência), o que hoje não está contemplado na lei, por impedimento constitucional.
Há muito tempo que defendo essa posição, entre outras necessárias microalterações da Constituição (como, por exemplo, o acesso dos serviços de segurança aos "metadados" de comunicações pessoais, a participação dos militares em operações de segurança interna).

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Concordo (12): As 35 horas na função pública

Não podia concordar mais com a afirmação do Presidente da Confederação do Comércio, quando defende que «as 35 horas (na função pública) rebentaram com muitos serviços públicos».
Como tive ocasião de escrever aqui várias vezes, essa redução de tempo de trabalho não acarretou  somente um grande défice de trabalhadores em certos setores (especialmente na saúde) mas também obrigou a um substancial gasto suplementar em recrutamento de novo pessoal para colmatar as brechas. Portanto, o resultado foi pior serviço público e mais despesa pública, que vamos continuar a suportar a título permanente, sem esquecer o maior espaço para acumulação de funções no setor público e no privado.
Além disso, mas não menos importante, essa redução criou (mais) uma óbvia divergência com as relações de trabalho no setor privado, quanto a tempo de trabalho e remuneração, reforçando a ideia de privilégios da função pública.

Conferências & colóquios (7): Sobre o interesse público

Amanhã vou estar aqui, nesta conferência organizada pelo Conselho Económico-Social (CES) sobre a Administração Pública, cabendo-me versar o tema da Administração e interesse público. 
Vou abordar em especial as situações em que a Administração pública deixa de prosseguir o interesse público definido na lei, seja por ação, seja, as mais das vezes, por omissão.

sábado, 18 de janeiro de 2020

Não concordo (14): Ideia insensata

Parece-me assaz insensata, política e financeiramente, a ideia de do Ministério de Educação, ontem anunciada no Público (reservado a assinantes), de permitir que os professores do ensino básico e secundário deixem de dar aulas aos 60 anos, passando a desempenhar outras tarefas nas escolas até à aposentação, mais de seis anos depois.
Primeiro, uma tal medida não deixaria de desencadear a reivindicação de solução idêntica para outras profissões, tanto ou mais exigentes (enfermeiros e auxiliares de saúde, cuidadores de instituições sociais, etc.). Segundo, ela criaria mais uma regalia em relação aos professores do setor privado, cujos empregadores não estão seguramente disponíveis para seguir o mesmo caminho.
Por outro lado, a não ser que se anteveja uma situação de excesso de professores, a dispensa das tarefas letivas depois dos 60 anos teria de ser compensada com o recrutamento de mais professores, com o consequente aumento de despesa. Tendo em conta o inevitável aumento de encargos resultante da retoma das progressões, cabe perguntar como é que vai haver orçamento para isso mais uma despesa dessas.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Lisbon first (21): "Preço de amigo"

O relatório do Tribunal de Contas que denuncia a venda de património da Segurança Social ao município de Lisboa, por ajuste direito, a preço de desconto, com substancial prejuízo financeiro do Estado, vem revelar mais uma vez o tratamento privilegiado que aquele recebe do Estado, como se não bastassem as enormes vantagens, de toda a ordem, que derivam do facto de Lisboa ser a capital do país (sede de órgãos de soberania e de grande parte das instituições públicas e de grandes empresas privadas, aeroporto e porto, etc.).
Decididamente, a proximidade do poder central rende...

Concordo (11): Transparência das eleições partidárias

1. Concordo com este artigo de Rui Tavares no Público de hoje (acesso reservado a assinantes) sobre a necessidade de conferir transparência e de regular o financiamento das eleições partidárias.
Se na sua ação externa e na sua participação nas eleições os partidos estão legalmente sujeitos a importantes limitações de financiamento, assim como à obrigação de prestação de contas, não se compreende que o mesmo não suceda quando se trata da eleição dos seus líderes em eleições diretas, assaz dispendiosas. Quem paga?

2. É tempo de acabar com a falta de regulação e controlo público dessa matéria.
Além de candidatos a primeiro-ministro, os líderes partidários decidem em geral as listas nas eleições parlamentares e a composição da respetiva representação parlamentar. Os partidos políticos não são organizações privadas como as outras, pelo que não tem aplicação aqui o princípio da autonomia e da autorregulação privada.

Bicentenário da Revolução Liberal (1820-2020) (9): As primeiras eleições constitucionais

1. Um dos objetivos da Revolução Liberal, há dois séculos, era o estabelecimento de um poder político representativo, baseado em Cortes permanentes, regularmente eleitas (o parlamento). E o mesmo valia para o poder local, com a eleição das câmaras municipais.
Dois anos depois, ainda antes da aprovação final da Constituição, em 23 de setembro de 1822, foram aprovadas as leis eleitorais para as Cortes ordinárias e para as câmaras municipais, estabelecendo a eleição direta das Cortes e das câmaras municipais, por sufrágio alargado; e as eleições parlamentares tiveram lugar ainda em agosto, antes do fim dos trabalhos constituintes.

2. É esta revolução política, tanto a nível nacional como a nível local, que é analisada em mais um capítulo do "folhetim" que desde há mais de dois anos tenho vindo a publicar, em coautoria com José Domingues, todos os dois meses na revista JN História (nº de dezembro passado), como mostra a ilustração acima.
Concluiremos a série no próximo número (fevereiro), justamente quando se iniciam no Porto as comemorações do bicentenário da Revolução de 1820, que a Constituição e essas eleições de 1822 fizeram cumprir.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Campos Elísios (4): Nem sustentável nem justo

1. Os sistemas públicos de pensões de natureza contributiva, sejam minimalistas, sejam super generosos, devem obedecer a duas caracteristicas: (i) serem financeiramente autossustentáveis, ou seja, financiados pelas contribuições específicas para o sistema e (ii) serem equitativos, tratando de forma igual as situações idênticas, sem grupos de pensionistas privilegiados.

2. O sistema de pensões francês nem é uma coisa nem outra.
Por um lado, sendo um dos mais generosos e onerosos sistemas de pensões existente (14% do PIB, o dobro da média da OCDE), o facto de a idade de aposentação ser baixa e o nível das pensões ser elevado, torna o sistema uma "bomba orçamental" a prazo, à medida que a longevidade aumenta e que o rácio contribuintes-pensionistas se degrada; por outro lado, havendo dezenas de subsistemas setoriais de pensões com sensíveis diferenças entre eles, o sistema carece de um mínimo de consistência e de equidade.
Por isso, a reforma proposta por Macron é de todo em todo justificada, garantindo, por um lado, a igualdade de condições e a mobilidade interprofissional e assegurando, por outro lado, a solvabilidade do sistema a prazo, ainda que salvaguardando os direitos adquiridos até à data.

3. Numa democracia representativa, as políticas devem ser definidas e executadas por quem tem a legitimidade e a obrigação de defender os interesses gerais e não pelas manifestações de rua dos que defendem os seus interesses de grupo. Quem deve mandar numa democracia são os eleitores e não minorias ativistas em defesa dos seus próprios privilégios
Espero que Macron resista e que a reforma vá em frente.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Em seara alheia: A disputa pela liderança no PSD

1. Não é invejável a situação do PSD, depois de sucessivas e pesadas derrotas eleitorais desde que foi afastado do Governo em 2015, carregando a cruz do mandato da troika que em 2011 precipitadamente quis assumir, libertando o PS para a oposição. Enquanto essa memória política permanecer e a situação económica e financeira do País continuar favorável à governação socialista, o PSD não tem nenhuma chance de recuperar.
Nenhum líder pode modificar isso substancialmente, mas pode não ser indiferente para o futuro do próprio partido e para duração e penosidade da travessia no deserto. Por isso, se eu fosse do PSD apoiaria provavelmente Rui Rio, não por ele ser um líder apelativo ou inspirador (que não é, manifestamente), mas por pensar que ele tem razão quando defende que uma inflexão do Partido à direita favoreceria ainda mais o PS e que um partido de vocação governativa em Portugal só pode ganhar eleições e governar, se conseguir mobilizar o eleitorado do "centro móvel" que decide as eleições entre a esquerda e a direita e mobilizar o seu apoio político ao governo.

2. Dito isto, penso que o principal handicap da liderança de Rio é a falta de espírito agregador e congregador da unidade do Partido, tendendo, pelo contrário, a afastar conflituosamente os adversários internos, como se viu na composição das listas de deputados.
Ora, os partidos de vocação governativa são, por natureza e necessidade, partidos abrangentes (catch all parties), de largo espectro, onde têm de saber coabitar diversas sensibilidades políticas. Tal como o PS tem sabido federar desde uma ala esquerda que compete com o BE até aos defensores de uma social-democracia liberal ao centro, também o PSD deveria igualmente procurar abarcar todo o quadrante desde o centro à direita do mapa político, disputando o primeiro ao PS e o segunda ao CDS e à novel Iniciativa Liberal .
O problema, porém, é que Rui Rio não parece disponível para acomodar os que dentro do PSD se distanciam da sua visão centrista do Partido, forçando-os a um exílio interno ou a ceder à tentação de seguir outros caminhos, o que, a ocorrer, além de enfraquecer o PSD, só contribuiria para fragmentar ainda mais a paisagem política nacional e tornar o País político cada menos menos previsível.

3. Costumo dizer que os líderes de partidos de vocação governativa, depois de eleitos, mesmo sem abdicar da sua opção estratégica, se devem assumir como presidentes de todos os militantes, incluindo os vencidos na contenda eleitoral interna, devendo contar com todos sem anátemas nem exclusões sectárias. De resto, o facto de os candidatos vencidos tenderem a autoafastar-se facilita essa tarefa de reunificação partidária.
Penso, porém, que, considerando a idiossincrasia e o temperamento do seu atual e provável futuro líder, os militantes do PSD não têm grandes razões para depositar excessiva esperança numa perspetiva dessas.

Free and fair trade (12): Troca justa

1. Concordo com a candidata Democrata à presidência do Estados Unidos, Elisabeth Warren, quando ela sustenta, em declarações ao New York Times, que «The idea that trade is just about tariffs is just old 20th century. Trade today in the 21st century is about regulation. It’s about who’s going to have to meet what regulatory standards.»
No entanto, o único argumento de os paises que se preocupam com direitos laborais e standards ambientais e direitos dos consumidores (como, por exemplo, a UE) têm para convencer outros países menos exigentes é oferecer-lhes uma baixa de tarifas de entrada nos seus mercados, em troca do compromisso de elevação dos níveis de regulação laboral e ambiental. Infelizmente, apesar dos progressos nessa direção por parte dos EUA e da UE, não se tem sido suficientemente exigente nessa troca.

2. Mas é para isso que devem servir hoje os acordos comerciais internacionais, como, de resto, a União vai ter uma excelente oportunidade de mostrar nas negociações que se seguem com o Reino Unido, sobre as relações comerciais após o Brexit.
Se os britânicos querem manter livre entrada no mercado da União, devem comprometer-se a manter os seus requisitos regulatórios (laborais, ambientais, etc.) alinhados com os da União.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Bicentenário da Revolução liberal (1820-2020) (8): Grande programa de comemorações

Foi hoje lançado publicamente na câmara municipal do Porto o programa de comemorações da revolução liberal de 1820, que vão decorrer de fevereiro a dezembro do corrente ano. Trata-se de uma programa ambicioso e diversificado, que associa ao município várias outras instituições públicas e privadas. Um programa à altura do significado desse grande momento de viragem da história de Portugal.
Tendo sido o berço da Revolução, o Porto não podia deixar os seus créditos por mãos alheias. Honra-me, como cidadão e como investigador da história constitucional portuguesa, participar nestas comemorações.
O programa pode ser consultado online aqui: https://1820.porto.pt/ 

Adenda
Um boa notícia do evento de ontem no Público de hoje.

sábado, 28 de dezembro de 2019

Não é bem assim (10): Poderes do Presidente

1. Na sua crónica de hoje no Expresso, Miguel Sousa Tavares escreve que «os nossos pais fundadores da Constituição de 76 quiseram um sistema semipresidencial que, não dando ao Presidente o papel principal, lhe deu, todavia, muito mais poderes dos que tinha anteriormente, na Constituição do Estado Novo de 1933».
Mas não é assim.
A Constituição de 1933 consagrava uma espécie de "presidencialismo governativo indireto", visto que o Governo, chefiado pelo Presidente do Conselho [de Ministros], retirava a sua legitimidade política do Presidente da República, que o nomeava e demitia livremente e que presidia ao Conselho de Ministros, ao contrário do que sucede na Constituição de 1976 (depois da revisão constitucional de 1982), em que o Governo só depende da confiança política da AR, e não do PR, e em que o PR não pode nomear livremente nem demitir livremente o Governo (pelo que, a meu ver, não faz sentido caracterizar o sistema de governo como "semipresidencialista").

2. É certo que, no sistema do "Estado Novo", a Constituição se transformou num instrumento puramente "semântico", sem comando sobre a "realidade constitucional", desde logo no que se refere ao sistema de governo, pois foi o chefe do Governo (Salazar e depois Caetano) que assumiu as rédeas do poder, à margem do PR (cujos titulares o primeiro escolheu livremente), esvaziado de poder, ao contrário do estabelecido na Constituição.
Mas se se trata de comparar poderes constitucionais, então o PR da Constituição de 1976 não tem nem de longe nem de perto os poderes que a Constituição de 1933 atribuía ao Chefe do Estado. Felizmente, direi eu...

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

SNS, 40 anos (20): A ideologia custa dinheiro

«A produção de cuidados de saúde no âmbito da PPP do Hospital de Vila Franca de Xira permitiu ao Estado obter uma poupança estimada de 30 milhões de euros entre 2013 e 2017, face aos custos em que incorreria, em média, se aquela produção fosse realizada por hospitais do SNS de gestão pública, comparáveis, no mesmo período».
Esta frase consta do relatório de auditoria do Tribunal de Contas à gestão do hospital de Vila Franca de Xira, unidade do SNS em gestão privada (PPP), hoje referido no jornal Público. Todavia, apesar dessa poupança, esse regime vai ser descontinuado no final do contrato, em 2021, por decisão do Governo tomada na legislatura anterior, sob pressão do anátema ideológico do PCP e do BE contra as PPP no SNS.
Lementavelmente, continua a não se querer reconhecer a evidência de que uma dos principais falhas do SNS decorre da ineficiência da gestão pública, que onera os seus elevados custos. Assim, não há milhões de euros que cheguem para alimentar a voracidade da ideologia.

domingo, 15 de dezembro de 2019

Praça da República (27): Sistema de governo

Costumo dizer aos meus alunos de ciência política que o melhor indicador para identificar os sistemas de governo nos países da UE é olhar para a composição do Conselho Europeu, que reúne os mais altos responsáveis internos pela política europeia.
Ora, é fácil ver que, com exceção de quatro países, todos os demais estão representados pelos seus primeiros-ministros (ou chefes de governo com outro nome), indesmentível indicador de um sistema de governo parlamentar. As citadas exceções são Chipre (sistema de governo presidencialista, onde é o Presidente que dirige o governo), mais a França, a Lituânia e a Roménia, países com diversos graus de "semipresidencialismo" (função governativa compartilhada entre o PR e o primeiro-ministro), onde o Presidente da República tem a seu cargo pelo menos a política externa e/ou as relações com a UE.
É óbvio que Portugal não se conta entre estes últimos países, porque entre nós o PR não exerce quaisquer funções governamentais, nem o Governo é responsável politicamente perante ele, não havendo, portanto, nenhum traço do chamado semipresidencilismo, apesar da opinião em contrário de muitos observadores.

Pobre língua (14): "Melhor" e "mais bem"

Na sua habitual coluna no Público de ontem (acesso limitado a assinantes), Vasco Pulido Valente insurge-se contra o frequente erro da substituição de "mais bem" por "melhor", a acompanhar particípios passados, no discurso público de jornalistas, comentadores e titulares de cargos públicos (por exemplo, "melhor preparado", "melhor construído", "melhor apresentado", etc.).
Infelizmente, trata-se somente de um exemplo entre muitos do estropiamento quotidiano da Língua, quer em termos gramaticais, quer de pronúncia, por quem tem a obrigação de a usar de forma culta e que nos meios de comunicação banaliza e torna aceitáveis tais erros. Já que, pelos vistos, a escola deixou de ensinar devidamente o Português, defendo há muito que quem tem acesso regular ao espaço público, a começar pelos jornalistas e comentadores, deveria passar por um teste de conhecimento da Língua...

Adenda
Um leitor refere apropriadamente outros casos de erro recorrente, como a frequente troca de "ir ao encontro de" por "ir de encontro a", o uso de "término" em vez de "fim" ou "termo" (de um prazo). Outro leitor condena, com toda a razão, a invasão de anglicismos enganadores, como "evidência" (em vez de indício, prova), "santuário" (em vez de refúgio), "endereçar" um assunto (em vez de abordar, tratar de), "entregar" (em vez de cumprir, mostrar desempenho), "taxa" e "taxar" (em vez de imposto e de tributar), "realizar"  (em vez de aperceber-se de, dar conta de), entre muitos outros.
[revisto]

sábado, 14 de dezembro de 2019

Concordo (9): Poderes ocultos

Concordo com esta proposta do PAN sobre a declaração dos titulares de cargos públicos acerca da sua pertença a "instituições discretas" como a maçonaria e a Opus Dei, pela simples razão que desde há muito defendo essa ideia, como, por exemplo, neste post de 2014. É bom saber que tenho companhia...
Na verdade, penso que integração de "irmandades" com alto grau de solidariedade pessoal entre os seus membros constitui um risco sério para a isenção e a imparcialidade no exercício dos cargos públicos.

Não vale tudo (6): Achincalhar as instituições

Não tenho dúvidas de que numa democracia liberal o debate parlamentar é essencialmente irrestrito e insuscetível de censura, muito menos de sanção disciplinar dos deputados que se excedam verbalmente. Não é por acaso que as constituições estabelecem tradicionalmente a imunidade penal das opiniões dos deputados e que o direito à honra entre deputados se defende no próprio espaço parlamentar pelos próprios e não em sede judicial.
Mas uma coisa é o debate político entre deputados e entre partidos parlamentares, outra coisa é o vilipêndio das próprias instituições democráticas, que não deve ser consentido. Uma democracia parlamentar que consente o achincalhamento das instituições pelos próprios deputados socava a sua autoridade democrática.

Praça da República (26): "Estratégia contra a corrupção"

1. Conto-me entre os que pensam que a luta contra a corrupção não passa essencialmente por mexidas mais ou menos fundas no código penal e no processo penal, devendo ser priviligiados outros instrumentos, como a redução preventiva das situações corruptogéneas, a transparência na vida financeira dos titulares de cargos públicos, o regime de incompatibilidades e de conflitos de interesse, a obrigação de declaração de acréscimos de riqueza e a punição do seu incumprimento, etc.
Todavia, pode haver margem para aperfeiçoamentos na investigação e no processo penal relativos a esse crime, desde que excluídas algumas propostas facilitistas (e populistas) que não respeitam as "linhas vermelhas" próprias do nosso Estado de direito constitucional, entre as quais a "delação premiada", à maneira brasileira (negociada pelo Ministério Público na fase da investigação e isentando a delator de acusação e julgamento) e a criação de tribunais especiais.

2. Por isso, não me parecem de rejeitar à partida as ideias adiantadas pelo Ministério da Justiça para debate sobre o assunto, que me parecem prudentes e equilibradas, e que nem são simples "medidas de cosmética", como dizem alguns justicialistas mais exaltados, nem põem em causa as bases do nosso sistema constitucional-penal, como proclamam alguns puristas mais precipitados, que, por exemplo, veem erradamente nas ideias governamentais a porta aberta para a "delação premiada", quando a verdade é que a Ministra limitou explicitamente o "prémio de colaboração penal" à fase de julgamento (portanto, sem isenção de acusação e de julgamento e sob responsabilidade do juiz).

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Social-democracia (7): Fora de prazo

1. Além da esperada vitória dos Conservadores, renovando o seu mandato governativo com uma confortável maioria absoluta na Câmara dos Comuns (cortesia do sistema eleitoral maioritário britânico), o que mais impressiona nas eleições de ontem na Grã-Bretanha é a enorme derrota do Partido Trabalhista, que perde muitas dezenas de deputados não somente para os Conservadores mas também para os nacionalistas escoceses (que são o segundo grande vitorioso da noite eleitoral).
Esta nova derrota do Labour sob liderança de Corbyn confirma o insucesso da extemporânea opção esquerdista que ele imprimiu ao partido - como, de resto, aqui se antecipou na altura numa expressão daquilo a que já chamei a "doença serôdia da social-democracia".

2. Tendo já anunciado a sua saída da liderança, Corbyn pretende, porém, manter-se transitoriamente à frente do Partido e gerir o "processo de reflexão" e de transição para nova liderança.
Todavia, face à sua derrota histórica, Corbyn deveria deixar imediatamente o campo desimpedido para o debate necessário à reconstrução do Partido, sem o tentar influenciar. Como afirmou um dos deputados do Labour, o período de reflexão de Corbyn para a sua saída não deveria exceder os 10 minutos...

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Um pouco mais de rigor sff (69): Legitimidade democrática da UE

1. Perguntado pelo Jornal de Negócios sobre se a imposição de restrições orçamentais pelos Tratados da UE aos Estados-membros não limita as democracias nacionais, o Prof. Ginsburg, coordenador de uma obra "Constituições em tempos de crise", recentemente publicada, respondeu assim:
«Esse é um dos aspetos focados no livro. Normalmente, os governos são legitimados democraticamente pela escolha dos eleitores. O governo da União Europeia retira a sua legitimidade do funcionalismo, da tecnocracia. As pessoas ficam naturalmente insatisfeitas em serem governadas por tecnocratas que lhes dizem que não há alternativa, que a via para resolver os problemas é uma via única. Vimos o efeito que esse discurso teve na Grécia, onde as pessoas ficaram efetivamente zangadas. [sublinhado acrescentado]».
2. Esta reposta é um disparate. Os Tratados da União, bem como o chamado Tratado Orçamental, foram negociados, aprovados e ratificados respetivamente pelos governos, parlamentos e chefes de Estado nacionais, gozando, portanto,de plena legitimidade democrática interna. Também tiveram o apoio do Parlamento Europeu, que é diretamente eleito pelos cidadãos europeus. Ao contrário da afirmação sublinhada, o Governo da União assenta na dupla legitimidade democrática das eleições nacionais, que elegem os governos ancionais (que integram o Conselho da União e o Conselho Europeu), e das eleições europeias, que elegem o Parlamento Europeu.
Por sua vez, a Comissão Europeia, que é o "governo da União", e que implementa os referidos Tratados, é nomeada pelo Conselho da União, com a aprovação do PE; além disso, está sujeita às orientações definidas pelo Conselho Europeu, e à responsabilidade política permanente perante o Parlamento Europeu.

3. A democracia da UE pede meças a muitas democracias nacionais, por exemplo quanto ao controlo da Comissão pelo PE ou quanto à condução da política comercial externa.
Um pouco de conhecimento sobre a constituição da União não faria mal a um especialista de direito constitucional comparado, mesmo americano...