Blogue fundado em 22 de Novembro de 2003 por Ana Gomes, Jorge Wemans, Luís Filipe Borges, Luís Nazaré, Luís Osório, Maria Manuel Leitão Marques, Vicente Jorge Silva e Vital Moreira
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019
O que o Presidente não deve fazer (16): As leis não precisam de assentimento presidencial
De facto, não bastam dúvidas para justificar o veto legislativo, pelo contrário. Sendo sempre um travão presidencial ao legislador soberano, o veto deve obedecer a uma regra de necessidade e de excecionalidade. Sob pena de banalização e desvalorização do veto presidencial, só deve haver veto quanto o Presidente tenha incontornável objeção contra a oportunidade ou conteúdo do diploma ou sobre o procedimento legislativo.
2. A minha crítica nesta matéria é de outro tipo, tendo a ver com a prática presidencial de motivação pública da promulgação e com a "promulgação com reservas".
Ao contrário da "sanção legislativa" da monarquia constitucional, que expremia a cotitularidade do poder legislativo pelo rei, a promulgação republicana é um poder externo de controlo político, puramente negativo. Por isso, se não houver motivo para veto - que, esse sim, tem de ser devidamente justiticado -, o Presidente não tem de, nem deve, justificar porque promulga os diplomas que lhe são submetidos. A promulgação é um "ato por defeito".
Ora, ao expor as razões por que promulga, o Presidente deixa entender erradamente que as leis carecem da sua aprovação, confirmação ou assentimento.
3. Quanto à promulgação com reservas, trata-se de uma figura não prevista na Constituição e que, a meu ver, não cabe na filosofia da promulgação presidencial dos atos legislativos. O poder legislativo cabe exclusivamente aos órgãos constitucionalmente previstos, que respondem politicamente pelo seu exercício. Ora, as eventuais reservas presidenciais aparecem como uma espécie de "declaração de voto" e de isenção de responsabilidade pelas consequências das leis, como se o PR fosse responsável sem aquelas.
No entanto, o princípio da separação de poderes exige também separação de competências e de responsabilidades. O PR não é cotitular da competência nem da responsabilidade pelo exercício do poder legislativo...
[Rubrica inicial modificada.]
quarta-feira, 27 de março de 2024
História constitucional (8): Nos 200 anos da 1ª constituição brasileira
1. O Brasil comemora por estes dias o bicentenário da sua primeira Constituição (25 de março de 1824), menos de dois anos depois da independência (1822), por secessão do Reino Unido de Portugal e do Brasil, que tinha sido instituído por D. João VI, no Rio de Janeiro, em 1815.
Embora seja um facto em geral ignorado na histografia política e constitucional brasileira, a primeira constituição aplicada no Brasil foram as Bases da Constituição aprovadas pelas Cortes Constituintes de Lisboa em 1821, que foram imediatamente juradas e postas em vigor no reino do Brasil pelo regente D. Pedro, ainda antes de serem juradas, com efeito para todo o Reino Unido, por D. João VI no seu regresso a Lisboa. A declaração de independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822, impediu a entrada em vigor ,no outo lado do Atlântico, da Constituição de 1822, aprovada no final desse mês, que constitucionalizava o Reino Unido, embora em termos insatisfatórios para os brasileiros.
A intransigência dos constituintes portugueses contra a proposta de tipo federal do Brasil precipitou a separação, que, aliás, D. Pedro preparava desde há muito.
2. Ao contrário da Constituição portuguesa, aprovada em assembleia constituinte eleita ainda em 1820, a Constituição brasileira de 1824 foi preparada por um comité próximo do imperador e outorgada pelo próprio D. Pedro, depois de ter dissolvido em 1823 a assembleia constituinte que ele próprio tinha convocado no Rio de Janeiro em 1822, interrompendo autocraticamente o exercício de poder constituinte representativo.
Na verdade, sendo um produto do poder constituinte outorgado pelo imperador, na senda do constitucionalismo restauracionista francês da Carta Constitucional de 1814, a Constituição brasileira consagrava a preeminência do poder do imperador, o qual, além de compartilhar do poder legislativo com o parlamento, através da sanção legislativa, e de ser titular do poder exercutivo, nomeando e demitindo livremente o governo, era também titular de um novo poder próprio, o poder moderador, inspirado em Benjamin Constant, mas desviando-se do "poder neutral" deste, que era concebido como poder separado, e não cumulativo, dos demais poderes.
Tratava-se de formidável acumulação de poderes nas mãos do Imperador, em contraste com os reduzidos poderes régios na anterior Constituição portuguesa de 1822.
3. Sucede que dois anos depois, na qualidade de herdeiro do trono português, por falecimento de D. João VI, D. Pedro decidiu restaurar a monarquia constitucional em Portugal, interrompida com a contrarrevoluação de 1823 contra o vintismo constitucional, optando expeditamente pela outorga de uma Carta Constitucional a Portugal, que não passava de uma réplica, com pequenas alterações, do texto que dera ao Brasil dois anos antes.
Emitida também no Rio de Janeiro e remitida para Lisboa para ser jurada, a Carta Constitucional de 1826 teve inicialmente vida bem mais atribulada do que a sua homóloga brasileira, tendo a sua vigência sido interrompida duas vezes: primeiro pela usurpação miguelista (1828-34) e depois pelo constitucionalismo setembrista (1836-1842). Todavia, tendo a sua vigência sido consolidada com a Regeneração (1851) e a revisão constitucional de 1852, ela veio a vigorar até à proclamação da República (1910), tal como no Brasil a Constituição de 1824 veio a manter-se até à proclamação respetiva República, em 1889.
Ou seja, a Constituição brasileira de 1824 constitui a matriz de um longevo constitucionalismo comum luso-brasileiro, sendo essencial para compreender a nossa Carta Cosntitucional e fazendo, portanto, também parte integrante da história constitucional nacional.
quinta-feira, 23 de junho de 2022
Era o que faltava! (3): A Ordem dos Advogados acima da lei?!
Não sendo advogado, não me tinha dado conta de que o Boletim da Ordem dos Advogados informa que «não adopta [sic] o novo Acordo Ortográfico», apesar de este estar em vigor desde 2015, sendo de presumir que a Ordem também o não faz na sua correspondência oficial e nos processos administrativos, disciplinares, judiciais, etc., em que intervém. O site da Ordem insere a mesma rejeição do AO (imagem acima)
Considero uma inadmissível provocação esta recusa da ortografia oficial da República por parte de uma entidade pública, criada pelo Estado e encarregada do desempenho de tarefas públicas de regulação e disciplina da profissão de advogado. Nem sequer pode ser invocado o facto de não haver sanção prevista para o incumprimento da ortografia oficial, sobretudo tratando-se de um organismo público empenhado na observância do Estado de direito, sabendo-se que a ordem jurídica, a começar pela Constituição, inclui outras normas "imperfeitas", desprovidas de sanção, sem que isso torne menos ilícita a sua violação.
Por que desconhecido privilégio se julga a OA acima da lei?
quinta-feira, 9 de março de 2017
Contrarreforma
Por duas razões:
- porque permite ao parlamento colocar pressão sobre o Governo para fazer algo que este em princípio não pode fazer (como se diz a seguir);
- sobretudo porque vai contra a própria razão de ser da regulação independente, pois essas autoridades são criadas justamente para "despolitizar" a regulação de certos setores, tendo como caraterísticas essenciais um mandato longo e a irremovibilidade dos reguladores (salvo falta grave apurada em processo independente), bem como a independência em relação ao Governo de cada momento.
Ao permitir doravante que a maioria parlamentar avalie o desempenho individual dos reguladores e recomende ao Governo a sua destituição - substituindo a sanção disciplinar por uma sanção política -, é evidente que qualquer processo desses retira aos reguladores visados as condições para desempenhar as suas funções de forma independente, levando em geral à sua demissão.
2. Trata-se de uma enorme mudança na orientação política de todos os governos em relação à regulação independente, desde há um quarto de século (desde a criação da CMVM em 1991 até à Lei-Quadro de 2013).
Estamos perante uma verdadeira contrarreforma que põe em causa os alicerces do "Estado regulador", segundo o qual incumbe ao Estado defender a concorrência e suprir as falhas e insuficiências do mercado de acordo com regras estáveis imunes ao ciclo eleitoral e de forma imparcial, separando a função reguladora dos interesses do Estado-empresário. Tal é a lógica da regulação independente numa economia de mercado regulada.
De resto, as autoridades reguladoras (noção que na Lei-Quadro inclui a Autoridade da Concorrência) aplicam sobretudo direito da UE e não direito nacional e integram as redes de reguladores da União, pelo que ainda menos se justifica a ingerência política do parlamento nacional.
3. É patente que, ao dar ao parlamento o poder de "julgar" e condenar individualmente os reguladores, esta inovação legislativa insere-se no atual clima de hostilidade política em relação às entidades públicas independentes, que por definição fogem ao comando da maioria parlamentar-governamental.
Mas a paixão política não é boa conselheira quando se trata de legislar e o acquis do Estado regulador devia estar imune às emoções políticas conjunturais.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2020
A mão visível (6): O seu a seu dono
1. A contestação de dois regulamentos de autoridades reguladoras independentes - o Regulamento da ANACOM sobre o concurso de redes de 5G, contestado pelos operadores, e o Regulamento da ERS (Entidade Reguladora da Saúde) sobre a transferência de doentes entre unidades de saúde, contestado pelo próprio Governo - veio dar expressão pública a um conflito, até agora latente, entre a competência política do Governo e a competência regulamentar das autoridades reguladoras independentes (ARI).
A questão subjacente é a de saber se a atuação destas excede a esfera das suas atribuições legais.
2. No "Estado regulador" contemporâneo, em que a intervenção económica do Estado se centra na correção das "falhas de mercado" e na defesa da concorrência, por via legislativa e administrativa, a execução dessas tarefas e a aplicação das correspondentes medidas não cabem em geral ao Governo e à administração direta ou indireta do Estado dependente daquele, mas sim a autoridades reguladoras independentes, que não respondem perante o Governo e que não estão sujeitas nem às suas instruções ou orientações nem à sua tutela ou controlo. Isso é assim nos Estados Unidos desde o princípio do Estado regulador, há quase um século (anos 30 do século passado) e posteriormente na Europa (desde os anos 80).
O problema que daí resulta é o de saber quais são as fronteiras entre o poder legislativ0 e a função política do Governo, por um lado, e os poderes das autoridades reguladoras independentes, por outro lado.
3. Se há coisas que a independência das autoridades independentes não pode pôr em causa, elas são, por um lado, o princípio da legalidade inerente ao Estado de direito e, por outro lado, a reserva governamental da função política, inerente à responsabilidade democrática. Constitucionalmente, é tão importante a separação entre o poder legislativo e o poder executivo, como a separação, dentro do último, entre a função política e a função administrativa. Ora, as autoridades reguladoras independentes só podem ter funções administrativas, de índole essencialmente técnica, estando, portanto, subordinadas ao poder legislativo e à função política do Governo.
Uma vez que as autoridades reguladoras independentes não gozam de legitimidade democrática própria e não são responsáveis politicamente, nem perante o Governo nem perante o Parlamento, torna-se óbvio que elas não podem tomar medidas que dependem do legislador ou da decisão política governamental.
Por mais amplas que sejam as cláusulas da lei ou dos seus estatutos, estes preceitos têm de ser interpretados em conformidade com a Constituição. Numa democracia representativa, instituções "não maioritárias" têm de ser politicamente neutras na sua ação, não podendo tomar decisões que envolvam opções de política económica ou outra.
4. Por conseguinte, a autonomia regulamentar das autoridades reguladoras não pode invadir, antes tem de respeitar, a reserva de lei do legislador democrático e a reserva de decisão política do governo democrático, que respondem ambos, direta ou indiretamente, perante a coletividade política.
Nesse quadro, salvo delegação ou autorização expressa, as ARI não podem criar ou alterar direitos e obrigações dos particulares nem da Administração (que caem na esfera do legislador) nem podem versar sobre a organização dos respetivos mercados (que cai na esfera da política económica sectorial), pelo que o seu poder regulamentar se limita a dispor sobre o exercício dos seus próprios poderes de supervisão e de sanção administrativa que a lei lhes confere e sobre os procedimentos correspondentes.
Fora disso, salvo credencial legislativa específica, as autoridades reguladoras atuam ultra vires, invadindo ou infringindo a esfera de atribuições do legislador e/ou do Governo. É o que me parece ter sucedido nos dois casos acima referidos.
domingo, 13 de maio de 2018
Praça da República (3): Assim não há ambiente que resista
Com esta sistemática leniência dos tribunais, os prevaricadores ambientais recorrem quase sempre das sanções, fazendo adiar a efetivação das sanções e sabendo que têm grandes hipóteses de as ver substancialmente reduzidas pelos tribunais. Assim não há ambiente que resista.
2. A questão tem a ver com uma errada opção legislativa, que vem desde há décadas, de entregar aos tribunais judiciais em matéria criminal a competência para apreciar os recursos das sanções administrativas, que uma vez recorridas passam a seguir o processo penal. Nessa época, os tribunais administrativos careciam de independência e o processo administrativo não oferecia suficientes garantias.
Ora, as sanções contraordenacionais são sanções administrativas, instruídas e punidas pela Administração, pelo que, de acordo com uma regra constitucional expressa, os tribunais competentes para julgar os recursos contra elas deveriam ser os tribunais administrativos. Os tribunais penais carecem de "expertise" e de sensibilidade em matéria de sanções administrativas, tendendo a encará-las como sanções penais, sujeitas aos exigentes requisitos constitucionais da punição penal. Mas as sanções administrativas não são sanções penais, pelo que não devem ser julgadas em tribunais penais, nem segundo o processo penal. De resto, muitas contraordenações passaram entretanto a ser apreciadas pelos tribunais administrativos (contraodenações tributárias e urbanísticas), sem qualquer diminuição dos garantias de defesa dos interessados.
É tempo de rever a lei-quadro das contraordenações de 1982 e de confiar aos tribunais administrativos a apreciação das sanções administrativas em geral, incluindo as contraordenações ambientais.