1. São conhecidos os quatro pilares essenciais da ética republicana (ou simplesmente ética política) no exercício de cargos públicos: (i) escrupuloso cumprimento das obrigações legais inerentes ao cargo; (ii) primazia absoluta do interesse público sobre os interesses particulares, em geral, e os interesses pessoais, em especial; (iii) integridade e recusa de vantagens ou favores pessoais; (iv) rejeição das relações familiares (nepotismo) ou de amizade (amiguismo) como critérios de decisão no governo da coisa pública.
A ética republicana vai muito para além do respeito da lei, regulando também a margem de livre decisão deixada pela lei. Sem constrições éticas a res publica corre riscos desnecesários.
2. As coisas tornam-se mais complicadas quando se trata de constituir equipas de trabalho, onde prevalece a liberdade de seleção dos colaboradores e onde os fatores de conhecimento, confiança e lealdade pessoal têm o seu lugar, favorecendo a escolha nos círculos de conhecidos, de amigos e de correligionários. É inevitável e compreensível, mas a prudência aconselha contenção e parcimónia no recrutamento nesses círculos, mesmo quando não esteja em causa a experiência e saber dos escolhidos.
O problema aumenta exponencialmente quando entram em jogo as relações familiares e quando a frequência das ocorrências deixa perceber um padrão de conduta comprometedor (o número conta).
Hoje em dia, os novos meios de informação e o maior escrutínio e maior sensibilidade do público tornam estes assuntos especialmente delicados. Toda a imprudência será castigada.
3. Estando em causa juízos translegais e não devendo eles ser deixados ao desamparo dos próprios interessados nem à demagogia dos média e das redes sociais, a solução passa pela elaboração de códigos de conduta ou códigos de ética que recomendem normas de comportamento e pela instituição de comissões de ética, incluindo personalidades externas, que permitam derimir os casos duvidosos ou conteciosos .
Infelizmente, entre nós, em vez de se prevenirem as situações, tendemos a correr atrás do prejuízo.
Adenda
Um leitor observa que recentemente desempenhei uma missão pública de nomeação governamental, sendo minha mulher ministra (embora alheia a tal missão). Assim foi, mas a tal missão - comissário para as comemorações dos 70 anos da DUDH - foi inteiramente gratuita, incluindo o não reembolso de qualquer despesa. Não creio que a ética republicana proíba o financiamento pessoal de missões públicas...
Adenda 2
Propositadamente, não nomeei nenhuma situação concreta, mas é óbvio que, ao contrário do que aqui e aqui se diz apressadamente, não visei a composição do Governo nem sufrago, relativamente aos gabinetes ministeriais, o precipitado inventário a esmo de situações muitos diferentes que vai pela imprensa, incluindo várias que não são suscetíveis de nenhuma censura ética. Não foi por acaso que me referi acima à "demagogia dos média e das redes sociais"...
Adenda 3
Respondendo a outro leitor, não mencionei a alegada "endogamia" na composição do Governo porque não compartilho dessa acusação. Sendo certo que não deixam de ser invulgares as duas situações há muito apontadas - porque existentes desde a origem do Governo -, não é menos verdade que este Governo pede meças na abertura a independentes e a personalidades oriundas de fora da "classe política", pelo que melhor se diria que ele é caracterizado por uma elevada "exogamia" política.
Adenda 4
Às listas que misturam tudo nas redes sociais, há a acrescentar as fake news com imputações de nomeações inteiramente falsas, com a agravante de serem veiculadas por pessoas em geral credíveis. Quando a demagogia freme, até as pessoas decentes claudicam. Aqui está em causa a ética pessoal, tout court...