segunda-feira, 25 de março de 2024

Contra a corrente (6): A questão do número de deputados da emigração

1. O substancial aumento da participação eleitoral nos círculos eleitorais do exterior nestas eleições parlamentares veio alimentar a ideia de elevar o número de deputados que eles atualmente elegem (4), e até o comentador Marques Mendes veio ajudar a essa "missa", fazendo uma comparação com círculos eleitorais do território nacional com semelhante número de eleitores e que elegem mais deputados.

Penso, porém, que não se deve aumentar esse número. Primeiro, é a própria Constituição que afasta o critério do número de eleitores na determinação do número de deputados a eleger pelos residentes no exterior; segundo, como o número de deputados da AR não pode ser aumentado, o acréscimo de deputados dos círculos do exterior só poderia ser feito à custa de uma redução dos deputados eleitos no território nacional; terceiro, há muitos países, incluindo na Europa, que não conferem direito de sufrágio aos eleitores residentes fora do País (como a Irlanda), ou que deixam de o reconhecer passado um certo tempo de ausência do País (como a Dinamarca, dois anos).

A verdade é que nem a teoria democrática, nem nenhuma obrigação internacional, impõem a participação dos residentes no exterior na escolha dos parlamentos e dos governos nacionais.

2. E comprende-se bem porquê: os residentes no exterior não compartilham em geral das obrigações dos residentes, nomeadamente quanto ao pagamento de impostos (sem ignorar, todavia, a importância económica das remessas dos emigrantes), nem são afetados pela generalidade das políticas adotadas pelos respetivos parlamentos e governos. 

No entanto, a democracia representativa é, por definição, a governação exercida pelos representantes eleitos direta ou indiretamente pelos governados, ou seja, aqueles que vão ser os destinatários das leis e das políticas governamentais adotadas e que sustentam o Estado com os seus impostos. 

Os residentes no estrangeiro, muitos deles sem nenhuma conexão direta com o País e outros acumulando a nacionalidade do seu país de residência, só marginalmente compartilham de ambas aquelas dimensões da cidadania, pelo que faz pouco sentido que possam influenciar fortemente a escolha dos governantes.

3. Ora, mesmo elegendo só quatro deputados, os círculos do exterior estiveram à beira de decidir o vencedor destas eleições. Com a crescente fragmentação partidária, o aumento desse número faria aumentar exponencialmente esse risco, criando um problema de legitimidade política, mesmo ignorando os problemas de segurança e de integridade do voto no exterior.

Sendo indubitavelmente justificada, como instrumento de reforço do sentimento de pertença nacional, a representação política exterior deve, porém, ser proporcional à sua contribuição para os encargos da República e à medida em que compartilham dos seus problemas e das soluções políticas que lhes são dadas.

Adenda
Mais radical, um leitor entende que se não justifica o voto dos cidadãos não residentes, transmutando a célebre proclamação no taxation without representation dos independentistas norte-americanos contra a Grâ-Bretanha numa outra: no representation without taxation. Penso que a falta de obrigação tributária justifica uma representação política reduzida, mas não a sua eliminação.

Adenda 2
Outro leitor receia que, depois de ter vencido as eleições entre os emigrantes, «a primeira iniciativa legislativa do Chega vai ser mesmo o alargamento da sua representação política». Admito que sim, mas o que me preocupa é o eventual seguidismo oportunista de outras bancadas, incluindo dos principais partidos. Confio, porém, na impossibilidade de reunir os 2/3 de deputados que a Constituição exige.

Adenda 3
Concordando com o post, um leitor acrescenta que «seria bom notar que Portugal tem atualmente um grande número de imigrantes, os quais sofrem os efeitos das políticas do Estado português, mas não são autorizados a votar», defendendo que «seria mais do que adequado conceder a todos os imigrantes que já estivessem em Portugal há um certo número de anos (talvez dois ou quatro) o direito de votar em todas as eleições». Notando que eles também contribuem para a sustentação financeira do Estado, como os nacionais, e deixando em aberto os requisitos concretos, também entendo que é altura de equacionar o reconhecimento da cidania política dos imigrantes radicados em Portugal.

Adenda 4
Também concordando com o texto, outro leitor acrescenta outra razão para justificar a limitação da representação parlamentar dos cidadãos residentes no exterior, que tem a ver com «considerações de coesão / soberania nacional, na medida em que os eleitores residentes no estrangeiro, contribuindo com o seu voto para a decisão em território nacional, podem ser muito influenciados por realidades exteriores» - como poderia ter sido o caso nestas eleições da influência do bolsonarismo no Brasil ou da hostilidade da direita populista francesa contra a imigração islâmica, em favor do voto no Chega. Sem dúvida, uma consideração a não ignorar.