terça-feira, 18 de novembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (24): Sistema de governo semiparlamentar?

1. Há dias o jornal Público perguntou aos candidatos presidenciais (AQUI) se defendiam uma alteração dos poderes presidenciais. Sem supresa, nenhum defendeu a sua redução, e os candidatos A. Ventura e Cotrim de Figueredo até acham que deviam ser reforçados.

A verdade, porém, é que não são eles que têm competência para decidir essa questão, mas sim a AR, quando for caso de revisão constitucional, que é feita sem nenhuma intervenção presidencial, não havendo poder de veto político das leis de revisão. É de recordar o caso da revisão constitucional de 1982, em que o Presidente Ramalho Eanes tinha exigido ao PS, -  que o apoiara nas eleições presidenciais anteriores em que ele foi reeleito - um compromisso de não redução dos poderes presidenciais. Como se sabe, houve uma redução, e bem substancial, como mostro no meu recente livro sobre o Presidente da República.

Num Estado constitucional, não são os presidentes, nem muito menos os candidatos presidenciais, que definem os seus próprios poderes.

2. Quanto à caracterização do sistema de governo que resulta do quadro constitucional, alguns dos candidatos utilizam inovadoramente a expressão de sistema "semiparlamentar", em alternativa à fórmula até agora mais corrente de "sistema semipresidencial".

É um claro progresso, que saúdo, visto que, como argumento no referido livro, não tem fundamento a segunda caraterização, Com efeito, a Constituição não oferece nenhum dos traços essenciais do sistema de governo presidencial, pois o Presidente não governa, nem semigoverna, e o Governo nem sequer é politicamente reponsável perante ele. 

Todavia, embora menos incorreta, a nova fórmula continua a não exprimir devidamente o facto de que o sistema de governo constitucional apresenta os elementos essenciais do sistema de governo parlamentar, a saber (i) a  legitimidade política do Governo fundada nas eleições parlamentares - que põem sempre fim ao mandato governamental em curso e iniciam um novo ciclo governativo, ao contrário das eleições presidenciais - e (ii) a responsabilidade política do Governo perante o parlamento, sendo demitido no caso de perder a confiança dele.

O máximo que se pode dizer é que se trata de um sistema de governo parlamentar atípico, visto que "corrigido" pelo "poder moderador" do PR, sobretudo pelo poder de dissolução parlamentar (a qual acarreta sempre a substituição do Governo  mesmo que do mesmo partido). Mas essa "correção" não altera a lógica essencialmente parlamentar do sistema de governo.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Laicidade (18): Não ao financiamento público das religiões

1. É evidente a inconstitucionalidade da proposta de excluir o financiamento público de mesquitas apresentada pelo Chega, na sua obsessão anti-islâmica -, mas só é inconstitucional por ostensiva e inaceitável discriminação religiosa. 

O que o princípio constitucional da separação entre o Estado e as religiões impõe é a proibição de financiamento público de qualquer religião. O Estado não tem religião e é neutro em matéria religiosa. A sustentação das igrejas (templos, ministros, etc.) só pode constituir encargo dos seus crentes, não dos contribuintes, sejam ou não crentes de outras religiões.

Como contribuinte, tenho o direito de exigir: não com os meus impostos.

2. A Constituição garante a liberdade religiosa, ou seja, a liberdade de crença e de culto, dos crentes e das suas igrejas, sem discriminação,  incluindo a liberdade dos primeiros de financiarem as segundas; mas, tal como as demais liberdades públicas, não existe nenhum direito à religião contra o Estado, nem dos crentes nem das respetivas igrejas, em termos de exigir a prestação pública de serviços religiosos ou a sua subsidiação pública. 

O Estado não tem nenhuma obrigação de subsidiar nenhuma religião; pelo contrário, não pode fazê-lo. Num Estado laico, o financimento dos encargos do culto religioso, incluindo os locais de culto, é uma responsabilidade exclusiva do seus crentes. As igrejas não podem parasitar o Estado.

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Concordo (25): Perda de nacionalidade no TC, obviamente


1. Concordo inteiramente com esta opinião do Prof. Jorge Miranda sobre a necessidade de sujeitar a fiscalização preventiva da constitucionalidade a perda de nacionalidade de cidadãos naturalizados, como sanção adicional por crimes graves, recentemente aprovada na AR, por estranha convergência política entre o PSD e o Chega.

Na verdade, tal como também já escrevi sobre esta questão (AQUI), entre nós, o direito à nacionalidade goza de proteção constitucional qualificada, como um dos "direitos, liberdades e garantias pessoais" (art. 26º, nº 1 da CRP), ao mesmo título que o direito à identidade e à capacidade civil, entre outros. E, embora a Constituição não exclua em termos absolutos a privação da nacionalidade (nº 4 desse preceito), ela só poderá ter lugar nos termos constitucionais, ou seja, quando respeitados os princípios da necessidade e da proporcionalidade na restrição de tais direitos (art. 18º), bem como o princípio constitucional da igualdade e não discriminação (art. 13º), ambos violados pela referida privação da nacionalidade. 

2. Com efeito, quanto ao primeiro aspeto, como a nacionalidade é um direito que é pressuposto de muitos outros direitos, a privação de nacionalidade é uma sanção extremamente grave, em que a vítima passa à situação de estrangeiro, perdendo os direitos de cidadão nacional e de cidadão da União Europeia, desde os direitos civis aos direitos políticos, e podendo ser expulso e extraditado do País, sendo afastado do seu trabalho, da sua família e das suas relações. Sem exagero, é uma pena de morte civil e política, pelo que não surpreende que nunca tenha sido inscrita no Código Penal e que até agora a nacionalidade só pudesse perder-se por renúncia, e só admitida no caso de pessoas com outra nacionalidade.

Por isso, além de não poder ter fundamento em motivos políticos, como impõe a Constituição, uma pena dessa gravidade superlativa só deve ser equacionada quando tal seja requerido pela proteção de um valor constitucional superior (por exemplo, crime de traição à pátria), e nunca como instrumento oportunista de política penal. Ora, no caso concreto, além da manifesta motivação política contra imigrantes, não existe nenhum eminente valor constitucional que justifique tal pena.

3. Além disso, ao abrigo do crucial princípio constitucional da igualdade, os cidadãos nacionais são todos iguais, independentemente do modo de aquisição da nacionalidade, pelo que a origem da nacionalidade não pode sequer constar do cartão de cidadão. A única exceção é o cargo de Presidente da República, que só está aberto a cidadãos nacionais de origem, mas não é preciso ser estudante de direito para saber que, por definição, as normas excecionais só valem para os casos nelas contemplados. 

Por isso, é inadmissível a discriminação dos cidadãos em matéria penal, como no Antigo regime pré-constitucional, como se propõe neste regime de aplicação daquela pena a uma certa categoria de cidadãos, especificamente os cidadãos naturalizados, só por o serem. Sucede, aliás, que, tratando-se em geral de cidadãos residentes no país, eles são, por via de regra, muito mais identificados com a comunidade nacional do que muitos cidadãos de origem nascidos e residentes desde sempre no estrangeiro.

A privação da nacionalidade não pode ser um instrumento discriminatório de revisão retroativa da aquisição de nacionalidade, que só pode ser definitiva e irreversível.

domingo, 9 de novembro de 2025

Reforma da Justiça (15): Contra a imunidade do governo da justiça ao escrutínio público



 









1. Na entrevista que deu ao jornal Público do passado dia 6, o presidente do STJ, Conselheiro Cura Mariano, perguntado sobre as críticas ao estado da justiça pelo Manifesto dos 50 (de maio de 2024), permite-se surpreendentemente insinuar - como os excertos acima reproduzidos mostram - que os seus autores pretendem que os juízes sejam «escolhidos e nomeados pelo poder político» e submeter as suas decisões às «orientações do poder político», à semelhança da Polónia (!) e da Hungria (!), culminando na ideia de que pretendem «arranjar controleiros para os juízes» (sic!).

Ora, basta ler o Manifesto (disponível AQUI) e as posições do seus autores, entre os quais me conto, para ver que aquelas graves insinuações não têm absolutamente nenhum fundamento, sendo produto de pura especulação malévola do entrevistado. Aliás, no seu § 8, o Manifesto ressalva expressamente que a reforma da justiça nele proposta deve «respeitar integralmente a independência dos tribunais» e no § 9 declara à cabeça das suas prioridades a de «garantir uma efetiva separação entre o poder político e a justiça».

De resto, quem é que poderia acreditar que aquele grupo de pessoas - todas com um currículo que pede meças na defesa do Estado de direito constitucional, que tem na independência dos juízes e dos tribunais um dos seus pilares -, poderia incorrer em disparates tão grosseiros como a defesa do controlo político da justiça?

O problema que aquelas declarações suscita é o de saber como é que pessoas com a posição e responsabilidade institucional de presidente de um supremo tribunal da República podem permitir-se fazer acusações tão levianas e tão ofensivas para os visados, sem nenhum fundamento. Assim, não vale! Sendo eu um dos coautores do Manifesto, julgo que o Senhor Conselheiro Cura Mariano deve corrigir aquelas irresponsáveis declarações e pedir desculpa aos visados.

2. Sendo intocável a independência dos juízes e a função de julgar (do STJ e de todos os tribunais), tal como garantida na Constituição - que ninguém contesta nesse ponto -, entendo, porém, que os órgãos de governo das magistraturas, onde se conta o CSM (a que o presidente do STJ preside por inerência), não podem reivindicar nenhuma imunidade ao escrutínio externo do desempenho das suas funções, que obviamente não têm natureza judicial (como prova o facto de ele ser composto maioritariamente por membros nomeados pelo poder político, aliás por exigência do princípio democrático). 

Por isso, na linha do Manifesto (§ 9, quinto item), defendo que, além do envio do seu relatório anual à AR, como previsto na lei, o presidente da CSM, nessa qualidade, devia ser chamado regularmente a apresentá-lo na comissão de justiça da AR e a responder às questões dos deputados, e que que AR devia organizar anualmente uma sessão de debate sobre o estado da justiça, justamente com base dos relatórios do CSM, do CSTAF e do Ministério Público. O preocupante estado da justiça exige essa sabatina regular.

Numa democracia constitucional, não pode haver poderes de gestão pública imunes ao escrutínio público nem irresponsáveis perante a coletividade. Os cidadãos têm o direito de conhecer e de avaliar o desempenho do sistema de justiça, nos seus vários subsistemas, e de pedir contas a quem os governa. Isso vale também para o CSM e o seu presidente.

Adenda
Um leitor, que se apresenta como magistrado judicial, faz o seguinte comentário: «Era o que faltava, ver o presidente do STJ submetido a um exame parlamentar!». Mas não tem nenhuma razão: não defendo que o Consº Cura Mariano compareça perante a AR na sua qualidade de presidente do STJ (embora tal não esteja excluído, para responder sobre a gestão administrativa do Tribunal), mas sim como presidente do CSM -, o que não é a mesma coisa! Constitucionalmente, Portugal é um Estado de direito democrático, onde o poder público vem da coletividade e é responsável perante ela. Não é por acaso que, por imposição constitucional, o CSM tem uma maioria de membros designados pelo PR e pela AR (e o mesmo sucede, por analogia, com o CSTAF), nem que o PGR é nomeado e destituído livremente pelo PR, sob proposta do Primeiro-Ministro. Num Estado democrático, o poder judicial não pode viver em autogestão, nem ser imune à responsabilidade externa. O que aquela frase revela é a prevalência, na esfera judicial, de um sentimento corporativista de autogoverno do sistema de justiça, por natureza imune ao escrutínio externo, à revelia da Constituição -  o qual não pode perdurar.

Adenda 2
Excerto do comentário de um leitor informado e credenciado: «Um texto que subscrevo, em defesa do Estado de direito. Sucede que a administração da justiça está em roda livre há muito tempo. E o poder político demitiu-se de fazer um escrutínio sério e objetivo. Tem medo, e a cobardia paga-se caro. 
Os conselhos superiores estão no essencial reduzidos à esfera disciplinar; não há discussões de fundo entre os conselhos e os deputados. O relatório anual é um mero proforma. Ninguém o lê na AR e ninguém quer saber dos vogais dos conselhos após as eleições na AR. Depende do empenho e do espírito de missão de serviço público de cada eleito, que se vê numa situação de profunda indiferença do parlamento. (...) Penso que estão a fazer um ótimo trabalho com as intervenções públicas do Manifesto, porque o tema da justiça tem de regressar ao centro do discurso político reformista». É um relato impressionante, que chama a atenção para um facto pouco conhecido: a demissão do poder político, incluindo a AR e os partidos políticos, de usarem o poder de escrutínio do sistema de justiça, de que dispõem.   

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (23): O que o PR deve ser, e o seu contrário


Da minha entrevista de ontem no Diário de Notícias, acerca do meu recente livro Que Presidente da República para Portugal?:

«O perfil presidencial que defendo é de um Presidente moderador, e não perturbador; um Presidente estabilizador, e não desestabilizador; uma magistratura de influência, e não de ingerência.»

Esta mensagem constitui o "motivo diretor" do livro.

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (22): Uma ideia que faz sentido

1. Na entrevista de hoje do candidato presidencial Jorge Pinto, oriundo do Livre, na RTP (jornalista Vítor Gonçalves), houve duas novidades quanto a possíveis iniciativas do PR - uma que deve ser rejeitada liminarmente e outra que merece séria reflexão.

A primeira é a ideia de o PR convocar "assembleias de cidadãos" para debater e propor medidas sobre temas políticos concretos, à imagem do que tem sido feito noutros países, como forma sofisticada de democracia participativa. Trata-se de conselhos de cidadãos ad hoc, em geral formados por 20 a 30 pessoas tiradas à sorte do recenseamento eleitoral, segundo certos critérios que assegurem uma microrrepresentação sociológica da coletividade (equilíbrio de género, geracional, de população urbana e rural, etc.), convocadas para organizarem um debate entre si sobre questões concretas, ouvindo especialistas no tema, para, no final, apresentarem ao parlamento e ao governo um relatório fundamentado sobre o assunto, normalmente adotado por consenso, incluindo propostas ou recomendações políticas ou legislativas de solução. 

Basta esta definição para verificar que uma tal iniciativa está claramente fora da competência presidencial entre nós, primeiro, porque não consta do enunciado constitucional dos seus poderes e, segundo, porque, entre nós, o Presidente não compartilha nem da função legislativa (que cabe essencialmente à AR) nem da direção da política geral do País (que cabe ao Governo). O facto de em França uma iniciativa dessas ter partido do Presidente Macron é irrelevante em Portugal, pois naquele País é o Presidente que, em condições normais, dirige o governo. Não comparemos o que é incomparável.

2. Em contrapartida, merece reflexão a ideia de o Presidente, como guardião de último recurso das instituições constitucionais, poder decretar a dissolução parlamentar e a convocação de novas eleições para a AR, na hipótese de estar iminente a aprovação de uma revisão constitucional que atentase contra o "núcleo duro" da ordem republicana e democrática da CRP - hipótese que, embora improvável, merece ser equacionada. 

Na verdade, a Constituição proíbe a revisão das soluções que consubstanciam a própria identidade constitucional, que constam do art. 288º da CRP, e que vão desde a independência nacional e a unidade do Estado até à autonomia político-administrativa dos Açores e da Madeira. Contudo, em qualquer caso, o PR não pode vetar as leis de revisão (expressamente proibido no art. 286, nº 3) e, embora a fiscalização preventiva da conformidade constitucional das leis de revisão não esteja explicitamente excluída, há quem defenda que tambem nao tem lugar, por ela só estar prevista para convenções internacioais e atos legislativos.

Nesse quadro, na iminência de uma revisão gravemente inconstitucional, por desrespeito do art. 288º, a única solução disponível poderia a ser a dissolução parlamentar antes da aprovação da lei de revisão. Mesmo para quem defende uma visão restritiva da dissolução parlamentar, como é a minha, essa hipótese de o PR recorrer a ela, como meio de salvaguarda do regular funcionamento das instituições e de defesa em última instância da Constituição, é perfeitamente cabível, a título de «situação política excecional que torne imperiosa a renovação da legitimidade parlamentar» (como digo na competente sugestão de revisão constitucional constante do meu recente livro sobre o Presidente da República). 

A eventual dissolução num caso desses transformaria as subsequentes eleições numa espécie de referendo de rejeição da revisão constitucional interrompida.

O que o Presidente não deve fazer (60): O colegislador clandestino

1. No princípio de agosto, o Governo anunciava a aprovação em Conselho de Ministros de um diploma a fundir a FCT com a Agência de Inovação, pelo que, como é normal, o diplomá deverá ter sido enviado para promulgação do PR. Contudo, mais de três meses passaram sem promulgação do diploma nem notícia de veto presidencial.

Passado este tempo todo, o Governo vem anunciar uma nova versão do diploma, com uma significativa alteração em relação ao que se sabia do primeiro, quanto ao formato institucional da nova entidade, informando que ela resultava de uma «sugestão» do PR, não se sabe a que título, nem quando, nem por que meio. O que se terá passado?

Conjeturalmente, passou-se o seguinte: face à forte oposição da comunidade científica ao referido diploma, e não concordando também com ele ou com algumas das suas soluções, o PR decidiu não o promulgar, sem, porém, o vetar, como devia, preferindo devolvê-lo à procedência com sugestões de alteração (que desconhecemos), que o Governo acabou por acolher, no todo ou em parte, como agora anuncia. O problema é que nada disto é conforme à Constituição.

2. Em primeiro lugar, nada autoriza o PR a devolver ao Governo um diploma legislativo sem veto formal, devidamente justificado, tal como previsto na Constituição. Segundo, tudo na Constituição contraria essa espécie de "negociação legislativa" informal (?) entre o Governo e o PR, tornado colegislador, em afronta do princípio constitucional da separação de poderes. Por último, é inadmissível este procedimento legislativo clandestino, sem qualquer informação pública, ao arrepio do princípio da transparência e do acompanhamento público que a formação das leis deve observar num Estado de direito constitucional, que foi justamente construído contra a "arcana praxis" do Antigo Regime pré-liberal.

Não dá para compreender como é que o Presidente da República se deixa envolver numa operação tão grosseiramente à margem da Constituição quanto ao exercício do poder legislativo. 

3. Há que encontrar meios para pôr cobro a estas situações de descabido "conluio legislativo" entre Belém e São Bento, à margem do procedimento previsto na Constituição e da separação clara entre o poder legislativo do Governo, quando o tem, e o subsequente poder de controlo presidencial, para efeitos de promulgação ou de eventual veto.  

Para impedir isso, impõem-se três mudanças em relação à prática corrente:
- que o Governo publique antecipadamente a agenda legislativa de cada Conselho de Ministros;
- que, logo depois, publique o texto dos diplomas legislativos aprovados e indique a data do seu envio para Belém;
- que o PR publique o despacho de promulgação ou veto dos diplomas governamentais, como faz em relação aos da AR.

O procedimento legislativo dos decretos-leis não pode continuar escondido numa "caixa negra", à margem do escrutínio público.

4.  Quanto à emenda presidencial do diploma, substituindo o formato institucional da nova entidade pública, que deixa de ser o de sociedade comercial (SA) para passar ao de entidade pública empresarial  (EPE), ela atenua um pouco a gravidade da solução governamental, mas continua a ser uma solução errada, pois não se vê onde onde é que na gestão da subvenção pública à investigação existe produção de serviços contra um preço, que é essencial à noção de empresa. 

Continua, portanto, a verificar-se a mesma fraude à distinção constitucional entre o setor público empresarial (SPE) e o setor público administrativo (SPA) e de fuga indevida da nova entidade administrativa às regras da "Constituição administativa" da CRP. O PR não se devia deixar expor como coautor de um desvio desta gravidade aos princípios constitucionais.

5. Acresce o risco de se verificar uma situação politicamente embaraçosa.

Os decretos-leis governamentais podem ser chamados ato contínuo à AR, para efeitos de rejeição ou de alteração - o que provavelmente vai ocorrer. Se a AR questionar o formato pseudoempresarial da nova agência administrativa, que se sabe agora provir de Belém, em que situação fica o PR, se a AR decidisse - como, a meu ver, devia - revogar esse ponto da "parceria legislativa" entre Belém e São Bento?  E em que situação fica ele, quando fosse chamado a promulgar essa lei da AR que descarte esse seu indevido contributo de legislador ocasional?

Eis como o desrespeito dos limites constitucionais dos poderes presidenciais - o PR não é legislador nem colegislador - pode gerar consequências políticas assaz delicadas...

Adenda
Um leitor bem informado observa que essaa prática «já vem do passado, com outros Presidentes e outros governos». É verdade, e eu já a critiquei anteriormente, por ter conhecimento dela. O que é novo, porém, é ela ter sido referida publicamente por um ministro, como se fosse uma prática perfeitamente normal. Ora, não pode aceitar-se a "normalização" de uma prática contrária à Constituição e ao escrutínio público da atividade legislativa.

Adenda 2
Neste editorial do Público sobre esta questão diz-se que a fórmula das "entidades públicas empresariais" está «amplamente experimentada» no caso dos hospitais públicos - o que é verdade. No entanto, ao contrário dos hospitais EPE - que preenchem os pressupostos técnicos da noção de empresa, como prestadores de serviços ao público, e cujo financiamento orçamental é efetivamente calculado em função dos cuidados de saúde por eles prestados aos utentes do SNS e que são "pagos" pelo Estado em vez deles (algo de paralelo às autoestradas "SCUT", em que o Estado paga a sua utilização às empresas respetivas, em vez dos utilizadores) -, parece evidente que a missão da projetada IA2 não preenche a noção de atividade económica, que é pressuposto do conceito de empresa: na noção de "entidade pública empresarial", ela só prenche o primeiro conceito, não o segundo.

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (59): Emendar a mão

1. Ao contrário de outros artigos desta série e da sua rubrica, este não é de crítica ao PR, mas sim de aplauso.

Em meados de Setembro, MRS anunciava o seu propósito de, «dentro de duas ou três semanas», emitir publicamente o seu juízo sobre a Ministra da Saúde. Critiquei prontamente (AQUI) esse anunciado juízo presidencial, com fundamento em que não cabe constitucionalmente ao PR avaliar publicamente o desempenho político dos ministros, o que é competência do PM, da AR e dos cidadãos, visto que o Governo não é politicamente responsável perante o Presidente, nem este dispõe de qualquer poder de tutela política sobre aquele.

Passadas várias semanas, esse juízo presidencial sobre a ministra da Saúde nunca veio a público - e bem! Desta vez, a minha crítica não caiu em saco roto.

2. Em vez disso, há dias, o Presidente resolveu manifestar publicamente a sua preocupação quanto ao estado do SNS e a falta de estabilidade e continuidade das políticas governamentais da saúde, omitindo qualquer avaliação do desempenho da Ministra ou do Governo. Fez bem, de novo!

Na sua missão de "poder moderador" e de supervisão sobre o respeito da Constituição, o PR pode - e em certas circunstâncias, deve - chamar atenção do Governo, da AR e dos partidos políticos para situações que põem em causa valores constitucionais eminentes, onde se conta obviamente o SNS e o direito à saúde. Além de caber nas suas competências constitucionais, o alerta do PR sobre a gravidade da situação e o seu apelo a um "acordo de regime" sobre a matéria é pertinente e oportuno.

Ou seja, para desempenhar bem o seu papel constitucional, o PR não precisa de abusar dos seus poderes, como tantas vezes tenho registado. Vale a pena emendar a mão.

Adenda
Um leitor entende que «tal como qualquer cidadão, Marcelo Rebelo de Sousa deve ter uma péssima opinião sobre a Ministra da Saúde». Pois pode tê-la, mas ele não é "qualquer cidadão"; mesmo que a tenha, ele não pode, sendo PR, exprimi-la publicamente.

sábado, 1 de novembro de 2025

Contra a tentação presidencialista (6): Apresentação do livro em Coimbra

 


Depois de Lisboa, não podia faltar uma sessão de apresentação do meu livro em Coimbra, que se realiza na próxima sexta-feira pelas 18:00.

Quero agradecer desde já a disponibilidade da apresentadora - a Professora de Direito Constitucional da FDUC, Catarina Sarmento e Castro (que também foi juíza do Tribunal Constitucional e ministra da Justiça) -  e da Livraria Almedina / Estádio, pela cedência do seu acolhedor espaço, de que sou visitante regular.

Sejam bem-vindos os que decidirem vir.