terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Sem pés para andar

Tomada à letra, a notícia de que «a Academia de Ciências de Lisboa vai rever o Acordo Ortográfico» não tem pés nem cabeça.
Sendo uma convenção internacional, o AO só poderia ser modificado por acordo entre os governos dos países que o ratificaram. Ora, que se saiba, não existe nenhuma iniciativa oficial nem oficiosa nesse sentido, nem se vislumbra nenhuma perspetiva de vir a ser dado algum passo nessa direção. Portanto, o máximo que se pode dizer é que a Academia (ou o seu presidente, não se sabe bem), por sua livre iniciativa, decidiu apresentar publicamente uma proposta de revogação do AO e da sua substituição por uma "convenção" (o que quer que isso seja).
Fica bem à Academia, de vez em quando, fazer prova pública de vida. Mas, se bem julgo, as hipóteses de essa ideia ser levada a sério oficialmente são iguais a zero. Se fosse membro da tribo anti-AO não depositava nenhuma esperança nessa iniciativa.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Um pouco mais de cultura constitucional, sff

1. Em relação ao meu penúltimo post, sobre o caso Fernanda Câncio, um leitor comenta que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa são um «pilar essencial de uma sociedade democrática».
Não podia concordar mais. Mas com a mesma convicção afirmo que o respeito pela intimidade da vida privada é um pilar essencial de uma sociedade decente. E afirmo mais: que para ser um pilar essencial de uma sociedade democrática, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa não precisam nada de atentar contra o direito à intimidade da vida privada.
A liberdade de expressão e a liberdade de imprensa nasceram para garantir a liberdade de informação e para assegurar a externalização pública da liberdade de pensamento e de opinião em matéria política, religiosa, económica, filosófica, artística e cultural, bem como para denunciar os abusos do poder público ou privado. Para isso não precisam nada de invadir a esfera da privacidade das pessoas.

2. No caso concreto, a tese do tribunal de que o deferimento da providência cautelar contra o livro de Saraiva equivaleria a "censura" assenta num quádruplo equívoco:
  - primeiro, a censura designa a sujeição da informação ou opinião ao controlo ou punição do Governo ou das autoridades administrativas, não a aplicação das medidas judiciais previstas na lei contra os abusos da liberdade de imprensa;
  - segundo, ao dar proteção absoluta à liberdade de expressão, o tribunal desprotegeu em absoluto o direito à intimidade da vida privada, que não goza de menor proteção constitucional (pelo contrário);
  - terceiro, o respeito pela intimidade da vida privada não constitui uma restrição em sentido próprio da liberdade de imprensa, mas sim um "limite imanente", decorrente da própria Constituição, não podendo ser equiparado às restrições estabelecidas por lei (embora com base na Constituição), por exemplo, o segredo de Estado ou o segredo de justiça;
  - por último, ainda que o direito à intimidade da vida privada tivesse de ser comprimido em homenagem à liberdade de expressão, mesmo assim essa operação teria de obedecer às condições constitucionalmente estabelecidas para a restrição de direitos, liberdades e garantias (necessidade, proporcionalidade, respeito pelo núcleo essencial, etc.), o que não se verificou.
Nos tribunais convém um pouco mais de cultura constitucional.

3. Compreende-se que a imprensa tablóide e o "jornalismo de sarjeta" (na célebre expressão de uma antiga presidente do Sindicato dos Jornalistas) cultivem o voyeurismo e explorem publicamente a vida sexual de conhecidos e desconhecidos, invocando abusivamente a liberdade de imprensa para defender esse nicho de mercado.
Já se compreende menos que a imprensa séria condescenda com esse abuso da liberdade de imprensa, ou seja cúmplice pelo silêncio.

sábado, 10 de dezembro de 2016

Direito de Resposta



Um direito constitucional pouco conhecido e escassamente exercido.
Inscrições aqui!

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Populismo judicial

1. Tem inteira razão a jornalista Fernanda Câncio, quando se rebela contra a denegação judicial da providência cautelar por ela requerida contra o livro de J. A. Saraiva, por invasão da intimidade da sua vida privada. Se o livro é uma provocação jornalística, a sentença é um despautério judicial.
Não é por acaso que a Constituição coloca à cabeça dos "direitos, liberdades e garantias pessoais" o direito à vida, o direito à integridade pessoal e outros "direitos pessoais", entre os quais o direito à reserva da intimidade da vida privada. Trata-se de direitos de defesa do património pessoal de todas as pessoais contra a invasão externa, seja pelo poder público, seja por terceiros (já que os direitos, liberdades e garantias valem diretamente nas relações entre privados).
Por isso, o direito à intimidade da vida privada - que não pode deixar de cobrir a vida sexual - não pode ser sacrificado à liberdade de expressão ou à liberdade de imprensa, e a garantia destas não pode nunca afetar o núcleo essencial daquele.

2. Sucede, porém, que nos últimos anos, como tenho denunciado várias vezes, se verifica uma desconsideração geral dos direitos de personalidade em prol da absolutização da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa.
Até agora, por influência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, essa primazia absoluta da liberdade de imprensa valia somente em relação aos políticos, em alegada homenagem ao valor da transparência e responsabilidade especial da ação política, e a vítima era em geral o direito ao bom nome e reputação.
Pelos vistos, a ter em conta esta desastrada decisão, e ainda mais a sua insustentável justificação, a liberdade de expressão passa a autorizar também a aniquilação do direito à reserva da vida privada e passa a abranger não somente os políticos mas também quem teve a má ideia de ser namorada de um político. Abyssus abyssum!

3. Vivemos num mundo bizarro, a este respeito. Por um lado, há um coro de protestos, em nome da reserva da vida privada, contra um alegado excesso das autoridades públicas no acesso aos dados pessoais, incluindo os saldos bancários, mesmo que não haja a sua divulgação pública nem seja evidente que os dados bancários integram a reserva da intimidade da vida privada; por outro lado, porém, aceita-se passivamente, e até se aplaude, que se revelem publicamente informações (verdadeiras ou falsas, pouco importa) sobre a vida sexual de pessoas comuns, neste caso de uma cidadã, só por ter tido uma relação com um antigo primeiro-ministro.
A justificação está na onda populista que entende que não há nenhum limite à invasão da intimidade das pessoas conhecidas, por maioria de razão quando se trata de políticos ou de quem com eles conviva ou tenha convivido. Esta infeliz decisão ficará nos anais do sacrifício judicial de um direito pessoal nuclear no altar do populismo antipolítico. É uma péssima ocorrência na história do Estado de direito constitucional entre nós.

Adenda
Voltei a este assunto num post mais recente

Ainda nos 40 anos da CRP

Na próxima semana, dia 14/12,  estou aqui:


Etiqueta

Nas minhas diversas incursões na política sempre me considerei um académico emprestado transitoriamente à atividade política. E, seguindo o conselho de Novalis, sempre voltei para casa, isto é, à Universidade de onde nunca saí efetivamente.
Mas verifiquei que a etiqueta política, por mais transitória e longínqua que seja, é como uma tatuagem indelével na testa. Uma vez político, sempre político. Assim, por exemplo, ao dar notícia de uma recente troca de opiniões que mantive com outro professor universitário, sobre uma matéria que aliás ensino há muito, um comentador identificou o meu opositor como "professor de Direito" (que é efetivamente), e a mim como... "antigo eurodeputado socialista".
Ou seja, mesmo num debate entre académicos, a minha efémera qualidade de eurodeputado, aliás terminada há mais de dois anos, prevaleceu sobre a minha qualidade permanente de professor de Direito, apesar de aquela minha participação política ser irrelevante para o caso, pois não foi tida nem achada no referido debate.
Não enjeito obviamente (pelo contrário!) a minha participação política ao longo dos anos, desde a oposição à ditadura até ao Parlamento Europeu, mas entendo que não se deve misturar alhos com bugalhos.

Adenda
Há bem pior, todavia. Por vezes ainda me identificam como "ex-comunista", como se o tivesse deixado de ser há pouco, apesar de ter deixado o ser há mais de 25 anos e de desde então estar publicamente ligado ao PS (quase o dobro do tempo que pertenci ao PCP), quer como apoiante quer como deputado.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Fingidor

Passos Coelho afirma que «o PSD não é de direita».
Mas finge bem! E, parafraseando Pessoa, finge tão bem, que chega a fingir que é aquilo que deveras é...

A fortuna e a prudência

1. Sim, o poder de compra das pessoas está a subir, mercê da "devolução de rendimentos" por via orçamental e da recuperação do emprego, iniciada logo em 2014. E a gente está a aproveitar para consumir mais (automóveis, electrodomésticos, viagens, restaurantes, etc.) e a regressar lentamente ao nível de vida de antes da crise. O benigno clima social e político reflete essa evolução.
Tudo isso é bom e é bem-vindo.

2. Mas a recuperação do nível de vida anterior à crise vem acompanhada do regresso de alguns dos antigos vícios que favoreceram a mesma crise, a que se somam outros trazidos por ela.
Por isso, o estado de felicidade geral não devia fazer ignorar os fatores menos positivos, que podem trazer uma "aterragem" desagradável lá mais para a frente, a saber:
   - a contínua quebra do investimento (a começar pelo investimento público), que compromete o futuro do (já modesto) crescimento económico;
   - o aumento do endividamento das famílias (crédito à habitação e ao consumo), alimentado pelos juros baixos e pela expetativa de que assim continuem;
   - o reduzido nível de poupança interna e de equity doméstico, que favorece o endividamento externo da economia e a venda de ativos empresariais ao estrangeiro (incluindo bancos e infraestruturas);
   - a retoma do aumento da despesa pública, reforçando os gastos mais rígidos (despesa com pessoal e pensões), que retira flexibilidade à política orçamental e pressiona a política fiscal;
   - o excessivo rácio de dívida pública e do spread em relação aos títulos alemães e espanhóis, que sobrecarrega as contas públicas e adia a mudança de notação desfavorável das agências de rating.

3. Além do risco que representam em si mesmos para a sustentabilidade da retoma económica e da consolidação orçamental, estes fatores tornam o país especialmente vulnerável a algum "evento" externo que afete o atual ciclo económico positivo (que muito deve ao petróleo barato) ou a era dos juros baixos em que vivemos (cortesia do BCE).
Nesta época de enorme incerteza e de volatilidade política (Brexit, Trump, triunfo da demagogia populista) convém apostar mais na prudência e confiar menos na fortuna.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Arrasem-se?

1. Não concordo com esta tese de Nuno Garoupa, propondo a extinção das autoridades reguladoras da economia.
Antes de mais, há afirmações radicais sem fundamento, com a de que a Lei-Quadro de 2013 «não teve qualquer impacto relevante». Ora, foram muitas e algumas importantes as alterações, como o alargamento da duração do mandato dos reguladores e a proibição da sua recondução, a submissão dos indigitados ao filtro curricular da CRESAP e ao escrutínio parlamentar antes da sua nomeação, o reforço da autonomia orçamental, dos poderes e da transparência dessas entidades. Além disso, algumas entidades reguladoras que eram institutos públicos comuns (administração indireta do Estado) foram transformadas em entidades independentes (como a ERSAR e a AMT),
Outra afirmação infundada é a de que «os tribunais não desempenham qualquer papel minimamente relevante» no controlo judicial da regulação, o que ignora a revolução da nossa justiça administrativa em geral desde 1976 e o papel específico do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, criado em 2011 (aliás integrado na ordem judicial comum).

2. Quanto à tese principal, a da extinção, não me parece que as premissas justifiquem a extinção geral das autoridades reguladoras independentes.
Elas tem em Portugal a mesma razão de ser que têm em qualquer outro país onde se operou a transição de um "Estado intervencionista" para um "Estado regulador", concentrado na defesa da concorrência e em dar resposta às falhas e insuficiências do mercado, incluindo a garantia dos "serviços de interesse económico geral" (SIEG), como é próprio de uma "economia social de mercado".
Entre essas razões contam-se as seguintes:
  -  a desgovernamentalização e despolitização da regulação do mercado;
  - a imunidade da atividade reguladora às mudanças do ciclo eleitoral, em prol da continuidade e previsibilidade da regulação;
  - a separação das funções do Estado empresário e do Estado regulador, nos setores em que há operadores públicos (como na banca, nos transportes ferroviários e aéreos, nas águas e resíduos), como garantia da neutralidade e da imparcialidade da regulação;
   - reduzir o espaço para "captura regulatória"e para a troca de favores políticos;
   - facilitar a autossuficiência financeira das entidades reguladoras, através do princípio "regulado-pagador", deixando de ter encargos orçamentais.
Não se vê como é que as direções-gerais dos ministérios poderiam cumprir esta missões.
Não se fica a saber se a operação geral de limpeza incluiria também a extinção das funções reguladoras do Banco de Portugal e a supressão da Autoridade da Concorrência. Em todo o caso, seria absurdo imaginar, por exemplo, uma direção-geral do ministério das Finanças a voltar a regular a banca ou o mercado de valores mobiliários ou o mistério da Economia a desempenhar as funções de defesa da concorrência.

3. O que se pode discutir - como faço no meu ensino e nas minhas intervenções públicas sobre a matéria - é se se justifica manter um tão grande nível de especialização e de fragmentação das entidades reguladoras.
Assim, desde há muito defendo uma redução e concentração das autoridades reguladoras existentes, mediante as seguintes operações:
  - adoção do modelo twin peaks na regulação financeira, com apenas duas autoridades reguladoras, em vez das três atuais;
  - agregação de todas as atuais autoridades reguladoras das utilities e das "indústrias de rede" (energia, telecomunicações e serviços postais, água e resíduos) num só regulador transversal (seguindo o modelo alemão), com exceção dos transportes;
  - junção das duas atuais autoridades reguladoras dos transportes numa só, com competência para todo esse setor.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

O dado que falta

A dar crédito a este estudo encomendado pela Ordem dos Médicos, com base num inquérito a que respondeu menos de 1/3 dos inquiridos, cerca de 2/3 dos médicos em Portugal estão em situação de "exaustão emocional", incluindo os mais jovens.
Curiosamente, falta, porém, uma informação essencial para entender esse estudo: qual a percentagem de entre eles que acumula atividade no SNS e no setor privado. Não é preciso ser adivinho para supor uma taxa de coincidência muito elevada...
Não sou dogmaticamente a favor de uma exclusividade absoluta no SNS, mas, entre outras perplexidades, ainda não percebo como é que se admite que os médicos "internos", na verdade ainda em formação à conta do SNS, possam acumular atividade com o setor privado.

Desvio

Caso não haja uma melhoria das contas públicas no último trimestre, as perspetivas para o défice orçamental do corrente ano, tendo em conta estes dados do 3º trimestre, não ficam somente muito acima do défice inicialmente previsto no orçamento (2,2%) mas também acima quer da meta governamental corrigida tomada como referência para o orçamento para 2017 (2,4%) quer do objetivo mínimo de redução estabelecido pela Comissão Europeia desde o início (2,5%).
Na verdade, a manter-se o percurso do 3º trimestre, o défice de 2016 ficaria apenas 0,3% abaixo do défice efetivo de 2015 - traduzindo portanto uma modesta consolidação orçamental - e tornaria mais difícil o cumprimento, quer das metas para o défice orçamental do próximo ano, quer da meta de redução da dívida pública, que é crucial para diminuir o peso dos respetivos encargos.
Neste trimestre final de 2016 há fatores orçamentalmente favoráveis, como a "amnistia fiscal", e há a continuação de fatores desfavoráveis (aumento da despesa com funcionários e redução do IVA dos restaurantes). Esperemos que os primeiros prevaleçam sobre os segundos e que as contas melhorem o suficiente para corrigir o referido desvio.

Adenda
O Ministro das Finanças garantiu ontem em Bruxelas que serão tomadas as medidas necessárias para cumprir as metas inscritas no orçamento de 2017. Convém que sejam mais efetivas do que as tomadas em relação ao orçamento de 2016...

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

A Política de Comércio Externo da UE depois do Brexit e de Trump

Na próxima quarta-feira, vou palestrar aqui, em Aveiro:


Quando a Itália treme

1. Não tem razão Luís Aguiar-Conraria quando escreve que imputei aos eleitores italianos, e não aos governantes, a culpa por o referendo constitucional ter sido indevidamente transformado num plebiscito ao Governo.
Na verdade, o que defendi foi que referendos como este - que pedia aos cidadãos uma decisão sobre dezenas de alterações à Constituição, inacessíveis ao cidadão comum, numa situação de grande insatisfação em relação ao Governo  - não deviam ser convocados, o que obviamente é antes de mais uma crítica ao primeiro-ministro italiano.
Além do mais, um dos traços dos referendos é que eles tendem a só poder ser revertidos por outro referendo, o que se traduz numa expropriação definitiva da democracia parlamentar.

2. Agora que Renzi - cumprindo a sua "ameaça" - , pagou com a demissão a sua imprudência, aproveito para dizer que se eu fosse italiano teria votado a favor da reforma constitucional de simplificação e de correção de algumas disfunções do sistema político (redução da dimensão e dos poderes do senado, eliminação das províncias, atenuação da fragmentação do poder político regional).
Quem conhece o sistema político italiano não pode deixar de se interrogar como é que ele pode funcionar com um mínimo de racionalidade, eficiência, estabilidade e responsabilidade.

3. Não faz sentido pensar que a derrota do referendo e a demissão de Renzi venham a desencadear um processo de saída do euro. Mas é de recear que a Itália entre de novo num período de turbulência política, com reflexos negativos na problemática situação financeira e económica do País.
Mesmo que o BCE venha em socorro da estabilidade da zona euro e da dívida pública italiana, não é de excluir que outros países mais vulneráveis, como Portugal, venham a ser negativamente afetados. Uma das consequências da união monetária é que os problemas financeiros de um Estado-membro, sobretudo se importante, têm efeitos sobre os elos mais fracos.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Gratuitidade = iniquidade

Não vejo justificação para restaurar a entrada gratuita nos museus nacionais aos domingos e feriados.
Primeiro, sendo já esses os dias de maior frequência, a entrada gratuita vai congestionar os museus e privá-los de uma importante fonte de receita, que só pode ser compensada à custa de outras áreas do Ministério da Cultura.
Em segundo lugar, uma vez que a maior parte dos museus nacionais está em Lisboa, esta medida aproveita sobretudo aos respetivos residentes, que assim beneficiam (mais uma vez!) de um serviço público financiado por todos os portugueses. Não devia ser encargo dos contribuintes alimentar ainda mais os privilégios de Lisboa.
Por último, a gratuitidade do serviços públicos prestacionais só se justifica no caso de serviços efetivamente universais (saúde, ensino obrigatório) e no caso dos serviços de proteção social. Salvo nesses casos, deve valer o princípio "utilizador-pagador", em particular tendo em conta os constrangimentos orçamentais do País.
É uma falácia a ideia de que "o que todos pagam barato fica". Como tenho argumentado inúmeras vezes (caso das autoestradas SCUT, propinas das universidades, estacionamento gratuito nas cidades, etc.), quando se trata de serviços públicos que não aproveitam a todos ou aos mais necessitados, a gratuitidade redunda numa iniquidade, em que todos pagam as vantagens de uma parte (já de si privilegiada, como é o caso).

sábado, 3 de dezembro de 2016

O fantasma do CETA

1. Dois deputados do BE interpelaram o Governo sobre um pedido de indemnização feito ao Estado português por causa da reversão da concessão da Carris e do Metro de Lisboa, por parte da empresa mexicana que tinha ganho a concessão.
Os referidos deputados alertam para o facto de esse litígio ir ser decido por um tribunal arbitral internacional ad hoc (ao abrigo do acordo de investimento entre Portugal e o México, que eles não referem) e acrescentam que o CETA (o acordo de comércio e investimento entre a UE e o Canadá), em vias de ratificação, vai estabelecer o mesmo mecanismo arbitral de resolução de conflitos, com o perigo de multiplicação de pedidos de indemnização de empresas estrangeiras à margem dos tribunais nacionais.

2. Sucede, porém, que a referida pergunta contém alegações e assenta em suposições sem o devido fundamento factual ou jurídico. Assim:
    - nos termos do direito civil e administrativo, a responsabilidade civil inclui obviamente a indemnização dos "lucros cessantes" em caso de quebra de um contrato, não sendo esse aspeto nenhuma inovação dos contratos de investimento estrangeiro, pelo que qualquer tribunal administrativo nacional teria de conferir a indemnização de tais danos;
   - por via de regra, os contratos entre o Estado e investidores privados (concessões, empreitadas, parcerias público-privadas, etc.), sejam nacionais ou estrangeiros, incluem uma "cláusula arbitral", pelo que não se trata de nenhuma inovação dos litígios internacionais de IDE;
  - ao contrário do que se diz na referida pergunta parlamentar, o CETA já não inclui o ISDS arbitral, tendo este mecanismo de resolução de litígios sido substituído pelo "sistema de tribunais de investimento" (ICS, na sigla inglesa), passando a ser da competência de tribunais mistos bilaterais permanentes (UE-Canadá), dotados de independência;

3. As razões para a adoção de mecanismos externos de resolução desses litígios, em vez dos tribunais nacionais, tem a ver sobretudo com os seguintes fatores:
   - estar em causa a aplicação de princípios e de convenções internacionais de IDE, matéria em que os tribunais nacionais não possuem a necessária formação e experiência;
  - a tradicional demora dos processos e recursos nos tribunais nacionais, que podem durar anos, o que se não compadece com a exigência de celeridade na resolução destes litígios de elevado valor.
Acresce que, desde o Tratado de Lisboa, a regulação de IDE passou a ser uma competência da União, pelo que os litígios podem envolvê-la como litigante ou colitigante (junto com os Estados-membros); por isso, esses litígios devem se decididos ao nível da União e não dos Estados-membros.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Nem tudo vai mal

Lentamente, a União Europeia vai recuperando da crise financeira e orçamental de 2008-2011 no que respeita à retoma económica, à consolidação orçamental, à estabilidade financeira, etc. Até a Grécia está a sair da situação de emergência.
Nesse sentido, pela primeira vez desde 2011, a taxa média de desemprego na União desceu abaixo dos 10%, o que, apesar da grande assimetria entre os vários países (uns abaixo dos 5% e outros acima dos 20%), não deixa de ser uma boa notícia. Portugal, ainda que pior do que a média da União, contribui para essa descida.
Obviamente, os sobressaltos na frente política (crise dos refugiados, Brexit, referendo na Holanda sobre o acordo comercial com a Ucrânia, possível vitória populista nas eleições presidenciais austríacas e no referendo italiano, ameaça do nacionalismo em vários outros países, etc.) não permite otimismo nenhum quanto à saída definitiva da crise. Infelizmente,  há outras razões de preocupação, além do desemprego (terrorismo, imigração, corrupção, desigualdade social, etc.). Mas mesmo os motivos de preocupação política seriam bem mais graves se a situação económica, social e financeira não estivesse a melhorar.

Adenda
É fácil notar que, salvo a Croácia, todos os países com desemprego maior do que a média da União são do sul da Europa, tendo sido todos eles especialmente afetados pela crise orçamental. Já a Irlanda, um dos três países "resgatados", deixou a crise bem para para trás em todos os aspetos. Decididamente, há países mais ágeis do que outros a enfrentar e vencer as crises...

Correção

Ao nomear um presidente do conselho de administração (chairman) e um diretor executivo (CEO) para a nova gestão da CGD, o Governo corrigiu um erro que cometera na administração anterior - concentrando essas duas funções numa única pessoa - , que fui o primeiro a assinalar e que depois o BCE reiterou.
Esperemos que desta vez não se repitam os demais percalços que atrasaram o processo de recapitalização do banco público e depois levaram à demissão da anterior equipa de gestão. A recuperação da Caixa e a estabilidade do sistema financeiro português bem precisam.

Mais uma reversão?

Segundo a imprensa, a próxima página do caderno reivindicativo do BE e do PCP face ao Governo do PS pode bem vir a ser a reversão das alterações ao Código do Trabalho, nomeadamente em matéria de contratação coletiva e de indemnização por despedimento.
Compreende-se esta iniciativa da extrema-esquerda parlamentar, face à perda de apoio nas sondagens eleitorais, não somente por razões ideológicas mas também para marcar terreno político, tendo em conta as eleições autárquicas do próximo ano e a negociação do próximo orçamento, uma vez concluído o processo de "recuperação de rendimentos". Mas o Governo revelaria um grande imprudência política se lhe desse seguimento, pois parece evidente que o atual dinamismo do mercado de trabalho e da criação de emprego, num contexto pouco propício de contínua quebra do investimento e de sofrível crescimento económico, se deve muito à moderada flexibilização das relações laborais conseguida com a revisão da legislação laboral.
O regresso ao passado desequilibraria o atual compromisso entre a proteção dos direitos dos trabalhadores e o incentivo à criação de emprego, sacrificando o segundo. Quem já tem emprego poderia ganhar mais direitos, mas quem o não tem passaria a ter mais dificuldades em obtê-lo...

Cila e Caribdis

1. Todas as sondagens sobre o referendo constitucional italiano no próximo dia 4 indicam que o primeiro-ministro Renzi vai sofrer uma pesada derrota política.
Se tal se verificar, confirmam-se mais uma vez dois riscos dos referendos. Primeiro, quando versam sobre temas complexos, eles são decididos com baixo conhecimento geral sobre as questões colocadas à decisão popular (calcula-se que só um entre 10 italianos conhece com algum rigor o que está em causa); segundo, há a tendência para os cidadãos votarem em questões políticas diferentes das que estão a votos, tornando os referendos em plebiscitos contra o governo em funções, independentemente do mérito das questões submetidas a referendo.

2. Não é a primeira vez que exprimo as minhas objecções contra referendos sobre questões complexas, que não são suscetíveis de uma opção "sim" ou "não", ou a referendos realizados em situações de instabilidade política ou social, em que a paixão política conjuntural tende a primar sobre a razão.
Mas depois do Brexit e do referendo italiano, é de sublinhar que o referendo constitui uma derrogação da democracia representativa, que devia ser excecional, não podendo tornar-se num instrumento de fuga dos governos e dos parlamentos às suas responsabilidades políticas nem, muito menos, de triunfo de populismos conjunturais.

3. A confirmar-se a derrota do referendo, ela redunda numa vitória da direita berlusconiana e da Liga Norte e da pseudo-esquerda populista do movimento "5 estrelas", podendo abrir uma caixa de Pandora política em Itália e, por extensão, na UE.
Cumprindo a sua imprudente ameaça, Renzi pode ser tentado a demitir-se, abrindo uma crise política. Mesmo que o não faça, as condições de governo vão deteriorar-se, até por causa das divisões na maioria de centro-esquerda, com consequências negativas sobre a situação económica e a estabilidade política e financeira do País.
Entre Cila e Caribdis, entre o populismo de direita e o de esquerda, como evitar um naufrágio político em Roma?

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Ganhar, perdendo

É sabido que Donald Trump foi eleito Presidente dos Estados Unidos apesar de ter tido dois milhões de votos populares a menos do que Hillary Clinton. Não é a primeira vez que isso sucede, pois o mesmo ocorreu com a vitória de Bush em 2000, com menos votos do que Gore.
Porquê esta discrepância, pouco conforme à lógica da democracia representativa? Ao contrário do que se tem lido, isso não tem propriamente a ver com a eleição indireta do Presidente, através de um colégio eleitoral, nem com o facto de os membros desse colégio serem eleitos ao nível dos estados da União, em homenagem à estrutura federal dos Estados Unidos.
Há duas razões substantivas para essa assimetria política entre a maioria de votos dos eleitores e a maioria dos delegados no colégio eleitoral. A primeira decorre do facto de a representação dos estados no colégio eleitoral não ser proporcional à respetiva população, com vantagem para os estados mais pequenos. A segunda razão, e mais importante, decorre do facto de a eleição dos delegados em quase todos os estados ser feita por maioria, e não pelo método proporcional, pelo que o candidato presidencial que tiver mais um voto num estado "leva" todos os delegados desse estado.
Não fossem esses dois fatores muito pouco democráticos do sistema eleitoral, especialmente o segundo, o colégio eleitoral seria tendencialmente um espelho político do voto dos eleitores a nível nacional (como acontece com a nossa AR, que é eleita em círculos distritais) e Hillary Clinton seria Presidente dos Estados Unidos.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Transição política em Cuba?

1. Qualquer que seja o juízo sobre Fidel Castro, entre o herói para uns e o tirano para outros, parece evidente que o seu desaparecimento pode facilitar a transição para um regime de maior liberdade económica e política em Cuba, que ele não via com bons olhos. De facto, mesmo se retirado, ele permanecia como garante da continuidade da revolução e do comunismo cubano, limitando a margem de evolução endógena do regime.
Se essa transformação ocorrer - aliás, já iniciada na área económica -, resta saber se Cuba pode tentar replicar a experiência "esquizofrénica" da China e do Vietnam - de transição para o capitalismo na esfera económica sem transição para uma democracia liberal na esfera política - ou se vai passar num prazo mais ou menos curto por um processo de liberalização tanto económica como política.

2. Como parece evidente, as ameaças de Trump de voltar atrás no acordo concluído por Obama podem ter um efeito contraproducente, ajudando as forças conservadoras em Cuba. Pelo contrário, a melhor ajuda de Washington à transição política em Cuba seria a de levantar o injustificável embargo comercial - que tantos razões deu a Havana para estimular os sentimentos anti-americanos e unir os cubanos à volta do regime  - e abrir as relações económicas, turísticas e culturais com a ilha.
Neste provável processo de transição a União Europeia tem um papel insubstituível, na medida em que não adotou a agenda norte-americana de isolamento internacional de Havana, tendo centrado o seu empenho na defesa dos direitos humanos e, através deles, na criação de condições para a transição política em Cuba. Não é altura agora de Bruxelas e os Estados-membros se desinteressarem da desejável transição democrática em Cuba, nem de deixarem os seus créditos por mãos alheias, nomeadamente as de Washington

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Ai, a dívida!

Segundo este números, a dívida pública bruta cresceu no últimos doze meses mais de 37 milhões de euros por dia, o maior aumento diário desde 2012, no pico da crise e do programa de assistência externa.
Mesmo admitindo que a dívida líquida tenha crescido a um ritmo um pouco menor (dado o aumento de depósitos, por razões de segurança), ainda assim são números pouco tranquilizadores.
Em vez de aumentarem, as necessidades de financiamento da despesa pública por dívida deveriam estar a diminuir.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

A vaga

Ao vencer de forma concludente as "primárias" da direita francesa para a candidatura presidencial do próximo ano, F. Fillon deve ter aberto desde já o caminho para o Eliseu, dado que a esquerda não se apresenta com hipóteses para lhe fazer frente (depois da enorme deceção de Hollande), podendo ficar afastada logo na primeira volta, e que Fillon tem, como "gaullista de direita" que se autoqualifica, boas condições para vencer Marine le Pen, no provável duelo da segunda volta, acantonando-a no voto da extrema direita e beneficiando tendencialmente do apoio da maioria do eleitorado.
Entre a extrema-direita xenófoba e anti-europeia e a direita conservadora, do mal o menos - se fosse francês, não teria dúvidas na opção -, mas a vitória de Fillon, anunciada a esta distância, marca mais um degrau da atual vaga política da direita na Europa e fora dela.

Adenda
Há, todavia, o risco de entre uma direita liberal-conservadora e uma extrema-direita nacionalista e protecionista a esquerda preferir a segunda. Na verdade, quando ouve a palavra "liberal", a esquerda francesa puxa da pistola. Não é segredo que o voto operário, que antes era a base eleitoral do PCF, está hoje maioritariamente com Le Pen!

Funambulismo político

1. O desastrado processo de nomeação da nova administração da CGD (como aqui se mostrou) terminou da pior forma (como aqui se antecipou), com a demissão de António Domingues, adiando a resolução da questão institucional da Caixa e a implementação do seu plano de recapitalização e aprofundando a incerteza em relação ao banco público.
Tendo feito questão de ser contratado na sua qualidade estritamente profissional, rejeitando o estatuto de "gestor público" e qualquer equiparação a titular de cargo político - o que foi aceite e lhe foi assegurado pelo Governo -, o gestor sentiu-se injustamente desfeiteado quando na semana passada o Parlamento, com os votos do direita e do Bloco e a aparente conformação do PS, aprovou uma norma ad hominem impondo explicitamente a obrigação de apresentação de património e de rendimentos, não fosse o Tribunal Constitucional vir a considerar que os gestores da Caixa estão isentos, por não serem agora legalmente considerados como gestores públicos.

2. Se a posição da direita se compreende em termos de lógica oposicionista, explorando ao máximo a fragilidade do Governo neste dossiê, já o mesmo não vale para o BE, que pertence à maioria parlamentar de apoio ao Governo e gosta de reivindicar para si os seus louros. O PSD deve ao Bloco a sua primeira vitória parlamentar ao fim de um ano do Governo!
Decididamente, ao juntar-se à direita para assestar um golpe político no Governo que apoia, lembrando-lhe da pior forma que é minoritário sem o seu apoio, o Bloco revelou que não é confiável como partido da maioria parlamentar. É uma situação inédita que não pode não deixar marcas. Uma coisa é não apoiar todas as iniciativas do Governo, outra coisa, bem diferente, é juntar-se irresponsavelmente à oposição para derrotar o Governo...

Adenda
Com a decisão de entregar a declaração de património e de rendimentos, a administração demissionária da Caixa mostra que não estava em causa um capricho para esconder essa informação mas sim o seu direito de fazer cumprir o acordo, que o Governo não respeitou, relativo à sua contratação em termos estritamente profissionais, sem equiparação a gestores públicos e a titulares de cargos políticos. Uma "bofetada de luva branca"...

Adenda 2 (30/11)
Como era de recear, a triste novela política da Caixa tem impacto negativo no seu rating e, consequentemente, nos seus custos de financiamento.

Dor de cabeça


1. Os resultados da sondagem eleitoral publicada no fim de semana passado não podiam ser melhores para o PS, com 43% (a dois pp da maioria absoluta), nem piores para a oposição do PSD e do CDS, cuja soma  (36%) fica muito abaixo dos socialistas.
Mas é caso para dizer que os resultados são demasiado bons para o PS, pois metade da sua subida é feita à custa dos parceiros da protocoligação parlamentar, o BE e o PCP, que perdem mais de 2 pp cada um em relação às eleições de há um ano. Ou seja, os louros políticos do desempenho governamental vão para o PS à custa dos seus parceiros de coligação parlamentar, apesar dos esforços destes para reclamarem para si os méritos das medidas favoráveis, o que não pode deixar de criar algum ressentimento político.

2. O caso é mais grave para o PCP, que desce para um nível preocupantemente baixo (6%) - inferior ao de todas as eleições legislativas até agora - e que pode ver nestes resultados o risco de um processo de definhamento como o que atingiu o PC francês no seguimento da sua entrada em governos liderados pelos socialistas há algumas décadas.
É evidente que o PC não vai precipitar uma crise de Governo a curto prazo, mas não é improvável que o próximo congresso do Partido dê eco ao descontentamento político que esta descida de apoio eleitoral necessariamente suscita e que, para apaziguar a inquietação interna, venha a aprovar um caderno reivindicativo tão exigente que o Governo dificilmente possa cumprir.
Eis como uma sondagem demasiado favorável pode causar uma dor de cabeça.

domingo, 27 de novembro de 2016

Infiel a Fidel

Fidel Castro foi personagem marcante do século XX. Mas nem sempre pela positiva.

Começou bem. Foi o "El Comandante" da revolução contra a colonização de Cuba pelo imperialismo americano que sustentava a ditadura corrupta de Fulgêncio Batista - que, não por acaso, se exilou na ditadura em Portugal, na Madeira. A descida da Sierra Maestra e a entrada gloriosa em Havana em 1959 despertariam a mitologia da revolução cubana: quem da minha geração não teve posters na parede com o Che de boina e estrela? 

A revolução trouxe esperança e admiráveis progressos na saúde e na educação, acessíveis a todos em Cuba - e bem exportados, como atestam os médicos cubanos e timorenses formados em Cuba que cuidam do povo em Timor-Leste. As exportações militares foram politicamente mais questionáveis, por justificadas que fossem na luta contra o colonialismo, da Guiné-Bissau (e eu não me arrependo de ter andado pela ruas de Lisboa a gritar pela libertação do cubano Capitão Peralta nos idos de 74...) a Angola, onde os militares cubanos foram decisivos em arrumar a África do Sul. Angola, onde Fidel, hábil cavalgador do Movimento dos Não Alinhados, arrumou também a tentativa de hegemonia soviética, apoiando Agostinho Neto contra Nito Alves...

Mas há um reverso trágico, pela intolerância de Fidel aos que tinha por infiéis, por teimarem em exercer direitos e liberdades fundamentais e divergir e criticar o regime. E pela penúria, a pobreza indigna que fez emigrar milhões de cubanos e que não resultou apenas do embargo com que retaliaram os Estados Unidos. O embargo forneceu, de facto, um alibi para os sacrifícios e a repressão que o despotismo de Fidel impôs ao povo cubano: no fundo, a América que defendeu o embargo foi a melhor aliada da ditadura em Cuba.

Com o afastamento de Fidel Castro do poder executivo por doença (formalmente em 2006), a mudança começou em Cuba. Tinha de ser, porque entretanto ruira o outro sustentáculo da ditadura cubana: o apoio económico da União Soviética. O vislumbre de abertura explica a visita do Presidente Obama a Cuba há dois anos: veremos se se vai acelerar agora, não obstante ou com a "ajuda" dos extremistas em torno de Trump...

Não me arrependo, como Secretária Internacional do PS em 2003, de ter publicado um comunicado em nome do Partido a condenar as execuções de dissidentes pelo regime castrista: os socialistas democráticos não podem calar perante a perversão política e ideológica que toda e qualquer ditadura implica.

Muitos respirarão hoje com mais esperança em Cuba, tantos certamente quanto choram Fidel, mas a maioria dos mais jovens fica indiferente: só anseia por emigrar. 

Em Portugal irrita que sobretudo se discuta o carisma de Fidel: como se o carisma dispense de avaliar se foi posto ao serviço do bem ou do mal. 

Eu não choro Fidel. Presto tributo ao revolucionário, a El Comandante da Sierra Maestra. Mas constato que ontem se apagou mais um tirano.

sábado, 26 de novembro de 2016

Em causa própria

1. O congelamento dos limites das "propinas" (taxas) no ensino superior no Orçamento para 2017 - derrogando a lei de atualização em vigor - não se limita a reduzir os recursos próprios das universidades e politécnicos, diminuindo assim a sua capacidade operacional e a sua autonomia financeira face ao Estado. Também é socialmente injustificada.
Primeiro, descontadas as suas "externalidades" sociais positivas, o ensino superior é antes de mais um investimento individual, em vista de melhores empregos e atividades profissionais e de melhores remunerações, pelo que não faz sentido que benefícios individuais sejam financiados por toda a coletividade; segundo, o ensino superior não é nem nunca será um serviço universal, dados os requisitos intelectuais requeridos, pelo que é injusto que aqueles que não podem chegar ao ensino superior financiem quem tem condições e meios para o fazer, mediante impostos pagos por todos.

2. O financiamento do ensino superior deveria fundar-se por isso na regra beneficiário-pagador e não num subsídio público generalizado, cego à capacidade económica dos beneficiários.
Cumpre naturalmente ao Estado financiar individualmente o acesso ao ensino superior dos estudantes de menores rendimentos, de modo a assegurar o princípio constitucional da igualdade de oportunidades. Mas isso não deve ser alcançado por propinas baixas para todos (incluindo os muitos que podem e devem pagar propinas mais elevadas), mas sim através de bolsas de estudo em número e valor apropriado.
Sucede que, por óbvias razões de interesse próprio, as juventudes partidárias, especialmente as dos partidos de esquerda, militam desde sempre contra as propinas (sendo de recordar a campanha do "não pagamos" nos anos 80 do século passado). Só é de lamentar que os seus interesses pessoais tenham sido coonestados como suposto interesse geral.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

XIX Curso de Pós-graduação em Direitos Humanos


Mais informações no site do Ius Gentium Conimbrigae / Centro de Direitos Humanos, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC).

Facilitismo

Suscita-me as maiores reservas a ideia de integrar os chamados "precários" na função pública.
Por duas razões: primeiro, não faz sentido que o Estado esteja a implementar um plano de redução do pessoal da função pública (sobretudo para reduzir a despesa pública) e depois faça entrar ad hoc uma quantidade indefinida de novos funcionários, inexistindo uma necessidade imperiosa dos serviços públicos; segundo, e sobretudo, esses novos funcionários vão entrar à margem dos procedimentos constitucionais e legais de acesso, nomeadamente o concurso público, violando por isso um elementar e imperativo princípio de igualdade.
Independentemente do seu custo orçamental, a admissão de mais uns milhares de funcionários por decreto, sem prova da sua necessidade e à margem das regras constitucionais que garantem a igualdade de acesso, não é propriamente recomendável como medida de esquerda.

Tempos ominosos


Este quadro retirado do The Economist - onde ilustra uma peça sobre a vaga nacionalista por esse mundo fora - mostra que, entre os países referidos (muitos deles europeus), a França é aquele que tem uma opinião maioritariamente negativa sobre a globalização, o comércio internacional e o papel dos imigrantes. Outros estudos mostram que o apelo nacionalista em França (e noutros países) é particularmente generalizado entre os trabalhadores e os aposentados, que tradicionalmente eram bases políticas da esquerda.
Desses indicadores fica a perceber-se melhor por que razão a direita nacionalista goza na França do largo apoio que hoje tem e o risco político que ela representa, especialmente tendo em conta as eleições presidenciais do próximo ano. Não menos preocupante é o facto notório de a própria esquerda francesa não fugir à tentação de cooptar também os valores nacionalistas, sobretudo em matéria de protecionismo comercial e de hostilidade à imigração.
Decididamente, os tempos não vão fagueiros para o internacionalismo liberal.