domingo, 13 de maio de 2018

Lisbon first (10): Duplicar vantagens

Segundo esta notícia, os municípios vão passar a receber, no quadro das novas tarefas resultantes do processo de descentralização em curso, 5% da receita do IVA cobrado no seu território na aquisição de um conjunto de serviços, entre os quais se contam os de alojamento e restauração.
Ora, é fácil ver que esse critério vai favorecer as cidades com mais visitantes, nomeadamente Lisboa, por três razões: (i) como capital do País, acolhe as instituições e os serviços centrais do Estado, a que se dirigem muitos milhares de portugueses por semana; (ii) tem no quintal o principal aeroporto do País, por onde saem e entram multidões; (iii) e beneficia, no plano turístico, de um enorme acervo inigualável de património histórico do Estado (como a Torre de Belém e os Jerónimos).
Por isso, os milhões de pessoas de fora que pagam IVA no fornecimento dos referidos serviços em Lisboa, vão contribuir duas vezes para o orçamento da capital: primeiro, através dos impostos e das taxas municipais que incidem diretamente sobre esses serviços, entre as quais a chamada "taxa turística" sobre o alojamento; segundo, vão contribuir agora para avolumar a receita da quota de IVA sobre esses serviços que passa reverter a favor de Lisboa. É o que se chama acumular vantagens!
Há métodos bem engenhosos de beneficiar Lisboa, parecendo que há igualdade de tratamento. Mas não há, como aqui se prova!

sábado, 12 de maio de 2018

Congresso Internacional de Direito Eleitoral

Na semana que vem, vou participar neste Congresso Internacional de Direito Eleitoral, que se realiza em Campo Grande, capital do estado de Mato Grosso do Sul, Brasil.
Os sistemas eleitorais são, desde há muito, um dos temas eletivos da minha investigação e do meu ensino universitário. Vou abordar o tema do "O 'voto personalizado' em sistemas proporcionais - O caso das eleições do Parlamento Europeu". De facto, ao contrário de Portugal, onde os eleitores votam apenas em listas partidárias, em muitos outros Estados-membros da UE, os eleitores têm a possibilidade de manifestar também a sua preferência por um (ou mais) candidatos da lista em que votam.

Lá vai mais uma

1. O OPA chinesa sobre a EDP, incluindo a EDP Renováveis, consuma a passagem da grande empresa elétrica nacional para controlo externo, aliás exterior à UE, consolidando a crescente influência chinesa na economia nacional.
Esta transferência do controlo da empresa que domina a produção elétrica nacional - além de ser concessionária da rede de distribuição elétrica em baixa tensão (EDP-Distribuição) - resulta do processo de privatização iniciado há duas décadas e concluído em 2013, em que o Estado deixou de ter qualquer participação acionista e foi sendo substituído por investidores estrangeiros, com prevalência dos chineses na última fase.
Mais uma das grandes empresas resultantes da consolidação empresarial subsequente as nacionalizações de 1975 segue o caminho da alienação a investidores estrangeiros. Tal como a Cimpor, a PT, os CTT, a TAP. Assim emigram os famosos "centros de decisão nacional"...
Qual será a próxima?

2. A pulsão das privatizações, para tentar travar o endividamento público, e a falta de capital nacional, resultado da ausência de poupança, ditaram este desfecho. Quando o Estado precisa de vender para gastar, os capitalistas nacionais são uma espécie rara e os cidadãos em geral se endividam em vez de aforrar, só resta esperar a ajuda do capital externo.
Ainda bem que Portugal o atrai.

Adenda
Um leitor culpa a política de privatizações dos sucessivos governos nas últimas três décadas. Mas a verdade é que o Estado viu-se obrigado a privatizar por duas razões: (i) por não ter dinheiro para investir nas empresa públicas; (ii) precisar de dinheiro para conter o défice e atenuar o crescimento da dívida pública. Quando o Estado e os particulares vivem acima das suas possibilidades, o resultado só pode ser a alienação de património ao exterior.

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Geringonça (12): O teste ao PS

1. Em reação a um anterior post, perguntam-me se não reconheço nenhum mérito à própria Geringonça. Ora, apesar de não ser fã da dita, tenho de reconhecer alguns importantes méritos à sua existência, para além de ter sido condição e requisito imprescindível para a rejeição do segundo Governo de Passos Coelho e para a formação do atual Governo do PS (pois a alternativa teria sido um governo minoritário da direita, com o PS a liderar a oposição de esquerda).
Fora isso, o primeiro mérito está no facto de a Geringonça se reduzir a um acordo de incidência parlamentar limitado a algumas políticas governativas - no essencial à política de rendimentos -, o que mostra que não há condições para uma coligação governamental entre o PS e os partidos à sua esquerda, desde logo por não ser viável um programa comum de governo, muito menos um governo conjunto, dadas as enormes diferenças doutrinais e políticas entre eles.
Em segundo lugar, na prática destes dois anos, a Geringonça mostrou que só é possível num ambiente económico de "vacas gordas", suscetível de gerar o edge orçamental suficiente para pagar a pródiga política de rendimentos que ele exige, sendo impraticável fora desse quadro económico.

2. Resta o mérito mais importante.
A Geringonça foi um notável teste quando à resistência do PS à tentação esquerdista de pôr em causa o compromisso com o rigor orçamental e o equilíbrio das contas públicas, no quadro da união económica e monetária da União Europeia, e com uma "economia social de mercado", em que o papel do Estado consiste em garantir a concorrência, regular as "falhas de mercado" e assegurar o acesso universal aos "serviços de interesse geral", mesmo quando fornecidos no mercado.
Embora considerasse disparatados os alertas de "perigo vermelho" lançados por algum imprensa internacional, confesso que a minha oposição à solução de governo negociada em 2015, para além de uma questão de princípio contra alianças de governo com a extrema-esquerda, tinha a ver com fortes receios de que, dependendo de tais aliados, o PS não ia resistir à tentação esquerdista, abandonando o seu tradicional posicionamento de centro-esquerda. Ainda bem que assim não foi, em geral.

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Gostaria de ter escrito isto (21): "O meu maior orgulho..."

 
«O meu maior orgulho [como português] é esta mixórdia de povos e de raças que nós somos. O mundo inteiro deveria ser assim».
 (Miguel Gonçalves Mendes, realizador, a propósito do seu filme "Labirinto da Saudade", sobre Eduardo Lourenço, no mais recente número do Jornal de Letras).

Resposta a um crítico

1. Só uma grande dose de imaginação política e de animosidade pessoal é que poderia levar alguém a acusar-me de "alimentar o ódio à esquerda", como faz Alfredo Barroso. É uma acusação inteiramente infundada e, mesmo, despropositada.

2. Primeiro, eu sou de esquerda e peço meças (Estado social e direitos sociais, escola pública, SNS, universalidade dos serviços essenciais, laicidade, progressividade fiscal, etc.), pelo que ser acusado de "alimentar ódio à esquerda" é um contrassenso.
O que entendo é que a esquerda se conjuga no plural e que existe uma profunda diferença entre a esquerda representada pelo PS e a dos partidos à sua esquerda, entre a esquerda social-democrata e a esquerda comunista ou aparentada, entre a esquerda moderada e a esquerda radical, entre a esquerda que valoriza a economia de mercado (regulado) e a esquerda anticapitalista, entre a esquerda de governo e a esquerda de protesto.
Para além de um fundo comum - direitos dos trabalhadores, direitos sociais, igualdade e solidariedade, ainda assim com entendimentos diferentes -, há enormes diferenças doutrinárias e políticas entre essas duas famílias da esquerda - democracia liberal, economia de mercado, integração europeia, comércio internacional, disciplina orçamental -, que inviabilizam qualquer entendimento entre elas, que não seja parcial e conjuntural (como entendo que a própria Geringonça mostra).

3. Em segundo lugar, como evidencia a minha intensa produção neste blogue ao longo de 15 anos, nunca coloco nas minhas divergências com as outras esquerdas nenhum desprezo político, muito menos pessoal. Tenho adversários, não tenho inimigos. Não participo no debate político como se fosse uma guerra. Argumento contra ideias e posições políticas e não considero as preferências políticas como questões de credo ou de caráter, nem pessoalizo divergências políticas ou ideológicas.
Obviamente, quando critico as ideias e propostas das esquerdas à esquerda do PS sublinho frequentemente a sua impraticabilidade e a sua irresponsabilidade. Mas faço-o com argumentos, não com anátemas nem ataques pessoais. Chamar a isto "alimentar o ódio" é pelo menos descabido.

4. Depois de vários anos de divergência, deixei o PCP no final dos anos 80, num processo público - protagonizado  pelo "grupo dos seis" - que evidenciou as razões da rutura. Tal como outros, saí sem ressentimento nem vindictas. Desde então, tenho-me identificado continuadamente com o PS, embora sem filiação, tendo sido candidato às eleições parlamentares em 1995 (AR) e em 2009 (Parlamento Europeu), mas tendo declinado duas vezes ir para o Governo. Já lá vão três décadas, o dobro da minha filiação anterior no PCP, pelo que me considero socialista por convicção e por "usucapião".
Entretanto, mais tarde, outras pessoas com notoriedade política, como A. Barroso (que foi membro de um Governo), deixaram o PS, passando a identificar-se com o BE, por razões que expuseram publicamente. Nunca os critiquei, muito menos condenei, por isso (tendo manifestado mesmo a minha compreensão...), o que mostra a diferença de atitude. Em princípio, todos os que mudaram de partido ao longo deste anos tiveram boas razões para o fazer.
O que é difícil de entender é por que razão a minha transição política de há três décadas é maldita e outras, em sentido inverso, há três anos, são virtuosas!

Voltar ao mesmo (20): Privilégios corporativos

1. Só agora me dei conta de um relatório de um grupo de trabalho ad hoc sobre a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS), noticiado AQUI, que propõe o regresso do seu financiamento através de uma participação nas taxas de justiça, contribuição que foi extinta, e bem, em 2008.
Tendo o referido grupo de trabalho representantes das profissões interessadas, não admira tal proposta, mesmo tratando-se de decisão em causa própria e em benefício próprio. Mas, tal como antes, continuo a considerar inaceitável tal solução. O sistema de segurança social privativo dos advogados e solicitadores deve ser financiado exclusivamente pelas contribuições dos seus beneficiários, não existindo nenhuma razão para que os cidadãos comuns, que têm de utilizar o sistema de justiça sejam financiadores daquele sistema de segurança social profissional. Por definição, as taxas de justiça servem para financiar o sistema de justiça, que bem precisa dessa fonte de financiamento.
Espero obviamente que o Governo, e em especial os ministros da Justiça e das Finanças, vete esta interesseira proposta.  Mais uma vez se prova que as corporações profissionais são insaciáveis quando se trata de abancar à mesa do orçamento.

2. Há muito que defendo que a CPAS - oriunda da regime corporativo do "Estado Novo" -, não tem base constitucional, pois a CRP prevê um sistema público unificado de segurança social, para toda a gente, sem prejuízo naturalmente de sistemas complementares voluntários e autofinanciados. O que não pode haver, desde logo por exigência do princípio da igualdade, é um subsistema público de base profissional, à maneira corporativista, à margem do sistema geral de segurança social, que é universal.
Seja como for, se os advogados e solicitadores pretendem manter esse sistema privativo em regime de autogoverno e autoadministração, com as vantagens inerentes, têm de assegurar também o autofinanciamento e a sustentabilidade financeira das suas pensões e outras prestações sociais, como é próprio dos sistemas contributivos, sem beneficiarem de financiamento público externo, desviado das taxas de justiça. Autogoverno profissional com heterofinanciamento é privilégio. Ubi commoda, ibi incommoda! 
Não pode haver lugar, nesta matéria (nem em qualquer outra), para privilégios corporativos, que nenhuma outra profissão tem, nem pode ter.

terça-feira, 8 de maio de 2018

35 anos de Tribunal Constitucional

Participei na primeira revisão da CRP (1982), que criou e modelou o Tribunal Constitucional, e fiz parte da sua primeira formação de juízes (1983-1989), que inaugurou a sua vasta e influente jurisprudência.
Vou regressar ao Palácio Ratton para intervir nesta conferência internacional comemorativa dos 35 anos do TC (1983-2018), recordando a história de que fiz parte.

O que o Presidente não deve fazer (14): Ruído institucional

1. A declaração do PR, nesta entrevista, de que, no caso de uma (improvável) repetição da tragédia dos fogos florestais do ano passado, consideraria isso como impedimento à sua eventual recandidatura presidencial, não deixa de ser surpreendente, por desproporcionada, visto que que o Presidente não tem responsabilidades governativas e teve o cuidado de, alto e bom som, exigir prestação de contas ao País pelo sucedido.
A declaração é suficientemente inesperada e equívoca para ter duas interpretações, uma benévola e outra, nem tanto. Na primeira, o Presidente encontrou um meio ínvio para anunciar, a esta distância, que está a considerar a sua recandidatura, salvo eventos excecionais, que não espera; na segunda, o Presidente quis desafiar o Primeiro-Ministro a encarar a mesma situação, como quem diz: "se eu, que não tenho responsabilidades governativas, assumo plena responsabilidade por uma eventual repetição da tragédia, tu, que és chefe do Governo e responsável político pelo que acontecer, o que respondes?"
No entanto, nenhuma dessas versões deixa de suscitar perplexidade. Qualquer que tenha sido, deveria ter sido assumida explicitamente.

2. Mesmo em declarações de circunstância - o que não é propriamente o caso de uma entrevista, normalmente preparada ao pormenor -, o Presidente só diz o que quer dizer, estando fora de causa declarações precipitadas ou impensadas. Por conseguinte, tem de admitir-se que MRS quis propositadamente alimentar o equívoco sobre o que quis dizer com a referida frase.
Embora seja de admitir que o papel constitucional do Presidente lhe confere uma larga margem de discricionariedade quanto à frequência e ao conteúdo das suas opiniões e tomadas de posição públicas - desde que não afetem diretamente a competência governativa -, não parece, porém, curial que, a propósito de uma matéria tão delicada, ele tenha deixado margem para legítima especulação política. A última coisa que se deve esperar de Belém é a criação de "ruído institucional" na esfera pública.

Adenda
Perguntado sobre a declaração presidencial, António Costa retorquiu que «o Presidente não manda recados ao Governo pelos jornais». Muito bem, mas nesta declaração fica por saber se o PM não se sente destinatário de recado nenhum ou se critica o PR por utilizar um meio inapropriado para o efeito. O PM também tem direito a ser equívoco...

Geringonça (11): Os méritos do Governo

1. Houve quem me censurasse pelo meu anterior post sobre a Geringonça, por causa da omissão dos méritos do Governo no bom desempenho económico e financeiro do País. Mas é uma acusação infundada: primeiro, não era isso que estava em causa; segundo, várias vezes os destaquei ao longo destes anos.
O que sustento é que, em geral, tais méritos não existem por causa da Geringonça, mas apesar dela.

2. Vejamos os principais méritos.
O primeiro grande mérito foi a preservação da linha de rigor orçamental, cumprindo e até superando as metas de consolidação orçamental acordadas com Bruxelas (salvo quanto ao défice estrutural), depois de um primeiro aviso sério da Comissão Europeia, aquando da rejeição do draft do primeiro orçamento (2016), embora beneficiando depois de um crescimento económico na União Europeia superior ao esperado. Essa opção decisiva deu confiança aos mercados e às agências de rating, o que ajudou a descer os custos do financiamento público.
O segundo grande mérito foi não pôr em causa, no essencial, as principais reformas adotadas pelo anterior Governo durante o período de assistência financeira externa (aliás previstas no respetivo programa, negociado pelo PS), nomeadamente quanto às relações laborais, ao arrendamento urbano, às falência e recuperação de empresas, à "lei dos compromissos", ao setor empresarial do Estado, à reorganização dos tribunais, etc..
O terceiro grande mérito (last but not the least), foi a resoluta política de saneamento do setor financeiro, incluindo a decisiva recapitalização da Caixa, corrigindo porventura o pior fator remanescente de desconfiança externa em relação à solidez da retoma económica e das finanças públicas portuguesas.
Com exceção do último, tratou-se no fundamental de não mudar de rumo e não desperdiçar o que tinha sido atingido com tanto sacrifício.

3. Ora, é fácil verificar que, com exceção da recapitalização da Caixa, todas essas opções centrais do Governo do PS, que foram capitais para o seu êxito, foram tomadas e postas em execução contra a oposição dos parceiros da Geringonça, que repetidamente condenaram a preferência pela redução do défice em vez do aumento da despesa pública, propuseram reiteradamente a reversão das referidas reformas e se demarcaram das medidas de saneamento do setor bancário, salvo a Caixa (por ser pública).
Por conseguinte, os inegáveis méritos do Governo foram conseguidos apesar dos parceiros da Geringonça, e quase sempre contra eles.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

"Injustiça eleitoral"

1. Comentando o meu anterior post sobre a Geringonça, um leitor, identificado com a direita, lamenta a "injustiça eleitoral" que se traduziu no afastamento do governo que "tirou o país da crise" e no acesso ao governo do "partido que a tinha provocado", desfrutando agora da retoma económica posta em marcha pelo primeiro.
Ora, mesmo aceitando esta simplificação do processo, a verdade é que "injustiças eleitorais" semelhantes já tinham ocorrido anteriormente. Assim, em 1985, o PSD foi o beneficiário da retoma económica subsequente à crise de 1983-85, enfrentada pelo Governo presidido por Mário Soares, tendo o PS pagado pesadamente nas urnas os custos económicos e sociais da crise, que tinha sido gerada pelos anteriores governos do PSD. Mercê da ajuda da subsequente chegada dos fundos europeus, Cavaco Silva esteve 10-dez-10 anos no poder, tendo o reinado do PSD findado somente com a crise económica de 1993.
Aliás, apesar de esta última crise já estar debelada em 1995, nas eleições desse ano o PSD sofreu uma grande derrota perante o PS de Guterres, que depois esteve no governo durante seis anos, beneficiando da retoma económica e do lançamento do Euro, até à inversão do ciclo económico.
O ciclo político da alternância governativa entre o PS e o PSD tende a acompanhar, embora com atraso, o ciclo económico.

2. A lógica destas situações é, por via de regra, elementar: em termos simplistas, e salvo fatores políticos extraordinários (como por exemplo o desastrado Governo Santana Lopes em 2004/5), os eleitores tendem a punir nas urnas quem lhe vai ou foi recentemente "ao bolso" e a premiar eleitoralmente quem lhes põe dinheiro no bolso. A perceção sobre a situação económica e social é determinante.
Uma política orçamental expansionista ad hoc pode perturbar esta "lei de bronze", como aconteceu com a inesperada vitória eleitoral do PS em 2009, mas ainda aí se tratou de "meter dinheiro no bolso" dos eleitores, sobretudo dos funcionários públicos.

3. Por esta ordem de ideias, o PSD só poderá regressar ao governo depois de esgotado o atual ciclo económico, o que não parece estar para breve. A ter em conta os anteriores exemplos citados, os governos que "apanham a boleia" da retoma económica depois de uma crise não se limitam a cumprir um mandato, e até tendem a reforçar a sua votação na segunda legislatura, como sucedeu com Cavaco Silva em 1987 (maioria absoluta) e com Guterres em 1999 (à beira da maioria absoluta).
Tal é a perspetiva positiva de António Costa nas eleições do ano que vem.

domingo, 6 de maio de 2018

Contra o lóbi agrícola europeu

Eis a minha habitual coluna semanal de ontem no Dinheiro Vivo, desta vez sobre a proposta da Comissão Europeia para o próximo Quadro Financeiro Multianual (2021-27).

Geringonça (10): Uma história afeiçoada

1. O encómio da"Geringonça", na abertura deste artigo de Pedro Nuno Santos no Público, merece algumas notas à margem.
Antes de mais, o acordo não criou nenhuma "solução de governo maioritária", nem trouxe o BE e o PCP "para a esfera governativa", pois pelo menos o PCP faz questão de insistir que se trata de um Governo minoritário e que não apoia o Governo. Em várias ocasiões, o Governo teve de beneficiar do apoio da direita contra os seus alegados aliados e noutras foi derrotado por uma aliança dos mesmos com a direita, numa "geometria variável" que é típica dos governos minoritários. Nada disto quadra com a noção de "governo maioritário".
Importa também não esquecer que o acordo da Geringonça cobrou um significativo preço político ao PS, na renúncia a parcelas importantes do seu programa eleitoral, como por exemplo, o imposto sucessório, a apoio fiscal ao rendimento dos trabalhadores com baixos salários, a "condição de recursos" nas prestações sociais não contributivas, a reforma eleitoral, etc.

2. Quando aos resultados, sem negar o contributo do programa e da ação governativa para "a recuperação de rendimentos e direitos, o crescimento económico e a criação de emprego" - nomeadamente pelo aumento do rendimento disponível, contrariado, porém, pelo corte no investimento público -, a verdade é que a retoma económica já vinha de trás, desde o final de 2013, e foi essencialmente puxada pela retoma económica europeia, pelo boom turístico e pela política monetária expansionista do BCE, pelo que teria existido, mais décima menos décima, qualquer que fosse o Governo.
Não é por acaso que vários outros países europeus, com governos de outra cor política, conseguiram os mesmos resultados ou melhores, no que respeita ao crescimento económico e ao emprego.

3.  A ordem dos fatores é importante. Não foi o fim da austeridade que gerou o crescimento, mas sim o contrário: foi a retoma iniciada anteriormente na economia e no emprego que proporcionou as condições orçamentais para desativar os cortes nos rendimentos e nas prestações sociais. De resto, a própria austeridade começou a ser reduzida logo em 2015, em relação aos salários da função pública.
É óbvio que a reversão mais rápida das medidas de austeridade proporcionou uma aumento do poder de compra que ajudou a dinamizar a economia, induzindo um círculo virtuoso. Mas isso não altera a sequência dos fatores.

4. Além de ser obviamente um acordo político de via reduzida, essencialmente limitado à política de rendimentos - ficando de fora a defesa, a segurança, as relações externas, a política europeia, incluindo a política de comércio externo, etc. -, a Geringonça revelou-se sobretudo uma solução conjuntural, limitada ao atual tempo das "vacas gordas económicas", enquanto o excedente orçamental permite pagar os elevados custos da política de rendimentos imposta pelos parceiros no acordo, sem impossibilitar a política de consolidação orçamental.
Por isso, a solução de 2015 não é repetível noutras circunstâncias económicas menos fagueiras, retirando-lhe capacidade para ser uma solução de governo duradoura, para "todas as estações".

5. Por último, é pelo menos ousado defender que foi a solução governativa de 2015 que "salvou o PS do destino de outros partidos europeus da mesma família política".
A meu ver, o PS salvou-se do desastre que atingiu outros partidos social-democratas muito antes, quando, mercê do derrube do seu Governo em 2011 por uma coligação da direita e dos agora parceiros da Geringonça, e da subsequente derrota eleitoral, foi dispensado de gerir o penoso programa de assistência externa, que ele próprio tinha negociado, tendo voltado ao Governo quando o "trabalho sujo" já tinha sido concluído pela direita e a retoma da economia e do emprego já estavam em marcha.
Tivesse sido o PS a gerir o programa de austeridade, e teria sido punido nas urnas tão severamente como o foram outros partidos socialistas que não tiveram a mesma fortuna.
[revisto; aditado nº 3]

Adenda
É curioso o eco que este post encontrou na imprensa mainstream, por exemplo, AQUI e AQUI. Sucede que nada do que aqui se diz é novo neste mesmo blogue, nos últimos dois anos e meio; basta fazer uma busca nos anteriores posts desta mesma série. Por isso, não se justifica tal aranzel, salvo porventura pela proximidade do Congresso do PS e pelo debate político-doutrinário que corre no partido. Mas eu nem sequer sou filiado, sendo apenas um observador externo, ainda que interessado.

sábado, 5 de maio de 2018

200 anos de Marx

Não é preciso ter lido O Capital nem ser marxista para reconhecer duas coisas: (i) que Marx conferiu à luta dos trabalhadores e dos explorados em geral uma base doutrinária e um horizonte político sem precedentes e (ii) que foi o pensador que mais influenciou a história social e política da humanidade, mercê das doutrinas económicas, políticas, sociais e filosóficas que levam o seu nome, ou se inspiram na sua obra.
A história dos últimos 170 anos que decorreram desde o Manifesto Comunista (1848), que também passam esta ano, não teria sido seguramente a mesma, para o bem e para ao mal. Durante mais de um século, os debates e os conflitos políticos travaram-se em nome de, ou contra, o marxismo. E nem o facto de o desmoronamento do mundo soviético há três décadas ter assinalado a derrota do sistema económico e político construído supostamente em seu nome (a meias com Lénine) apaga esse impacto histórico.
E para comemorar os 200 anos do seu nascimento não precisamos de nos associar às celebrações oficiais ao PCP ou da República Popular da China, que reivindicam a sua herança, mesmo se mutilada. Há mais Marx, para além dos seus autoproclamados herdeiros político-ideológicos.

Dois séculos de constitucionalismo em Portugal

Acaba de ser publicado na revista História do Jornal de Notícias o terceiro de uma série de artigos em coautoria com o Prof. José Domingues sobre a revolução de 1820, as Cortes constituintes de 1821-22 e a Constituição de 1822, que inaugurou a era constitucional moderna em Portugal.  O presente artigo versa sobre a polémica de 1820, logo após a revolução, sobre a convocação e o formato representativo das Cortes constituintes, as primeiras na história nacional.
A série de textos explora muitas fontes textuais e iconográficas inéditas e vai abranger todos os aspetos relevantes do processo que correu entre a revolução de 24 de agosto de 1820, no Porto, contra o absolutismo, e a aprovação da Constituição, em 23 de setembro de 1822. Foram dois anos que marcaram uma das mudanças mais profundas na histórica política no País. Curiosamente, quase o mesmo tempo que durou a processo que, um século e meio depois, levou da revolução de 25 de abril de 1974 contra a ditadura, à aprovação da atual Constituição, em 2 de abril de 1976.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

Direito à habitação

Com uma semana de atraso, aqui vai o link para a minha coluna de opinião no Dinheiro Vivo de sábado passado, que versa sobre as propostas legislativas governamentais relativas à nova política de habitação, com um aplauso à principal (efetivação do direito de todos a uma habitação condigna, que é um direito social constitucionalmente protegido) e uma reserva sobre uma política complementar (a política de "renda acessível" para a chamada "classe média").

Rutura

A saída de José Sócrates do PS, de que foi secretário-geral - hoje anunciada num artigo no JN -, era expectável a partir do momento em que o PS decidiu abandonar o "pacto de silêncio" interno sobre as gravíssimas acusações penais e políticas que impendem sobre ele. E é evidente que a sua acertada decisão põe fim a um constrangimento que se vinha tornando altamente nocivo para o partido.
Sócrates não pode queixar-se de "condenação antecipada sem julgamento", visto que o mal-estar do PS (e não só) é independente da condenação, ou não, em sede criminal. Sem necessidade de enunciar todos os factos incontroversos que são política e moralmente comprometedores (como, por exemplo, a publicação de um livro sem mencionar publicamente a colaboração recebida de terceiros), a verdade é que, mesmo na narrativa do antigo primeiro-ministro sobre os generosos e continuados "empréstimos" do amigo empresário - que sempre escondeu -, ela mesma mostra que ele levou uma vida claramente acima das suas possibilidades, a expensas alheias, ainda enquanto primeiro-ministro, e depois de deixar de o ser, o que se não coaduna com o contenção e a discrição (para não falar da não dependência económica de terceiros) que se exigem a um líder e a um primeiro-ministro socialista, ainda menos quando pautou a sua governação por uma exigência de rigor orçamental e, depois da crise, de austeridade orçamental. O rigor financeiro começa nas contas pessoais.
Para além do juízo criminal, que compete exclusivamente aos tribunais, há o juízo político, que cabe à coletividade política. Para além da lei e da sanção pela sua violação, há a "ética republicana" no exercício de cargos políticos e a censura pelo seu incumprimento. Nesses dois foros, todos os cidadãos são juízes.

Adenda
Além de ficar grato pelo autoafastamento do seu ex-líder, libertando-o do constrangimento criado, o PS ganha mais legitimidade e mais autoridade para denunciar publicamente os graves atropelos da Constituição e da lei no processo penal contra ele e para defender a sua ação à frente de um dos governos mais clarividentes e mais reformistas que tivemos (e que integrou vários dos ministros do atual Governo), até ser atropelado pela crise financeira de 2008 e afastado pela aliança entre a direita e a extrema-esquerda parlamentar em 2011.

Adenda 2
A defesa que Sócrates faz de Manuel Pinho revela lealdade e coerência, mas tem um problema: é que, ao contrário dele mesmo, que nega e refuta desde o início, sem desfalecimento, as acusações de que é alvo, Pinho não se deu ao cuidado de desmentir a grave acusação que veio a público. Sob o ponto de vista penal, é obviamente ao Ministério Público que cumpre provar a acusação, mas politicamente o silêncio do ex-ministro é insustentável, até porque, a ter existido, a sua conduta não tem somente eventual relevância penal, constituindo, antes de mais, uma gravíssima violação da ética política.

+ Europa (9): Contra a corrente doméstica

1. Divergindo da curiosa unanimidade política que se instalou entre nós na apreciação negativa da proposta da Comissão relativa ao "Quadro Financeiro Plurianual" da União Europeia para 2021-2027, eu penso que ela vai na boa direção.
Tendo de contar com a perda da contribuição financeira do Reino Unido - que é a segunda mais importante, depois da Alemanha - e havendo necessidade de financiar novas áreas de interesse primordial para a União - como a segurança, a defesa, a imigração, a investigação e a inovação -, a única solução, para além de um previsto aumento das receitas, terá de ser a de reduzir as verbas das mais pesadas rubricas de despesa da União, nomeadamente a política agrícola comum (PAC) e política de coesão (fundos estruturais), como mostra a figura acima.
É fácil ser contra a redução de certas despesas da União quando elas nos beneficiam e são pagas pelos outros. Mas, nas palavras da Comissão, com que concordo, a proposta «alinha o orçamento com as prioridades políticas atuais» da União.

2. De resto, o corte nessas rubricas é assaz moderado (cerca de 6%), visto que a cobertura da perda britânica e o financiamento das novas necessidades são assegurados em grande parte por um aumento de receitas, derivado quer de um ligeiro aumento das contribuições do Estados-membros, quer de novos recursos próprios, o que é de saudar.
Para Portugal, em particular, é muito mais  importantes beneficiar de apoios acrescidos para ciência e inovação, que são essenciais para melhorar a produtividade e a competitividade da economia nacional em geral, bem como dos novos programas propostos para apoiar reformas e o investimento nos Estados-membros, do que gastar milhões e milhões em ajudas diretas aos rendimento dos empresários agrícolas, de que beneficiam sobretudo os maiores.
O orçamento da União não pode continuar refém do pequeno mas coeso e fortíssimo lóbi agrícola.

quinta-feira, 3 de maio de 2018

Nos 70 anos da DUDH

As minhas primeiras declarações públicas depois de ter sido nomeado comissário das comemorações dos 70 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) e dos 40 anos da adesão de Portugal à Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH). No Diário de Coimbra de hoje.

Um péssimo serviço à causa palestina

1. Sempre apoiei a causa palestina pelo fim da ocupação e da anexação israelita e pelo reconhecimento do Estado da Palestina (sem pôr em causa a existência do Estado de Israel). E sempre separei a condenação da repressão israelita e da instalação dos colonatos nos territórios ocupados em relação a qualquer atitude antijudaica, de que jamais compartilhei, apesar de Israel se definir como Estado judaico.
De resto, a minha oposição não visa o Estado de Israel mas sim a sua política ilegal de expansão territorial e de repressão dos palestinos. Os sofrimentos dos judeus sob o nazismo (e não só) não podem justificar os sofrimentos infligidos por Israel aos palestinos. E estar contra o expansionismo israelita nada tem a ver com antissemitismo, como o Governo de Israel sempre acusa, instrumentalizando demagogicamente a justa recusa daquele.

2. Por isso, não posso deixar de me revoltar com as declarações há dias proferidas pelo chefe do governo palestino, Mahmud Abbas, segundo as quais, na informação da BBC, «the Jewish question that was widespread throughout Europe was not against their religion, but against their social function, which relates to usury and banking and such».
Quando passam no final deste ano 80 anos sobre a "Noite de Cristal" (destruição maciça das montras dos estabelecimentos de judeus), que marcou uma escalada na ofensiva antijudaica na Alemanha nazi, rumo à "solução final" (o plano de extermínio), as palavras do líder palestino, ignorando o genocídio judaico, não são somente uma infâmia, são também um enorme tiro no pé da causa palestina, só servindo para dar argumentos a Israel e para alienar apoiantes de sempre.
Com lideres destes, a Palestina não precisa dos inúmeros inimigos que tem...

Adenda (4/5)
Apesar de tardio, este pedido de desculpas de Abbas é bem-vindo, mas não apaga todo o mal que as suas inaceitáveis declarações causaram à causa palestina.

terça-feira, 1 de maio de 2018

Aplauso (8): Colóquio sobre a Shoah e outros genocídios

Aplauso para este colóquio da Universidade Nova de Lisboa sobre o Holocausto e outros genocídios, organizado, entre outros, pela conhecida historiadora Irene Pimentel.
Quando passam 70 aos sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que é antes de mais uma condenação universal aos horrores do nazismo e da II Guerra Mundial, importa recordar e tirar lições dessa negação absoluta da vida e da dignidade humana que foi o plano nazi de extermínio dos judeus durante a Guerra.

Comissário de uma boa causa

Acaba de ser publicada a Resolução do Conselho de Ministros que decidiu organizar uma celebração dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e os 40 anos da adesão de Portugal à Convenção Europeia de Direitos Humanos, nomeando um Grupo de Trabalho interministerial para dinamizar e coordenar as comemorações. Uma boa ideia!
Convidado para a função de "comissário" do Grupo de Trabalho para as comemorações, não tinha como recusar, tendo em conta as minhas responsabilidades de décadas com o estudo, o ensino e a promoção dos direitos humanos. Há causas que merecem a pena e desafios a que se não pode dizer não!

segunda-feira, 30 de abril de 2018

Livro de reclamações (23): Complicadex

A ADSE (subsistema de saúde dos funcionários públicos) oferece aos beneficiários a possibilidade de solicitarem por via da Internet o reembolso de despesas de saúde pagas a prestadores não convencionados. Mas só na aparência!
Depois de aceder à página de beneficiário no site da ADSE com as devidas credenciais pessoais, é preciso preencher o formulário eletrónico disponibilizado com os dados necessários: NIF do prestador, tipo de prestação, data e valor do serviço. É necessário também digitalizar a fatura do serviço e enviá-la, junto com o requerimento, por via eletrónica.
A surpresa vem quando, julgando estar tudo concluído, recebemos, ato contínuo, a instrução de... imprimir e enviar tudo, junto com a fatura original, para um endereço postal indicado! A pergunta óbvia é: então para que serve o envio do requerimento e da cópia da fatura por via eletrónica?
Esta duplicação de vias, num serviço supostamente online, é verdadeiramente surreal e desafia qualquer ideia de simplificação administrativa, de administração sem papel e de procedimentos user-friendly.
Como já se tinha verificado antes, a propósito do cartão de beneficiário, o Simplex ainda está por chegar à ADSE!

O que o Presidente não deve fazer (13): Um veto problemático

1. O veto presidencial do da chamada "Lei da Uber" apresenta argumentos assaz questionáveis, baseados num confronto parcial entre o regime dos táxis e o "modo Uber".
Desde logo, além das vantagens mencionadas de que gozam os táxis, elas incluem também generosas isenções fiscais, de que as novas plataformas digitais de transporte não beneficiam. Do mesmo modo, a contingentação e as tarifas fixas não são handicaps dos táxis mas sim vantagens, conferindo-lhes um mercado protegido na sua atividade, ao contrário do "modo Uber", que é um mercado aberto e concorrencial, quer quanto à oferta quer quanto aos preços (apesar do "excesso regulatório" da lei agora vetada, como mostrei AQUI).
O decreto da AR vetado pelo PR acaba por impor aos operadores e às plataformas eletrónicas as mesmas obrigações de serviço público dos táxis (obrigação de prestar serviço, transporte de pessoas de mobilidade reduzida e de animais domésticos, etc.), sem gozarem das mesmas vantagens e, mesmo, com exigências acrescidas (idade dos veículos, limitação do tempo de trabalho diário, etc.).
Se existe desigualdade de condições, ela favorece os táxis.

2. O PR defende que a contribuição regulatória prevista para a nova modalidade de transporte deveria ser mais elevada, de modo a diminuir a diferença de preços existente em relação aos táxis.
Ora, os táxis não estão sujeitos a nenhuma contribuição, o que ofende o princípio da igualdade, e não faz sentido utilizar uma contribuição regulatória para outro fim que não seja financiar a autoridade reguladora, como mostrei num texto anterior (AQUI). Transformar, inconstitucionalmente, uma contribuição regulatória num imposto compensatório de alegadas prejuízos causados aos táxis não "lembraria ao careca", parafraseando uma expressão popular de que o PR gosta.

3. Por último, é pena que o veto presidencial não mencione sequer um ponto primordial desta questão, que é o interesse dos utentes e as vantagens que a nova modalidade de transporte veio trazer à mobilidade urbana, quer em si mesma quer nas transformações que ela está a provocar nos próprios táxis.
Se o problema, afinal, se resume ao facto de os operadores da nova modalidade de transporte praticarem preços mais competitivos para os utentes - apesar de não gozarem das vantagens fiscais e outras dos táxis e de não incorrerem em evasão tributária, tão frequente nestes -, a solução é simples. Em vez de fazer elevar artificialmente os preços daqueles, através da sobrecarga de uma contribuição que os segundos não pagam, e que vai ser suportada pelos utentes com preços mais altos, a solução está em abolir as tarifas fixas dos táxis e permitir-lhes concorrer nos preços com os novos operadores!
Mas é isso que os táxis desejam?!

domingo, 29 de abril de 2018

Praça da República (2) - Retorno da regionalização administrativa?

1. O recente acordo entre o PS e o PSD acerca da descentralização, na parte em que prevê uma "2ª fase da descentralização" e a instituição de uma comissão independente para estudar e fazer propostas sobre um nível de administração territorial "subnacional", fez surgir de novo a especulação sobre a intenção de fazer ressurgir o projeto de regionalização, congelado há vinte anos, desde o referendo que a rejeitou.
Mas é evidente que, apesar de fazer parte do modelo de Estado unitário descentralizado previsto na CRP desde 1976, a instituição das "regiões administrativas" (para as distinguir das regiões autónomas dos Açores e da Madeira) está obrigatoriamente dependente, desde a revisão constitucional de 1997, de um referendo (único referendo obrigatório na Constituição). E é manifesto que não está na agenda política nem mudar a Constituição, para afastar a necessidade de referendo, nem convocar um novo referendo, sendo improvável que o processo possa ser retomado enquanto houver dúvidas sérias sobre o êxito de um novo referendo.

2. O que não foi devidamente notado foi o facto de o referido acordo sepultar definitivamente as duas propostas do PS para esta legislatura, de criar efetivamente um nível de administração territorial subnacional e transmunicipal dotado de legitimidade eleitoral própria ou derivada, através da transformação das atuais "áreas metropolitanas" de Lisboa e do Porto em autarquias metropolitanas, dotadas de atribuições próprias e de órgãos diretamente eleitos, e através da eleição, embora indireta, das direções das atuais cinco áreas de administração regional do Estado (CCDRs).
Embora sem retomarem o processo de regionalização, as primeiras seriam verdadeiras autarquias regionais, ou seja, um nível de descentralização territorial entre os municípios e o Estado. E as segundas, embora mantendo-se como expressão de desconcentração da administração territorial do Estado, sem atribuições próprias, este perderia, porém, o seu comando, visto que a sua direção passaria a ser eleita pelas autarquias locais da sua área territorial, tornando-se um híbrido de entidades regionais do Estado com gestão entregue às autarquias locais (uma espécie de "regionalização delegada"). A primeira proposta já tinha sido abandonada (AQUI); a segunda morre também agora, com este acordo com o PSD.

3. É desnecessário dizer que a regionalização do Continente, através da criação de autarquias regionais entre o Estado e os municípios, continua prevista na Constituição e não pode ser um tabu político.
Todavia, para a retoma do projeto de regionalização vir a ter um mínimo de viabilidade, precisa de provar concludentemente que não vai implicar nem a criação de mais centros de poder territorial, nem mais despesa pública, e que vai trazer inequívocas mais-valias em termos de proximidade, responsabilidade e eficiência do poder público.
Nesta perspetiva, as hipotéticas autarquias regionais deveriam corresponder às atuais circunscrições das CCDRs e das áreas metropolitanas (Lisboa e Porto), que seriam autarquias regionais de per si. De facto, não faz sentido, nas regiões metropolitanas de Lisboa e do Porto acrescentar mais dois níveis autárquicos (autarquia metropolitana e autarquia regional) aos dois já existentes (freguesias e municípios), o que daria quatro níveis de administração infranacional!

4. Na recente discussão sobre a proposta de criação das autarquias metropolitanas de Lisboa e do Porto, entretanto abandonada, um dos argumentos contrários resultou da prevista eleição semidireta do presidente da junta regional, que seria o primeiro nome da lista mais votada para a assembleia metropolitana, à imagem do que hoje sucede nas freguesias.
De facto, pode considerar-se que essa solução multiplicaria os perigos da atual hiperpresidencializição do poder local, que aliás seria potenciada pela maior escala territorial. Sucede, porém, que a CRP, na versão da revisão de 1997, só admite como alternativa a eleição direta da própria junta regional, sendo presidente o primeiro nome da lista vencedora, como hoje sucede nos municípios, o que seria uma solução ainda pior, em termos de personalização e presidencialização do poder regional.

5. Um dos argumentos recorrentes contra a instituição das regiões consiste em acusá-las de falta de identidade territorial e de tradição na história da nossa organização administrativa. O próprio nome puramente descritivo de "região administrativa" seria prova disso.
Por isso, há muito defendo que as futuras autarquias regionais deveriam adotar o nome tradicional de "províncias", bem como as designações históricos destas, que mantêm um enorme peso etno-cultural, o que já sucede no caso do Alentejo e o Algarve, mas que deveria estender-se às regiões Norte e Centro, que poderiam designar-se por Entre-Minho-e-Douro e Beiras, respetivamente.
Quando de trata de territórios, os nomes próprios contam.

sábado, 28 de abril de 2018

Gostaria de ter escrito isto (21): A negação da deontologia jornalística

«A suposta reportagem da SIC, entre outros atropelos éticos que não vêm agora ao caso e que não têm que ver com o segredo de justiça, rebaixa-se ao hediondo de substituir o preceito deontológico de “ouvir todas as partes com interesses atendíveis na matéria” pelos filmes em que os arguidos respondiam ao interrogatório policial. Ou seja, para simular que respeitava aquele dever deontológico, a SIC “foi ouvir” os acusados defenderem-se das acusações por ela lidas e ilustradas a partir do texto da acusação através... do próprio interrogatório a que foram submetidos! Não me recordo de ter assistido, em democracia, a tão repugnante entrega do papel do jornalista a procuradores e juízes. Total confusão de papéis, completa mistura de planos e violação declarada dos deveres para com os acusados e para com o público. Não estou a falar de lei, estou a falar de deontologia jornalística. (...)
Mas não há importância ou singularidade de um processo judicial que suspenda todos os direitos dos investigados, confira exceção absoluta de procedimentos legais, substitua os tribunais pelo julgamento popular, dispense a prova por existir convicção. Estes são os fundamentos do populismo que, como é sabido e é tristemente patente nesta Europa a que nos deixámos chegar, opera sempre do mesmo modo: escolhe e denuncia impasses políticos verdadeiros e problemas sociais reais; explica-os através de origens deturpadas e razões falsas; e propõe-se resolvê-los através de medidas radicais, excecionais e antidemocráticas.»
(Jorge Wemans, «A insustentável leveza dos filmes do senhor procurador», no Público de hoje).

Voltar ao mesmo (19): Congelar os despejos?!

1. É óbvio que a principal razão dos despejos nos arrendamentos é, de longe, a falta de pagamento da renda, ou seja, incumprimento da principal obrigação contratual dos inquilinos. Por isso, não faz sentido esta notícia de que "o PS estuda proposta para congelar despejos até novas leis do arrendamento".
Não é preciso ter estudado direito para saber que quando uma parte num contrato não cumpre as suas obrigações, a outra tem o direito potestativo de terminar o contrato. O contrato de arrendamento não, é nem pode ser, uma exceção. Mesmo nas muitas décadas em que vigorou um quase aniquilamento do mercado de arrendamento (contratos sem termo, rendas congeladas, etc.), nunca se foi tão longe na violação dos princípios mais elementares do direito civil e das regras do mercado.

2. É certo que, em grande parte dos casos, a falta de pagamento se deve a carências económicas supervenientes dos arrendatários (causadas por desemprego e outras causas). Mas por isso é que deve haver um subsídio de renda para arrendatários sem meios económicos, aliás previsto na lei do arrendamento de 2012, sem ter sido implementado até agora (estando agora de novo incluído no pacote de política de habitação apresentado pelo Governo há dias). 
Em vez de proibir os despejos, tornando os senhorios, ilegitimamente, em responsáveis forçados do direito à habitação que incumbe ao Estado, melhor fora pôr em vigor desde já o subsídio de renda em falta. Tal como todos os demais direitos sociais, a efetivação do direito à habitação constitui uma obrigação do Estado, não dos que oferecem habitações no mercado de arrendamento.

Adenda
Informam-me que o proposto congelamento não abrange dos despejos por não pagamento da renda, o que altera a gravidade do caso. Mas sempre permanece a imposição de obrigações de proteção social aos senhorios que por acaso tenham inquilinos nessas condições, alterando supervenientemente as regras do jogo.

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Capitalismo v democracia



1. A tese tradicional da esquerda anticapitalista acerca da incompatibilidade histórica entre capitalismo e democracia depende obviamente da sua rejeição da democracia liberal como "verdadeira democracia".
De facto, se se considera a democracia liberal, o contrário é que é verdade, ou seja, a plena compatibilidade. A democracia liberal nasceu, embora tardiamente, no âmbito do capitalismo e não existe fora desse ambiente. Por outro lado, as poucas tentativas de superar o capitalismo num quadro de democracia liberal acabaram em geral em desastre económico e político, como está a ocorrer agora na Venezuela.
Bem entendido, o capitalismo não postula a democracia liberal, longe disso, como testemunham as inúmeras variantes de "democracia iliberal" ou de autocracias autoritárias e repressivas, incluindo o fascismo propriamente dito. Mas na experiência histórica a democracia liberal pressupõe a economia de mercado (nome "técnico" ou neutro do capitalismo).

2. As noções de democracia contrapostas à democracia liberal, nomeadamente de "democracia socialista" ou de "democracia popular", são, por definição, antiliberais, e a verdade é que em qualquer das suas variantes históricas elas nunca foram compatíveis com a liberdade e a oposição política e com as liberdades individuais em geral, tendo sempre redundado em ditaduras de partido único e de subjugação da liberdade individual ao poder do Estado e tendo abandonado desde cedo as veleidades iniciais de uma genuína "democracia de conselhos" ou de "autogestão democrática".
E quanto à moderna "democracia participativa", por mais avançadas e variadas que sejam as suas formas operativas, ela nunca conseguiu erigir-se em modelo alternativo de exercício do poder político ao nível macrossocial ou estatal.

3. No grande debate histórico entre Locke e Stuart Mill, por um lado, e Rousseau e Lenine, por outro, o século XX atribuiu uma clara vitória aos primeiros, ou seja, à democracia liberal, limitada pelas liberdades individuais e pelo Estado de direito, sobre a democracia absoluta, onde a alegada "vontade geral", encarnada no Partido e no Estado todo-poderosos, prevalece sobre a sociedade civil e sobre os indivíduos. Falharam todas as tentativas teóricas de desenhar um modelo operacional de democracia anticapitalista compatível com as liberdades individuais.
Mas esse embate entre democracia liberal e democracia autocrática, dirimido em favor da primeira em 1989, com o desmoronamento do mundo soviético, foi o mesmo que opôs o modelo da economia de mercado, baseado na liberdade económica e na concorrência, ao da economia "socialista", baseado na apropriação coletiva e na planificação estatal da economia. A vitória da democracia liberal foi também o triunfo da economia de mercado. Não por acaso...

4. Tal como a economia de mercado, também a democracia liberal apresenta diferentes versões, quer no seu desenvolvimento histórico que nas geografias em que vigora.
Entre as variáveis relevantes conta-se, para além das diferenças sociológicas e institucionais (tipo de Estado, sistema eleitoral e sistema de partidos, sistema de governo, etc.), o nível de garantia dos serviços de interesse geral e dos direitos sociais, ou seja, as diferentes modalidades do welfare state. Mas, sejam quais forem essas diferenças, há sempre uma matriz comum, que tem a ver com a legitimidade do poder assente na "vontade popular" baseada em eleições pluripartidárias, limitada pelo respeito das liberdades individuais e nos direitos das minorias.

quinta-feira, 26 de abril de 2018

Praça da República (1): Mandato dos deputados

O Presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, suscitou ontem, no seu discurso na sessão comemorativa do 25 de Abril, uma reflexão sobre uma possível limitação dos mandatos dos deputados e a sua exclusividade.
Quanto ao estabelecimento de um limite de mandatos consecutivos - que considero justificada, em nome de um princípio republicano de renovação da representação política -, uma tal limitação precisaria, porém, de  revisão constitucional, visto que a CRP só autoriza tal limitação em relação a cargos executivos (e só está estabelecida para os presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais).
Quanto à exclusividade dosdeputados, não me parece aconselhável estabelecê-la com caráter absoluto, salvo a incompatibilidade com determinadas profissões, por me parecer desproporcionada e por afastar gente qualificada da ação parlamentar. O que pode e deve ser feito, porém, é favorecer a exclusividade, estabelecendo uma diferença substancial entre a remuneração de um e de outro regime, revendo a ridícula diferença atualmente existente. E para isso não se torna necessária nenhuma revisão constitucional prévia. Assim o queiram os partidos com representação parlamentar.

Não dá para entender (5): O contrário de descentralização

Outra reserva ao "pacote" legislativo anunciado pelo Primeiro-Ministro sobre a nova política de habitação - que já comentei AQUI - tem a ver com a responsabilidade territorial pela sua implementação, prevendo-se um papel excessivo do próprio Estado central, mesmo no disponibilização de habitações e na gestão do parque habitacional.
Ora, tendo em conta o princípio constitucional da subsidiariedade no que respeita à repartição territorial das tarefas publicas, parece-me que toda a política de habitação social e de disponibilização de habitação em renda acessível devia ser uma tarefa municipal (ou intermunicipal), deixando para o Estado somente o subsídio de renda para famílias carenciadas, que é a peça fundamental de garantia do direito à habitação e que deve ter uma solução nacional.
No momento em que se define uma reforma descentralizadora do País, focada na transferência de competências do Estado para os municípios, não se entende que se lancem mais tarefas sobre o Estado central, numa área em que por essa Europa fora são os municípios que se encarregam dela. Num Estado descentralizado não faz sentido um Estado-senhorio!