sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Corporativismo (11): Pôr as Ordens na ordem

1. Em relação ao meu anterior post sobre a Ordem dos Enfermeiros, um leitor pergunta que meios legais é que o Estado tem à sua disposição para obrigar a Ordem dos Enfermeiros (ou outra nas mesmas circunstâncias) a cingir-se às suas atribuições oficiais.
Sem ser este o lugar para um exercício de jusconsultoria, entre esses meios poderiam referir-se não somente os instrumentos típicos proporcionados pela justiça administrativa para pôr cobro à ação ilícita de qualquer entidade pública, mas também os meios que a própria Lei-Quadro das ordens profissionais menciona expressamente, quer diretamente, quer por remissão para a lei de tutela das autarquais locais (que se aplica às ordens com as necessárias adaptações).
Assim, por exemplo, o Governo pode ordenar inspeções às ordens e proceder de acordo com as conclusões apuradas, podendo inclusive transmiti-las ao Ministério Público, para efeitos judiciais de perda de mandato ou de dissolução de órgãos das ordens que, nos termos da lei, "incorra[m], por acção ou omissão dolosas, em ilegalidade grave, traduzida na consecução de fins alheios ao interesse público".
Para bom entendedor...

2. É tempo de assentar definitivamente que as ordens profissionais não são "grupos de interesse" privados para defesa de interesses corporativos, de acordo com o livre alvedrio dos seus associados ou os caprichos dos seus dirigentes.
Embora tenham uma base associativa, as ordens não constituem uma expressão da liberdade de associação, nem na sua criação, nem na sua filiação, nem na sua atividade. Elas integram o poder público e os seus poderes só podem ser utilizados para proseguir o interesse público que lhes foi legalmente confiado. Apesar de serem uma expressão de autorregulação e de autodisciplina profissional, elas exercem esses poderes a título oficial, em nome e por delegação do Estado.
Por isso, as suas decisões são atos administrativos, as normas que aprovam são regulamentos administrativos e as suas quotas e taxas constituem formas de tributação.

3. Por conseguinte, embora sendo entes de "administração autónoma", as ordens não gozam de independência absoluta face ao Governo, que mantém poderes de "tutela de legalidade" da sua ação, quer a título preventivo (aprovação de certos regulamentos), quer a posteriori (tutela inspetiva).
E, como é próprio de um Estado de direito, as ordens, como quaisquer outras entidades públicas, estão obviamente sujeitas ao escrutínio judicial das suas ações e omissões, nomeadamente dos tribunais administrativos.
Ora, os órgaos das ordens, a começar pelos bastonários, não podem invocar ignorância em nada disto. Basta ler a lei (ou seguir este blogue!...).

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Puerta del Sol (3): Preocupante

1. Durou apenas oito meses o governo minoritário do PSOE em Espanha (junho de 2018). Como aqui se antecipou, o Governo não gozava de fundamentos políticos consistentes, pois que apoiado numa heteróclita aliança parlamentar multipartidária de circunstância, sem nenhum cimento a uni-la, salvo então a vontade comum de derrubar o Governo do PP.
Como era de prever, a rutura ocorreu com a rejeição do orçamento para 2019 - só agora votado -, vítima do voto contra dos separatistas catalães, que sujeitaram o seu apoio à aceitação pelo Governo de Madrid de um referendo sobre a autodeterminação da Catalunha, o que obviamente não podia ser aceito por Sánchez.

2. Não havendo alternativa à convocação de eleições antecipadas, as sondagens eleitorais agregadas pelo El País (na imagem) apontam para uma vitória do PSOE (com cerca de 25%), porém com uma provável maioria parlamentar dos três partidos da direita nacionais somados, o que facultaria a repetição a nível nacional do recente cenário político da Andaluzia, ou seja, um governo das direitas, apesar da vitória eleitoral socialista.
A verificar-se esse desenlace, a direita nacionalista espanhola reunida no Vox (que já tem estimativas de voto acima dos 10%) entraria na área do poder em Madrid. Preocupante!

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Praça da República (9): O "esquecimento" da descentralização

1. Esta notícia de mais uma injeção de dezenas milhões de euros do Estado nos transportes urbanos do Porto, suscita a seguinte questão: a que propósito é que num país que constitucionalmente está sujeito aos princípios de descentralização territorial e da subsidiariedade Estado, este há-de continuar a ser dono e a sustentar transportes públicos locais?
Se a este financiamento orçamental direto acrescentarmos o esquema recentemente inventado de também pôr a cargo do orçamento do Estado uma generosa subvenção das tarifas dos transportes coletivos locais - que obviamente vai beneficiar sobretudo os dois maiores municípios -, temos o quadro de uma maciça subsidiação dos municípios de Lisboa e do Porto pelos contribuintes de todo o país.
Se já pago os transportes locais do meu próprio município, a que propósito é que hei-de financiar também os transportes coletivos de Lisboa e do Porto?

2. Trata-se de uma gritante lacuna do processo de descentralização em curso, que observou uma óbvia conspiração de silêncio nesta matéria.
Apesar de os transportes locais deverem ser uma competência municipal, parece que temos de esperar pela sempre adiada regionalização administrativa do Continente para libertar o Estado e os contribuintes nacionais daquele encargo. Se tal é a condição, então que venha a regionalização!

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Euroeleições 2019 (2): Aplauso para o PS

1. É de registar o impressionante investimento político do Partido Socialista nestas eleições europeias, incluindo a realização semanal de "convenções" distritais - sempre com a presença do seu secretário-geral, António Costa -, insistindo tanto na importância crucial da União Europeia para o desenvolvimento em Portugal e a afirmação externa o País, como na urgência em enfrentar os problemas com que se debate a União (como, por exemplo, a reforma da zona euro, o reforço dos recursos financeiros próprios, etc). A mesma preocupação decorre da escolha de um dos ministros mais prestigiados deste Governo para liderar a lista de candidatos do PS, a anunciar oficialmente na convenção nacional do próximo sábado.
Com este esforço, o PS não respeita somente o seu legado de principal partido europeísta em Portugal, desde Mário Soares, mas também procura reforçar a sua posição de relevo na bancada socialista no PE.

2. Por certo, nestas eleições europeias está em causa também o Governo socialista - sendo elas um "ensaio" para as eleições parlamentares de outubro - e até o próprio António Costa, obrigado a ganhar estas eleições europeias por margem bem mais folgada do que a minguada vitória do PS em 2014, que lhe deu motivo para desafiar com êxito a liderança de Seguro.
Mas é evidente que António Costa até teria mais vantagem em travar estas eleições num registo nacional, dados os bons resultados do seu Governo, em vez de colocar na agenda eleitoral as mais importantes questões da política europeia, com que infelizmente muitos cidadãos não estão familiarizados.
Por isso, o esforço do PS tem de ser positivamente cotado como exercício sério de reconhecimento da autonomia e importância intrínseca das eleições europeias e também de promoção da cidadania europeia e de respeito pela opinião pública europeia.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Greves nos serviços públicos

1. Eis o cabeçalho da minha coluna do fim de semana passado no Dinheiro Vivo (suplemento económico do Diário de Notícias e do Jornal de Notícias), onde defendo explicitamente (e fundadamente) uma revisão da lei da greve no que respeita aos serviços públicos.

2. Não tenho a ilusão de esse tema entrar no debate político num ano eleitoral e não ignoro o potencial de conflito à esquerda, entre o receio de desafiar a ira dos sindicatos e o risco de contemporizar com os enormes prejuízos que o complacente regime da greve atualmente em vigor (sem falar sequer no financiamento por crowd-funding...) pode causar nos serviços públicos e nos seus utentes, em especial os mais vulneráveis, que não podem mudar-se para o setor privado (onde não há estas greves...).
A greve recorrente dos enfermeiros às cirurgias ilustra o que deve ser evitado, sob pena de grave irresponsabilidade política. Com a inação da esquerda, estas greves podem estoirar com o Estado social baseado em serviços públicos - e a direita agradece a prenda!

Euroeleições 2019 (1): Levar a sério as eleições europeias

1. Há muito tempo que as eleições do Parlamento Europeu não eram tão importantes como as deste ano.
Primeiro, pelos problemas com que se defronta a União: um Brexit traumático, a deriva nacionalista em alguns Estados-membros (Hungria, Polónia, Itália), a reforma inconclusa da união monetária e da união bancária, as ameaças ao sistema multilateral de comércio internacional; segundo, pelo preocupante crescimento do apoio político dos partidos e movimentos antieuropeístas, de origem populista, nacionalista e soberanista, em vários países da União.
Há um risco sério de alteração da relação de forças na composição do PE, com enfraquecimento dos dois partidos europeus que têm sido os pilares da integração europeia - o Partido Popular Europeu e o Partido Socialista Europeu - e com reforço das posições nacionalistas e soberanistas, à sua direita e à sua esquerda, cujo propósito não escondido é a de minar a União por dentro.

2. Por isso, estas eleições europeias devem deixar de ser definitivamente "eleições secundárias", travadas num registo político nacional, em que os eleitores aproveitam para mostrar uma "cartão amarelo" ao governo nacional em funções, para passarem a ser o que devem efetivamente ser, ou seja, as eleições em que se definem as grandes opções sobre o futuro da União, sobre as suas políticas e sobre o governo da União.
Os partidos políticos nacionais que travam estas eleições devem expor claramente as suas posições sobre a política e o governo da União, em consistência com as dos partidos europeus que integram,incluindo o apoio explícito aos candidatos a presidente da Comissão por eles propostos, em vez de cederem à tentação de flirts oportunistas com a onda populista contra a União.

Adenda
Confirmando um dos argumentos supra, este estudo estima que nas próximas eleições europeias os partidos antieuropeístas poderão alcançar um terço dos lugares do PE (atualmente são menos de um quarto), colocando em risco as políticas da União que carecem de apoio político alargado, como a defesa e relações externas, migração e asilo, defesa do Estado de direito, política fiscal, etc. Portugal não pode contribuir para esse retrocesso!

Corporativismo (10): A Ordem fora da lei (bis)

[Fonte da imagem: aqui]
1. Numa entrevista a uma rádio, a bastonária da Ordem dos Enfermeiros considerou natural o seu apoio público à greve nas cirurgias, ficando "do lado dos enfermeiros". Trata-se, porém, de um sofisma.
De facto, como as relações laborais não fazem parte do "objeto" legal das Ordens (mas sim dos sindicatos), elas não podem tomar partido em conflitos laborais (muito menos em greves), devendo observar absoluta distância em relação a eles, tanto mais que neste caso nem sequer se trata de reivindicações comuns a todos os enfermeiros, mas apenas aos do SNS.
Aliás, se porventura lhe fosse lícito tomar posição nesse conflito (o que não é o caso, repita-se), então a bastonária deveria colocar-se contra a greve, quer porque, sendo a Ordem uma entidade pública, deve tomar partido pelo interesse público que lhe incumbe prosseguir contra os interesses particulares dos grevistas (tanto mais que neste caso está em causa o serviço público de saúde), quer porque a lei-quadro das ordens estipula enfaticamente que a primeira atribuição das ordens profissionais consiste na defesa dos interesses dos utentes dos serviços profissionais em causa, ou seja, neste caso, dos doentes à espera de cirurgias, cuja saúde é colocada em risco com a greve.

2. Infelizmente, como se viu, a bastonária não se limitou a declarar o seu apoio à greve, como ocorreu ocasionalmente com bastonários de outras ordens profissionais da saúde em situações passadas. Neste caso, assistiu-se a um apoio continuado e militante, no terreno, tornando-se a bastonária numa espécie de líder visível da ação grevista e porta-voz das suas reivindicações, substituindo-se aos dirigentes sindicais que formalmente declararam a greve.
Para a opinião pública esta foi uma "greve da Ordem". Trata-se, portanto, de uma conduta ilícita agravada.
Acontece que esta Ordem é useira e vezeira nesta usurpação de funções sindicais, como já aqui se notou anteriormente. Trata-se, portanto, de um ilícito reincidente.
É chegada a altura de pôr a Ordem dos Enfermeiros na ordem!
[Foi mudado o título do post]

sábado, 9 de fevereiro de 2019

Corporativismo (9): A Ordem fora da lei

1. Este encontro convocado pelo Ordem dos Enfermeiros com os sindicatos da profissão só pode ser o que parece - uma provocação ao Governo e à opinião pública.
De facto, a Ordem e a sua bastonária parecem não querer entender que não podem envolver-se de nenhum modo nas lutas sindicais, devendo observar a mais estrita separação e neutralidade em questões laborais. Por três razões:
   - primeiro, como organismos públicos que são, as ordens gozam de poderes públicos delegados para realizarem a sua missão pública - que é a de regular, supervisionar e disciplinar o exercício da atividade profissional, incluindo sob o aspeto deontológico - e não para defender os interesses particulares dos seus membros;
   - segundo, como dizem expressamente a Constituição e a lei-quadro das ordens profissionais, elas não podem exercer funções "de natureza sindical", o que exclui obviamente as relações de emprego e os interesses laborais, que cabem em exclusivo aos sindicatos;
   - por último, a mesma lei-quadro diz que as ordens representam o "interesse geral" da respetiva profissão, o que afasta manifestamente a defesa de interesses setoriais de grupos de profissionais (neste caso, os enfermeiros do SNS).

2. De resto, se as ordens pudessem envolver-se na defesa de reivindicações laborais (carreiras, remunerações, etc.) junto com os sindicatos, as profissões "ordenadas" gozariam de um privilégio de que as demais profissões não dispõem, ou seja, um "supersindicato" com inscrição e quotização universal e obrigatória.
Ora, numa sociedade democrática, que compreende a liberdade sindical, de filiação livre, a defesa de interesses laborais não pode caber a entidades públicas. Isso era assim no corporativismo do "Estado Novo", mas aí, para além da falta de liberdade sindical, as profissões "ordenadas" nem sequer tinham sindicatos.

3. Por isso, só peca por tardia a iniciativa do Governo de desencadear os mecanismos judiciais competentes para pôr fim a esta reiterada violação dos limites legais por parte de algumas ordens profissionais, especialmente a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Enfermeiros.
Acresce que, se se verifica que, juntamente com a sua ação ultra vires, gastando recursos naquilo em que são incompetentes, tais ordens optam por não desempenhar as missões públicas de que foram incumbidas e que justificam a sua criação - a saber, a supervisão e disciplina da profissão -, então é de equacionar a hipótese de as extinguir, devolvendo ao Estado as tarefas que este lhes delegou, mas que não são executadas.
Quando a autorregulação delegada falha, só resta voltar à heterorregulação estadual.

Adenda
Para além das inequívocas declarações e manifestações públicas da própria bastonária, esta reportagem do Diário de Notícias de sábado (acesso condicionado) mostra até que ponto tem ido a intervenção direta da Ordem na condução da greve dos enfermeiros do SNS. Não há como negar!

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Ai, o défice (7): Voltar ao défice comercial?

Estes dados do comércio externo relativos a 2018 revelam uma acentuada subida do défice comercial de mercadorias, para um máximo de 2010, devida a um aumento mais acentuado das importações do que das exportações, o que vai reduzir em igual medida o excedente da balança comercial conjunta, desde há anos alimentado pelo bom desempenho do comércio externo de serviços (cortesia especialmente do turismo). A este ritmo de agravamento da balança comercial de mercadorias, Portugal arrisca voltar, dentro de poucos anos, à situação tradicional de défice comercial, de que saiu em 2011.
Considerando que o crescimento económico abrandou em 2018, nada indica que o agravamento das importações se tenha devido principalmente ao crescimento da importação de matérias-primas e equipamentos, o que até seria virtuoso.

Adenda
Uma parte da explicação pode estar nesta notícia de que nunca os portugueses se endividaram tanto para comprar automóveis (que são em grande parte importados). O aumento de poder de compra, decorrente da política de reposição de rendimentos e da subida do emprego, viu-se pontenciado pela redução da poupança e pelo aumento excessivo do crédito ao consumo, repercutindo-se no aumento das importações, como era de temer.

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Brexit (2): Adiar para quê?

1. Depois de ter rejeitado o acordo de saída laboriosamente negociado entre o Goveno britânico e a UE, a Câmara dos Comuns aprovou, com a inesperada benção do Governo, uma resolução no sentido de pedir uma "solução alternativa" para a questão da fronteira da Irlanda do Norte. Porém, não se conhece nenhuma proposta, nem é crível que seja possivel ainda inventar uma diferente, igualmente capaz para evitar uma fronteira física entre as duas Irlandas.
Na falta de tal solução alternativa aceitável para a União, tudo se encaminha para uma saída sem acordo no próximo dia 29 de março. É certo que um "no-deal Brexit" vai necessariamente fazer criar uma fronteira entre as duas Irlandas, que Bruxelas fez tudo para evitar. Mas, a acontecer um tal desenlace, isso será inteira responsabilidade britânica, que rejeitou a solução meticulosamente negociada com a União, sem conseguir apresentar nenhuma alternativa viável.

2. Neste quadro, não se vê bem para que poderia servir o adiamento do processo do Brexit, aqui defendido por Augusto Santos Silva, para além de prolongar e agravar o estado de incerteza e de inquietação que a falta de acordo de divórcio provoca.
Por um lado, um eventual adiamento só poderia ser pedido pelo Reino Unido, o que Londres rejeita. Em segundo lugar, o protelamento só se justificaria, se houvesse em cima da mesa uma proposta nova merecedora de um segunbo exame quanto à separação - o que não é o caso -, ou se houvesse alguma credível hipótese de recuo em relação ao próprio Brexit, o que teria de passar por um novo referendo -, que não está na agenda britânica.
Se estamos condenados ao Brexit sem acordo, que ele venha na data aprazada, em vez de prolongar a incerteza e a espera. Tanto o Governo como o Parlamento britânicos ja mostraram à saciedade que não estão em condiações de sair airosamente da confusão que armaram.

Este País não tem emenda (20): Uma vergonha!

A descoberta,numa inspeção oficial, de que em 2017 corporações de bombeiros em missão de combate a incêndios florestais tinham cobrado à Proteção Civil - ou seja, ao Estado -, durante vários dias, o pagamento de muito mais refeições do que o número de bombeiros destacados - em alguns casos, 4 vezes mais! - revela que nem beneméritas organizações de longo pedigree social, que aliás já dependem essencialmente do financiamento do Estado, perdem uma boa oportunidade para meter "a mão na massa", ou seja, nos dinheiros públicos, em proveito próprio.
Uma vergonha!

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Capitalismo e democracia

Amanhã à tarde vou estar na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, a intervir neste colóquio da Associação Portuguesa de Economia Política, subordinado ao tema: "O capitalismo deixou de ser compatível com a democracia?"
Sem surpresa para quem acompanha este blogue, vou defender, não somente que a economia de mercado, desde que adequadamente regulada, continua a ser compatível com a democracia liberal, mas também que é uma condição necessária da mesma.

SNS 40 anos (7): Com "amigos" destes...

1. A Ministra da Saúde anunciou o recurso à requisição civil para parar mais uma greve dos enfermeiros às cirurgias no SNS.
A meu ver, a decisão só peca por tardia, tendo em conta o tipo de greve utilizada e os seus efeitos devastadores sobre o SNS e sobre quem precisa de cirurgias. Duvido que uma greve reincidente desta natureza fosse tolerada em muitos outros países. A greve, sobretudo em serviços de saúde, não pode ser um direito absoluto.

2. O SNS é um vítima especial do abuso das greves no setor público, sendo o setor privado muito menos afetado, apesar das vantagens da função pública (menor tempo semanal de trabalho, segurança no emprego, ADSE, etc.).
Há duas razões para isso:
- primeiro, em relação ao Estado, que não vai à falência em caso de prejuízos, nem pode encerrar os serviços públicos e despedir o pessoal, os sindicatos não temem o risco de as suas greves porem em causa a existência da empresa e os seus próprios postos de trabalho, como sucede no setor privado;
- segundo, como as greves nos serviços públicos (como transportes, educação e saúde) afetam maciçamente os respetivos utentes, em especial os de menores rendimentos, os Governos veem-se muitas vezes forçados a ceder, mesmo que as reivindicações sejam despropositadas e orçamentalmente ruinosas.
Mas é evidente que cada greve no SNS é uma ajuda ao setor privado.

3. Mesmo descontando as greves, o SNS é também é vítima de uma taxa de absentismo laboral muito superior ao setor privado. De facto, são preocupantes os números conhecidos de "baixas por doença" e, mesmo, de faltas injustificadas.
A irresponsabilidade profissional, o laxismo médico nas baixas por doença fictícia e a falta de controlo e de sanção disciplinar do absentismo injustificado explicam esta situação.

4. É evidente que, mesmo que não houvesse outras razões, estes dois handicaps endógenos bastariam para colocar o desempenho do SNS em desvantagem comparativa com o setor privado. As vítimas são obviamente os utentes, que sofrem a paragem dos serviços, e os contribuintes, que têm de suportar o sobrecusto do SNS.
Não menos importante, são estas disfuncionalidades do SNS que reforçam os argumentos em defesa de um sistema alternativo ao SNS, tendencialmente num sistema de prestação privada de cuidados de saúde financiado pelo Estado.

Imprevisível Itália (2): O elo fraco

1. Ultrapassando os piores augúrios, a Itália entrou em recessão técnica, após dois trimestres de redução do PIB.
Uma coligação de governo contraditória - entre a extrema-direita da Liga e a esquerda populista do 5 Estrelas - e um orçamento pouco credível, depois do choque com a Comissão Europeia, provocaram uma queda na confiança eonómica e a baixa do investimento.
A "geringonça" governamental que ocupa o Palácio Montecitório, a sua errática política económica e o desafio "soberanista" a Bruxelas sofrem um rude golpe.

2. Ao iniciar o ano com este mau desempenho económico, muito longe das previsões de crescimento oficiais, a Itália não vai poder cumprir as metas orçamentais quanto ao défice, a que se comprometeu com Bruxelas (mesmo se generosas), a enorme dívida pública italiana vai continuar a aumentar e os custos da dívida vão subir. Ou seja, os custos habituais da irresponsabilidade financeira de Roma.
Com estes maus dados, a Itália tornou-se mais uma vez o "elo fraco" da União Económica e Monetária. Estando a União Europeia, ela mesma, em processo de abrandamento económico - cortesia do impacto negativo das guerras comerciais alheias e do Brexit -, a recessão italiana era bem escusada.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Praça da República (8): Descentralização territorial assimétrica

1. Entre os princípios constitucionais que exigem ação do Estado, um dos menos respeitados é princípio da subsidiaridade territorial, desde logo nas relações entre o Estado central e as coletividades locais, nomeadamente os municípios. Por isso, é bem-vindo o processo de descentralização em curso, consubstanciado na respetiva Lei-quadro (Lei n.º 50/2018, de 16 de agosto) e nos decretos-leis de concretização sectorial que têm vindo a ser aprovados desde então, como, por exemplo, o que respeita à educação, hoje publicado.
Embora eu defenda há muito uma descentralização mais ambiciosa nesta área - abrangendo a gestão municipal (ou intermunicipal) integrada de todo o ensino básico, incluindo o pessoal docente, bem como a gestão a nìvel regional de todo o ensino secundário (incluindo o pessoal docente) -, é inegável que este diploma dá um importante passo em frente, confiando aos municípios (ou comunidades intermunicipais, corforme os casos) a gestão do parque e do equipamento escolar, dos transportes e da refeições escolares, do pessoal não docente, etc., em relação a todo o ensino pré-escolar, básico e secundário.

2. A minha principal reserva tem a ver com o facto de esta descentralização em prol dos municípios só abranger o território do Continente, excluindo as regiões autónomas, o que estabelece uma assimetria injustificável quanto aos níveis de autonomia municipal, entre os municípios continentais e os insulares. Ora, nos termos da Constituição, a definição das atribuições dos municípios, em todo o país, cabe induvitavelmente ao poder legislativo nacional, não às regiões autónomas, e nem sequer pode haver delegação ao poder legislativo regional.
A Lei-quadro remeteu essa matéria para leis específicas, a aprovar sob iniciativa dos parlamentos regionais respetivos - o que se pode compreender, dado que nos Açoes e da Madeira as atribuições a descentralizar já se encontram, em geral, na esfera regional -, mas não fixa, como devia, um prazo para o efeito e também não prevê a preclusão dessa iniciativa legislativa regional reservada, caso o prazo não seja observado, deixando, portanto, nas mãos das regiões autónomas a concretização da descentralização municipal no seu território. Para além disso, não me parece conforme à Constituição que a AR tenha feito condicionar o exercício do seu poder legislativo, numa matéria reservada, a uma iniciativa legislativa insular.
Autonomia regional dos Açores e da Madeira, sim, mas nem tanto!

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Terra brasilis (3): "Reserva da elite" à custa de todos

1. Aplicando a perspectiva elitista tradicional da direita conservadora, o novo ministro do ensino superior do governo Bolsonaro veio declarar que "as universidades devem ficar reservadas para uma elite intelectual", assegurando, porém, que continuarão gratuitas, como até aqui. Ou seja, os contribuntes brasileiros em geral, incluindo a maioria que não pertence à tal elite, financiam com os seus impostos o privilégio de acesso às universidades públicas...
Sucede que, como o ensino básico e secundário público deixa muito a desejar no Brasil, as possibilidades de entrar nessa elite são muito reduzidas, pelo que o acesso à universidades públicas favorece quem tem meios para frequentar o ensino pré-universitário privado! Essa enorme discriminação social no acesso à universidade só foi ligeiramente atenuada nos governos do PT, com o estabeleciimento de quotas para estudantes oriundos do ensino secundário público.
Com a nova perspectiva elitista, esta iniquidade social torna-se ainda mais gritante

2. Para agravar o privilégio e a iniquidade, é preciso dizer que no Brasil todos os graus do ensino universitário público são gratuitos, incluindo mestrados e doutoramentos, tudo à custa dos contribuintes, sem nenhuma contribuição específica dos beneficiários da formação universitária, em termos de emprego e de remuneração!
É claro que para estes, a gratuitidade é "um direito", como sempre ocorre nestas situações. Intrigante é pensar que no Brasil a esquerda alinha com este argumento para defender a gratuitidade da universidade pública, sem de dar conta de que, quanto mais gratuita a universidade for para quem a pode e deve pagar, mais onerosa fica em termos orçamentais, correndo o risco de se tornar cada vez menos universal e mais elitista.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

O que o Presidente não deve fazer (15): Deus e César

Como crente católico, Marcelo Rebelo de Sousa pode participar a título pessoal em toda e qualquer manifestação religiosa, dentro ou fora do País - como ocorreu agora no Panamá -, não estando sequer limitado por nenhuma obrigação de discrição pelo facto de também ser Presidente.
Mas, sendo Portugal constitucionalmente um Estado laico, com separação entre o Estado e as igrejas, e representando o chefe do Estado, por definição, todos os portugueses - crentes de diferentes religiões ou não crentes -,  o Presidente da República, enquanto tal, não tem religião nem pode participar nessa qualidade em manifestações religiosas, pelo que MRS deveria ser mais escrupuloso na separação das duas condições, a pessoal e a oficial, e deveria abster-se de saudar eventos religiosos em nome do todos os portugueses, por mais louváveis que sejam, como sucedeu agora com o anúncio da realização do próximo "encontro mundial da juventude" em Lisboa.
É uma questão de respeito pela natureza laica do Estado, pela liberdade religiosa de cada um e pelas diferentes opções dos cidadãos em matéria religiosa, incluindo a de não ter religião.

sábado, 26 de janeiro de 2019

Praça da República (7): Bairro Jamaica

[Fonte: aqui]
1. A violência policial contra protestos sociais, justos ou não, é sempre censurável, quando desnecessária ou desproporcional - por violação dos direitos cívicos e do código de conduta das próprias forças de segurança -, qualquer que seja a etnia dos manifestantes, só podendo qualificar-se de "violência racista" se motivada especificamente pela etnia dos seus alvos.
Nada autoriza a ver "racismo" numa ação policial mais musculada ou mesmo patentemente violenta, se ela teria sido muito provavelmente a mesma se tivesse outros alvos nas mesmas circunstâncias. Os africanos e afrodescentes não gozam de nenhuma imunidade especial contra medidas de polícia, quando justificadas pela necessidade de garantir o direito à segurança (que também é um direito humano). Por isso, salvo evidência incontornável, são precipitadas todas as acusações à polícia antes do apuramento rigoroso dos factos ocorridos no Bairro Jamaica, que obviamente impõem o devido inquérito.

2. O que tem de considerar-se social e politicamente intolerável são as condições de habitação e de vida no Bairro Jamaica, que, essas sim, revelam a profunda iniquidade no tratamento das minorias étnicas em Portugal, especialmente as de origem africana, que têm os mesmo direitos humanos a serem respeitados, sejam ou não cidadãos portugueses.
São condições de vida degradantes como aquelas que nutrem o ressentimento e a revolta etnocêntrica e que são exploradas pelo radicalismo étnico-identitário, retintamente racista (embora de sinal contrário). O racismo não tem só uma cor.

Adenda
A única justificação plausível para a invocação da cor da sua pele pelo Primeiro-Ministro no debate parlamentar sobre o incidente (que muitos consideraram despropositada), em reação à insistência da líder do CDS sobre saber se ele apoiava as forças de segurança, terá consistido em o PM ter visto nessa insistência uma tentativa de contrapor a sua responsabilidade como chefe do Governo a uma insinuada "solidariedade étnica" com os manifestantes. Mas o mais provável é que a líder do CDS quisesse somente explorar mais uma vez as contradições políticas dentro da "Geringonça", entre o Governo responsável pelas forças de segurança e os partidos da extrema-esquerda parlamentar, a protestar contra a "violência policial".

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

SNS, 40 anos (6): De universal a subsidiário?

1. Apesar de, na sua génese e configuração constitucional, o SNS ser um serviço universal e geral de provisão pública de cuidados de saúde (Estado financiador e prestador), a verdade é que ao longo destes 40 anos não cessou de minguar a sua quota no mercado de saúde em Portugal, em contrapartida da expansão do setor privado.
Foram duas as vias de desenvolvimento do setor privado:
- o crescimento autónomo de um mercado privado de saúde à margem do SNS, financiado pelos próprios utentes ou por esquemas de seguros de saúde;
- a crescente subcontratação externa de cuidados de saúde pelo próprio SNS, desde meios auxiliares de diagnóstico a cirurgias, por incapacidade de resposta do serviço público.

2. Entre as medidas que facilitaram a vida e os negócios do setor privado, em prejuízo do SNS, mencionaria os seguintes, que fui apontando ao longo dos anos:
- a manutenção da ADSE, como sistema de saúde privativo dos funcionários públicos, essencialmente assente no financiamento público de cuidados de saúde privados;
- o continuado défice de oferta do SNS em algumas áreas, como a medicina dentária e a oftalmologia, deixando terreno livre à medicina privada;
- as generosas deduções de despesas de saúde no IRS e a subsidiação dos medicamentos prescritos na medicina privada em pé de igualdade com os prescritos no SNS, que equivaleram a uma pingue subvenção do setor privado;
- a complacência com a prática sistemática da contratação externa de exames e meios de diagnóstico, com abandono ou subutilização dos recursos e serviços internos do SNS;
- o exclusivo público de formação de médicos e de especialistas, com os enormes custos financeiros envolvidos, mas sem dedicação exclusiva dos estagiários e sem exigência de nenhum período de serviço posterior no SNS, tudo se traduzindo num invetimento público na medicina privada;
- a prática de atribuição de seguros de saúde pelas próprias entidades administrativas e empresariais públicas.

3. Rejeitando teorias simplistas de "parasitização" do SNS pelo setor privado, parece evidente que este foi estimulado deliberadamente pelo Estado, como meio de reduzir a procura e os encargos financeiros do SNS.
Sem surpresa, apesar da cobertura tendencialmente universal do SNS como serviço de provisão pública, a despesa pública em saúde em Portugal (em rácio do PIB) já está abaixo da média da OCDE, enquanto a despesa privada está acima.
A manter-se esta tendência, o SNS corre o risco de tornar-se, a prazo, num subsistema subsidiário de saúde, confinado aos cuidados mais onerosos que o setor privado não cobre (oncologia, doenças vasculares, etc.) e às camadas de utentes sem meios para aceder ao setor privado. Um destino pouco condizente com a sua grandiosa consagração constitucional e com o seu percurso épico na melhoria das condições de saúde em Portugal...

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Big Ben (2): O Reino Unido já não é o que era...

[Fonte: aqui]
1. Rejeitado no Parlamento, por larga maioria, o acordo sobre o Brexit acerca dos termos de saída, laboriosamente negociado entre o Governo britânico e a União Europeia, foi vítima de uma coligação negativa, unindo contraditoriamente os "hard-brexiters" (que querem uma saída sem concessões) e os opositores ao Brexit e partidários de um Brexit mais brando.
Não parecendo haver condições para voltar atrás nesta rejeição, até porque do lado da UE não há margem para renegociar os termos do acordo, as soluções em cima da mesa são teoricamente três:
- assumir a impossibilidade de acordo e deixar consumar a saída abrupta do Reino Unido da União, na data prevista, 29 de março;
- adiar a data de saída, com o assentimento da União, e avançar nas negociações sobre a futura relação do Reino Unido com a UE depois da sua saída, tentando encontrar uma solução para a questão da fronteira entre as duas Irlandas, que tem sido o grande pomo da discórdia britânica em relação ao acordo de saída;
- suspender o processo de saída e convocar um novo referendo, seja sobre a própria saída, revogando a decisão popular anterior, seja sobre o contencioso acordo de saída.
Sendo reconhecidamente graves os efeitos de uma saída desordenada - sobretudo para parte britânica e para a relação entre as duas Irlandas -, resta saber se não serão ainda mais deletérios os efeitos económicos e políticos da prolongada incerteza do adiamento ou suspensão da saída, sem nenhuma garantia de êxito quanto ao encontro de uma solução mutuamente aceitável.

2. Parece evidente que Bruxelas pouco pode fazer para ajudar a solucionar o embróglio de Londres, que constitui uma punição autoinfligida pela leviandade e pelas divisões britânicas em todo este processo.
Tendo começado mal, com uma insensata e oportunista convocação de um referendo sobre a saída, o processo do Brexit parece encaminhar-se inexoravelmente para um desastre. Decididamente, sob o ponto de vista dos padrões de "political wisdom" e de "responsible government", que como ninguém ajudou a definir, o Reino Unido já não é que era...

SNS, 40 anos (5): O modo de financiamento do SNS

1. No modelo de SNS vigente entre nós, de tipo britânico, o financiamento público é assegurado por via orçamental, ou seja, com base nos impostos gerais, diferentemente do que sucede, por via de regra, nos sistemas de saúde de tipo bismarckiano, em que o sistema é financiado por contribuições específicas dos beneficiários, dispondo, portanto, de orçamento próprio e gestão financeira separada. É uma espécie de seguro coletivo obrigatório legalmente definido.
É, aliás, o que se passa entre nós com a ADSE, o subsistema de saúde dos funcionários públicos, embora haja também um copagamento maior ou menor dos cuidados recebidos pelos beneficiários.

2. Ora, nada impede a adoção desse modo de financiamento em relação ao SNS existente, pois a Constituição não determina o tipo de financiamento público (excluindo, porém, as taxas, como fonte de financiamento substancial, por causa da quase gratuitidade dos cuidados prestados).
Ponto é que o montante dessa nova contribuição para o SNS fosse fixado em função dos rendimentos de cada um e que a sua introdução fosse acompanhada de uma redução correspondente da carga fiscal.

3. Essa fórmula alternativa de financiamento, mediante um contribuição específica e um orçamento próprio separado do OGE - à imagem do sistema público de segurança social -, permitiria autonomizar o financiamento do sistema público de saúde em relação à política fiscal e orçamental geral de cada Governo e tornaria mais visível para os cidadãos a sua responsabilidade individual e coletiva no financiamento adequado das despesas de saúde.
Curiosamente, porém, esta hipótese nunca entrou na agenda de reforma do SNS.

SNS 40 anos (4): Um modelo alternativo?


1. Considerando que o SNS já não pode "dar conta do recado" nas atuais condições, o ex-ministro da Saúde, F. Leal da Costa (Governo Passos Coelho), apresenta neste artigo uma alternativa ao atual sistema público de saúde, que consiste no fundamental em universalizar o modelo da ADSE (o subsistema de saúde dos funcionários públicos), baseado nos seguintes traços:
- financiamento através de uma contribuição de saúde dedicada universal, de montante variável, segundo os rendimentos de cada um;
- provisão de cuidados de saúde a cargo de uma pluralidade de prestadores privados convencionados, à escolha dos beneficiários;
- remuneração dos cuidados de saúde de acordo com normas estabelecidas ou acordadas com o financiador.
No entanto, algo incoerentemente, a proposta mantém o atual SNS como subsistema autónomo residual, financiado pelo orçamento, como agora, à margem do novo sistema.

2. Trata-se no fundo de substituir o atual modelo "beveridgiano" (britânico) de SNS por uma variante do sistema de tipo "bismarckiano", que conjuga o financiamento público, por via de uma contribuição dos beneficiários, com a provisão de cuidados de saúde através de entidades, públicas ou privadas, aderentes ao sistema.
O autor sustenta que este modelo não careceria de revisão constitucional, pois respeitaria os requisitos constitucionais da universalidade, generalidade e tendencial gratuitidade (quanto à prestação concreta de cuidados de saúde). Mas é evidente que este modelo alternativo se afasta substantivamente da solução constitucional, que prevê claramente não somente o financiamento público mas também, por princípio, a provisão pública de cuidados de saúde no âmbito do SNS.

3. Resta saber se os partidos de direita - que nunca coabitaram pacificamente com o atual modelo - vão adotar esta alternativa clara ao SNS, ou se vão continuar a apostar, como tem sucedido até agora, no quadro da Lei de Bases de 1990, na sua asfixia e implosão, quer mediante a crescente privatização, por via de "subcontratação", da função de prestação do sistema público de saúde, quer através do desenvolvimento de um sistema privado de saúde alternativo (seguros de saúde), explorando as crescentes insuficiências e deficências do SNS...

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Duopólio territorial

Eis o cabeçalho do meu artigo semanal no Dinheiro Vivo de sábado passado, desta vez dedicado ao Plano Nacional de Investimentos para a próxima década anunciado pelo Governo, o qual, a meu ver, em vez de fomentar, como deveria, a coesão territorial do País, atenuando as enormes assimetrias regionais existentes, corre o risco de reforçar a concentração de população, recursos e rendimentos nas duas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, que já beneficiam do natural "efeito de escala" na atração e drenagem de gente e de empregos do resto do País.

Não dá para entender (9): Conúbio pornográfico


1. Não dá para entender porque é que, na opinião da Ministra da Justiça, a questão do segredo de justiça exige um "acordo de regime", como se não bastassem os instrumentos legislativos disponíveis, nomeadamente a punição penal da violação do segredo de justiça.
Ninguém compreende a escandalosa impunidade das sistemáticas violações do segredo de justiça, em prejuízo da investigação penal e dos direitos dos arguidos, incluindo a transmissão televisiva de vídeos com declarações de arguidos. É incompreensível que acabem em "águas de bacalhau" os inquéritos abertos pelo Ministério Público sobre o assunto. Ora, tanto é responsável o agente que transmite para o exterior material protegido, como os órgaos de comunicação que lhe dão divulgação, sabendo que ele está em segredo de justiça.

2. A liberdade de imprensa não é absoluta, não podendo prevalecer, como regra, sobre o segredo de justiça (ou o segredo de Estado), aliás constitucionalmente protegido. Limite-se o segredo de justiça ao mínimo necessário, mas façam-se cumprir as decisões judiciais que o imponham.
A ilegítima condenação sumária na praça pública, em que a imprensa tablóide serve de acusação e de juiz, não pode substituir a obrigação do Ministério Público de levar ao tribunal acusações convincentes com base em investigação escrupulosa e em provas sólidas. Dá a impressão de que ninguém está interessado em pôr termo ao conúbio pornográfico entre agentes da justiça e os média tablóide que disputam a compra de peças em segredo de justiça.

SNS, 40 anos (3): O erro da ADSE


1. Não podia concordar mais com esta opinião de Daniel Sampaio e Fredrico George sobre o erro de ter mantido a ADSE [o subsistema de saúde dos funcionários públicos proveniente do "Estado Novo"] após a criação do SNS em 1979.
E não apenas pela razão invocada ("desnatação" do SNS), mas sobretudo porque a ADSE (i) mina a universalidade e igualdade do SNS, por ser um privilégio privativo dos funcionários públicos que os afasta do SNS e (ii) obedece a uma filosofia nos antípodas do SNS, na medida em que assenta no financimento público de cuidados de saúde privados e no seu copagamento pelos beneficiários.

2. Foi com base nestes argumentos que já há 15 anos - num artigo com o título provocativo de "sobrevivências corporativas" - propus publicamente a extinção da ADSE ou, em segunda linha, a sua despublicização, terminando o seu financiamento por via orçamental (pois nessa altura os contribuintes em geral ainda financiavam o subsistema dos funcionários públicos!), cessando a inscrição obrigatória e transferindo a sua responsabilidade para os próprios beneficiários.
Não tendo nenhum Governo tido a coragem política de proceder à sua extinção - não somente pelo peso político dos funcionários, mas também pela pressão que ela acrescentaria sobre o SNS -, pelo menos foram extintos o financiamento orçamental e a inscrição obrigatória. E foi pena que, tendo o PS previsto a mutualização do serviço e a sua gestão pelos interessados, tenha depois recuado, limitando-se a criar um instituto público "de gestão participada" para o gerir.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Portucaliptal (31): Corrida ao eucalipto


1. Foi finalmente publicado o pacote legislativo sobre a floresta, incluindo a contenção do eucaliptal.
Infelizmente, passaram três anos desta legislatura, permitindo uma "corrida ao eucalipto" antes da entrada em vigor do novo regime. Nunca se plantaram tantos eucaliptos em Portugal. Com este prolongado "banquete", prevalecendo-se da lei de liberalização do eucalito de 2013 (Governo PDS-CDS), a fileira agro-industrial da celulose contornou antecipadamente a anunciada contenção (mas não reversão) legal do eucalipto.
O Governo e a maioria parlamentar da Geringonça não ficam bem nesta história.

2. Mais grave ainda é o facto de o novo regime não ser dotado de instrumentos apropriados para conter efetivamente a continuação da eucaliptização extensiva do País:
-  primeiro, as coimas para a sua violação (cujo montante não foi alterado) não são suficientemente elevadas para serem dissuasórias das grandes plantações, dado o elevado rendimento que proporcionam;
- segundo, as plantações ilegais em execuação ou concluídas não têm de ser obrigatoriamente embargadas ou removidas (como devia ser sempre o caso), sendo essa somente uma possiblidade deixada ao poder discrionário da administração florestal, com todo o risco de decisões de conveniência e de complacência com os factos consumados.
Ora, nesta matéria não deveria haver margem para "o crime compensar".

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

SNS, 40 anos (2): Os males do SNS

1. Ao longo deste 40 anos do sistema público de saúde não faltaram medidas legislativas e governativas que, em grande parte, explicam a atual acumulação de dificuldades no SNS e o crescimento do setor privado dos cuidados de saúde. Apesar dos inegáveis ganhos de saúde do país, o SNS está em crescente dificuldades para realizar satisfatoriamente os objetivos que presidiram à sua criação.
Não concordo, porém, em incluir entre essas medidas duas das enunciadas neste artigo de Manuel Alegre, a saber, as taxas moderadoras (de que, aliás, estão isentos metade dos utentes) e a gestão empresarial dos hospitais públicos (que visou aumentar a autonomia, a eficiência e a responsabilidade da gestão hospitalar do SNS, embora sem o conseguir em grande medida). De registar que, ao contrário de outros críticos mais doutrinários, Alegre não menciona as PPPs hospitlares entre essas medidas negativas.

2. Pelo meu lado, entre as medidas que geraram ou reforçaram as dificuldades do SNS, incluo as seguintes, que nunca deixei de criticar publicamente:
- a autorização sem limites da acumulação de funções no SNS e no setor privado, incluindo em situações de óbvio conflito de interesses, como sucede no caso de diretores de serviço;
- o frequente recrutamento político de gestores hospitalares do SNS, em prejuízo do critério de mérito e da competência, e a falta de responsabilização dos gestores pelos resultados da gestão e pelos frustrantes ganhos de eficência;
- a cedência durante muitos anos aos interesses da indústria do medicamento e a falta de protocolos relativos à utilização de medicamentos inovadores, de preços exorbitantes;
- o elevado nível de absentismo e a frequência de greves no SNS, quando comparados com o setor privado, e a atitude corporativista de quase todas as ordens profissionais da saúde;
- a falta de avaliação de desempenho dos profissonais e dos serviços, para efeitos de remuneração e de financiamento de uns e outros, respetivamente;
- a sobrecarga do SNS com pacientes hospitalizados que não têm alta por falta de cobertura da rede de cuidados continuados ou por falta de apoio familar domiciliário;
- o subfinancimento crónico, que causa a degradação dos serviços, fomenta a contratualização externa e aumenta os atrasos nos pagamentos, agravando os preços cobrados.

3. A redução do horário semanal de trabalho nos serviços públicos das 40 para as 35 horas afetou especialmente o SNS, quer em termos de operacionalidade dos serviços, quer em termos de despesa orçamental, dada a necessidade de recrutar mais pessoal. E a complacência oficial perante a recente "greve cirúrgica" dos enfermeiros, que afetou milhares de cirurgias - e que dificilmente seria tolerada noutros países -, mostra que o SNS continua refém de chantagem sindical como nenhum outro serviço público, tanto mais que o setor privado da saúde se vê poupado a semelhantes formas de paralização, o que ajuda à sua procura.
Nada disto ajuda o SNS a cumprir a sua missão constitucional.
[revisto]

domingo, 20 de janeiro de 2019

SNS, 40 anos (1): O público e o privado

1. Quando passam quatro décadas sobre a institucionalização do SNS em 1979, cumprindo a Constituição de 1976, e quando se discute no Parlamento uma nova "lei de bases da Saúde", parece evidente que, se se mantém um amplo consenso social e político sobre a importância essencial do SNS para garantir o direito de todos aos cuidados de saúde, já são assaz diferentes as perspetivas políticas sobre a sua configuração concreta, designadamente sobre o papel do setor privado (e do setor social).
Embora essas divergências entre a esquerda e a direita venham desde o início do próprio SNS - tendo o PSD votado contra a sua criação em 1979 e decretado a sua revogação quatro anos depois -, a verdade é que, após algumas décadas de relativa atenuação, o confronto voltou a acentuar-se nos últimos anos, à medida que o SNS foi perdendo capacidade de resposta e o setor privado foi aumentando a sua oferta e os seus recursos.

2. Por minha parte, não tenho dúvidas em entender que no atual quadro constitucional, sem prejuízo da liberdade individual de recorrer ao setor privado (mediante financiamento próprio ou de seguros de saúde), o SNS é, antes de mais, um serviço universal de prestação pública de cuidados de saúde e que o Estado só deve financiar a sua prestação privada a título subsidiário, ou seja, no caso de défice de capacidade do SNS ou para beneficiar de soluções financeiramente mais vantajosas.
Por isso, não faz sentido - desde logo porque não tem cabimento constitucional - o modelo alternativo, defendido desde há anos pelo PSD e pelo CDS, de tornar o Estado essencialmente um financiador de cuidados de saúde, deixando a cada utente a opção pelos prestadores, públicos ou privados, em concorrência na conquista de utentes.

3. Já não me causa nenhuma objeção de fundo - nem, a meu ver, a Constituição impede - o recurso às PPPs hospitalares, seja para o investimento em novos hospitais do SNS que o Estado não tenha condições orçamentais para financiar, seja para proporcionar um comparador de gestão hospitalar, com vista à redução do conhecido défice de eficiência da gestão pública do SNS.
Ponto é que a equação financeira seja comprovadamente vantajosa para o SNS - envolvendo poupança de gasto público em comparação com a solução pública - e os hospitais PPP sejam sujeitos estritamente às mesmas obrigações que os hospitais de gestão pública, sob escrutínio de uma entidade de supervisão independente, como é o caso desde 2003.
Excluir as PPPs só por razões doutrinárias constitui puro dogmatismo político, que só redunda em prejuízo do SNS e dos contribuintes.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Portucaliptal (30): David contra Golias

Apesar de bem-intencionadas, estas iniciativas locais isoladas contra a eucaliptização selvagem do País dificilmente podem vir a ter algum impacto substancial, sem que o Estado faça impender sobre a fileira agro-industrial da celulose os custos das "externalidades negativas" do eucaliptização extensiva, em termos de depredação dos recursos hídricos, de redução da biodiversidade, de fealdade da paisagem, de potenciação dos incêndios florestais.
Sem reduzir a rentabilidade orçamental do eucalipto, imputando-lhe os seus custos sociais, pouco apelo podem ter as campanhas a favor das espécies autóctones, de muito menor rendimento comercial, se o Estado não financiar as suas "externalidades positivas", como devia (mas não faz...).

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

"Livres & Iguais: Os Direitos Humanos na Escola"

Já está disponível nas livrarias o livro "Livres e Iguais: os Direitos Humanos na Escola", da autoria de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, com ilustrações de Ana Seixas, que tive a honra de prefaciar, publicado pela Imprensa Nacional, no âmbito das Comemorações dos 70 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos, realizadas no ano passado (de que fui comissário).
Trata-se de uma bela e acessível introdução aos direitos humanos para o público infantil, preeenchendo uma lacuna editorial entre nós.