segunda-feira, 5 de abril de 2004

As contas dos “hospitais SA”

A apresentação das contas do primeiro ano de gestão dos hospitais empresarializados, vulgarmente conhecidos por “hospitais SA” – os quais constituem uma das mais importantes peças da reforma do sector da saúde do actual Governo –, foi justamente saudada como exemplo de prestação pública de contas e os seus resultados foram em geral aplaudidos, dado o aumento significativo do volume dos cuidados prestados conjugado com um aumento moderado dos custos, registando assim um incremento da eficiência.
No entanto, o sucesso anunciado necessita de um desmentido convincente de notícias que o procuram pôr em causa, como a do Diário de Notícias de hoje, segundo a qual, entre outras coisas, alguns custos – nomeadamente os dos medicamentos prescritos nas urgências e consultas externas – teriam sido retirados das contas, reduzindo artificialmente o seu montante.
Mesmo se pouco verosímil, o mínimo que se pode exigir é o pronto esclarecimento desta acusação. Pior do que um desempenho menos positivo (o que no primeiro ano da reforma até poderia ser compreensível) seria uma tentativa de “embelezamento” das contas. A reforma do sector da saúde é demasiado importante para que subsistam razões para especulação sobre a transparência dos seus custos e ganhos.

Governo paritário

Cumprindo mais um dos seus compromissos eleitorais, Rodríguez Zapatero organizou um governo com igual número de mulheres e de homens, incluindo uma vice-primeira-ministra, realizando um princípio de paridade absoluta, o que significa um "upgrade" em relação à composição do próprio grupo parlamentar socialista na parlamento de Madrid, onde as mulheres já representam 46% dos seus deputados.
Embora se não trate do primeiro caso mundial de paridade sexual a nível governamental, visto que desde há anos é essa a regra na Suécia -- um dos primeiros países a adoptar, desde há um século, políticas de “acção positiva” a favor da participação feminina na política --, nem por isso se pode desvalorizar a sua importância, sobretudo em países do sul, tradicionalmente muito recuados nessa matéria. No seguimento disto é de esperar que a nova maioria implemente também o compromisso eleitoral de estabelecer legislativamente a paridade nas eleições para as assembleias representativas em geral.
Comparado com este radical avanço espanhol, é de lamentar entre nós o congelamento pela actual coligação governamental das iniciativas da esquerda tendentes a dar execução ao preceito constitucional que desde 1997 reclama medidas de incremento da participação feminina na vida política. Um apenas entre os muitos pontos esquecidos da falhada reforma do sistema político...

domingo, 4 de abril de 2004

Durão Barroso e Saramago

Uma das grandes novidades do Expresso de ontem era indubitavelmente a explícita condenação pelo Primeiro-Ministro da ofensa feita há cerca de 10 anos a José Saramago por um obscuro e reaccionário Secretário de Estado da Cultura, ao censurar oficialmente a sua obra o Evangelho segundo Jesus Cristo, por ser “contrário aos sentimentos cristãos do povo português”. Pelas palavras utilizadas pelo primeiro-ministro, condenando «em absoluto» a discriminação então feita, trata-se de uma inequívoca contrição, mesmo se o termo “desculpas” não consta da declaração.
Ainda que tardia de 10 anos, só pode louvar-se a iniciativa do Primeiro-ministro, ainda mais apreciável por ela ocorrer num momento em que o escritor se encontra envolvido na polémica causada pelo seu último livro, que levantou contra ele a generalidade dos comentadores nacionais.
Depois das declarações do Maputo sobre o 25 de Abril e a descolonização, é óbvio que Duraõ Barroso procura atenuar a imagem excessivamente direitista que a marca ideológica do PP tem dado à coligação...

Actualização (05.04): Saramago aceita a explicação de Durão Barroso.

Veiga de Oliveira

Ainda sobre as façanhas da PIDE (cfr. post precedente), Irene Pimentel refere o caso de Álvaro Veiga de Oliveira, que bateu o “record” da tortura do sono, com 15 dias de “estátua” consecutivos. Saiu da prisão com a saúde arruinada, de que demorou a recuperar, embora com sequelas indeléveis.
Engenheiro de formação e profissão, veio a ter uma importante actividade de militante comunista durante a ditadura, tanto em Portugal como no Brasil. Conheci-o na Assembleia da República em 1976, tendo antes pertencido a vários governos provisórios, designadamente ao último deles. Muito inteligente e culto, breve manifestou igualmente notáveis capacidades parlamentares, tendo compartilhado comigo durante vários anos a vice-presidência da bancada parlamentar do PCP, bem como a discussão da primeira e importante revisão constitucional de 1982 (que nos opôs à direcção do partido).
Poucos anos depois da nossa saída do parlamento participámos também conjuntamente no processo de crítica, e depois de dissidência, do chamado “grupo dos seis” (1987-1990), do qual ele era o mais credenciado e prestigiado dos membros. Não por acaso coube-lhe a tarefa de entregar pessoalmente ao secretário-geral do partido o primeiro dos documentos que desencadeou as prolongadas “hostilidades” que haveriam de terminar com a saída de todos nós do partido.
É uma das pessoas mais fascinantes que me foi dado conhecer. Apraz-me recordá-lo neste momento.

Vital Moreira

Recordar as façanhas da PIDE

Perante algumas tentativas revisionistas do fascismo lusitano, incluindo alguns ensaios de branqueamento da PIDE, a polícia política do regime, é importante recordar a sua história, quando se comemoram 30 anos sobre o seu fim. A propósito de um dos temas mais odiosos, o da tortura de mulheres, o Público dos últimos dias traz dois depoimentos elucidativos. Por um lado, a historiadora Irene Pimentel, que prepara uma tese de doutoramento sobre a PIDE, revela como a tortura das mulheres começou nos anos 60 pelas operárias agrícolas do Couço (Alentejo). Por outro lado, Teresa Dias Coelho (na imagem), filha do célebre escultor Dias Coelho, assassinado pela polícia política em 1961, descreve ela mesma a tortura do sono a que foi sujeita na sua primeira prisão em 1972 . Tratando-se neste caso de uma jovem estudante e ocorrendo os factos descritos já no período marcelista, é fácil imaginar que o tratamento não seria diferente com mulheres de outra origem social em épocas anteriores...

sábado, 3 de abril de 2004

Rebelião democrática

Tem sido um fartote desde o lançamento do Ensaio sobre a Lucidez de José Saramago. Com poucas excepções – entre elas, por exemplo Eduardo Dâmaso no Público de hoje, numa nota a acompanhar uma entrevista ao escritor, onde aliás ele declara duas vezes que não faz nenhum apelo ao voto branco –, todos os que opinam nos "media" não têm poupado meios para zurzir o autor do Memorial do Convento a propósito da sua provocante ideia de uma rebelião dos eleitores contra o mau funcionamento da democracia, expressa num massivo voto em branco, rejeitando todos os partidos concorrentes. A maior parte dos críticos viram nessa ideia uma condenável expressão da hostilidade do autor, membro que é do PCP, em relação à democracia representativa. Resta dizer que algumas declarações equívocas do escritor não ajudaram a contrariar essa interpretação.
Mas a metáfora da rebelião do voto branco, aliás pacífica, é susceptível de outra interpretação menos subversiva e mais fecunda, a saber, um alerta contra o “mal-estar democrático” ou “crise da representação democrática”, ideias que constituem um lugar-comum em muitas análises das democracias contemporâneas e que se traduzem na crescente taxa de abstenção, no desinteresse pelos partidos políticos, na hostilidade larvar contra os políticos, no apoio a forças populistas, etc. Ora essas análises não relevam de nenhuma posição antidemocrática mas sim, pelo contrário, de uma preocupação em relação à qualidade da democracia.
Afinal, votar em branco ainda significa utilizar instrumentos democráticos (justamente o voto) para mostrar descontentamento, sendo por isso preferível à abstenção ou ao voto em movimentos extremistas, anti-sistema, opções infelizmente mais tentadoras do que aquele, e mais perigosas. Em vez de uma tese antidemocrática, a metáfora do voto branco pode portanto ser lida antes como um alerta contra o conformismo democrático em relação à crescente alienação cívica, uma espécie de “sobressalto democrático” em prol de uma regeneração da cidadania democrática e da democracia representativa. Deste ponto de vista, a provocação de Saramago merece mais respeito e atenção do que a condenação pessoal sumária que tem suscitado.

Vital Moreira

Estado laico?

A cerimónia de inauguração oficial das novas instalações da RTP e da RDP a sua bênção religiosa pelo cardeal-patriarca de Lisboa. Nada de novo, desde que o Estado Novo procedeu à recuperação da união entre o Estado e a Igreja Católica, situação que a III República não foi capaz de mudar até agora. Só que não se vê meio de compatibilizar a inclusão de cerimónias religiosas em actos públicos com o princípio constitucional da separação entre o Estado e as igrejas, que implica naturalmente uma separação entre a liturgia religiosa e a liturgia oficial do Estado. A seis anos do centenário da implantação da República e do princípio da separação, era altura de o voltar a levar a sério.

sexta-feira, 2 de abril de 2004

A tanga do 2 de Abril

1 A tertúlia do meu sótão tem, há muitos anos, o hábito cabotino de pregar umas partidas aos amigos ausentes por ocasião do 1 de Abril. Este ano, a veia bloguística levou-nos a pensar que uma boa peta on line não seria mal recebida pela comunidade. Choveram sugestões. A nomeação de Isaltino de Morais para a Comissão Ética da Associação Portuguesa de Planeadores do Território, a iminente adesão do director do Público ao Bloco de Esquerda após a ultrapassagem da fase neo-conservadora, a intenção do Vaticano em beatificar João César das Neves, além de outras menos recomendáveis. A discussão foi tanta que, atingido um consenso (à boa maneira socialista, pois claro), o relógio já passava da meia-noite. Nada a fazer, teria de ficar para 2005.

2 Mas lá que fiquei frustrado, fiquei. Era a primeira vez que a tradição era quebrada. Por isso decidi vingar-me a 2 de Abril. A tanga era esta: o PS ia propor a extinção da figura dos referendos nacionais, fossem eles a propósito do que fossem. Como imaginava que ninguém ia acreditar, poupava-me a explicações fastidiosas ao mesmo tempo que compensava a frustração da véspera.

Mas eis que Vital Moreira (VM), hoje mesmo, teve uma virtuosa descarga de espírito sobre a questão referendária no seu post “Não aprenderam nada?”. Segundo ele, “a regionalização, tal como foi tentada em 1998, não tem a mínima hipótese de passar em referendo”, pelo que “o caminho passa agora pela agregação voluntária das novas entidades supramunicipais ou pela progressiva transformação das actuais NUT II, (…)”. Alto lá. Se até VM implicitamente pensava que nunca chegaríamos a lado algum pela via referendária e que não havia alternativa senão a agregação voluntária das impantes “áreas metropolitanas”, então o meu post arriscava-se a ser tomado a sério. Mudei então de ideias. Vou guardar as minhas próximas mentiras sobre o “processo de regionalização em curso” para outra altura (suponho que para muito breve).

Luís Nazaré

«Durão poupado no Causa Nossa»?

«Num dos seus últimos passos em Maputo, pareceu-me que Durão Barroso teve um discurso indisfarçadamente paternalista/colonialista quando recomendou aos candidatos a Presidente da República do país que, conhecidos os resultados da eleição, respeitassem cada um o outro -- i. e., que o 'vencedor' respeitasse o 'vencido' e vice-versa.
Pergunto-me se o chefe do Governo de Lisboa teria comportamento semelhante perante -- por exemplo -- candidatos a presidentes da república de um país europeu qualquer.
Não vi no Causa-Nossa qualquer referência a isso. E penso que caberia aí um comentário -- digamos que até ficava bem... De resto, sobretudo pelas penas (...) de dois elementos (assimétricos?!) do ilustre e dinâmico blogue, Moçambique vem merecendo aí carinhosa atenção. E ainda bem!
Um diplomata de carreira teria ido 'tão longe' na negação de diplomacia? Durão Barroso foi sucessivamente secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e ministro da pasta, e teve na altura contactos intensos com países africanos de língua oficial portuguesa. Mas não parece. Também afinal não parece que tenha sido (na juventude) militante de uma facção estudantil de esquerda.
Deve estar-lhe 'na massa do sangue': numa referência às recentes eleições na Guiné-Bissau, lá veio ele falar do respeito pelos resultados...»


(IMC, 02-04-2004)

O “efeito francês”

Lendo hoje a entrevista dada ao Diário Económico pelo novo vice-presidente da bancada parlamentar do PSD, Miguel Frasquilho, que também teve responsabilidades na elaboração do programa do actual Governo, percebe-se bem por que é o nervosismo se apossou das hostes governamentais e por que é o Primeiro-Ministro se dedicou subitamente a trocar o discurso pessimista que utilizou durante dois anos sobre a situação económico-financeira por um discurso artificialmente optimista, falando de uma “retoma” económica ao virar da esquina e anunciando mesmo um aumento dos rendimentos reais já no próximo ano. É que, afinal, as perspectivas são tudo menos fagueiras nessa frente. Frasquilho declara que as eleições parlamentares de 2006 podem ser disputadas num clima em que ainda se não farão sentir os efeitos da esperada retoma.
Ora, se for esse o caso, então pode bem repetir-se o recente exemplo francês, com um eleitorado fortemente castigado pelas reformas sociais restritivas em ambiente de depressão ou estagnação económica a punir severamente o governo. Mais do que o “efeito espanhol” de que falou J. Pacheco Pereira – em Espanha as questões económico-sociais favoreciam o governo –, o espectro que pode assolar doravante os espíritos da coligação governamental é claramente o “efeito francês”.
A ser assim, a sorte do Governo pode já não estar nas suas mãos. Por um lado, não pode recuar nas reformas encetadas (seria pior a emenda que o soneto), como se prepara para fazer o novo governo francês depois do "cartão amarelo" da pesada derrota nas eleições regionais; por outro lado, já não pode estar seguro de que a inversão do ciclo económico venha a tempo de o salvar do descontentamento social.

Vital Moreira

"Inventor de livros"

José Domingos da Cruz Santos. A cultura de um País deve muito a homens como este, que dedicam a vida a fazer livros. Poucas homenagens são tão justas como a que merece este “inventor de livros”, como a si mesmo se define, ao longo de quarenta anos. Quem pode inscrever a seu crédito, entre tantas outras obras, por exemplo as notáveis iniciativas editoriais da antiga Inova – entre elas as antologias feitas por Eugénio de Andrade sobre o Porto (Daqui Houve Nome Portugal, 1968) e sobre Coimbra (Memórias de Alegria, 1971) – ou essa pequena jóia livreira que é a colecção “Pequeno Formato” da ASA, ou a organização pessoal de livros de homenagem como os dedicados a Eugénio de Andrade e Urbano Tavares Rodrigues, tem direito ao reconhecimento do País.

Abstenção e voto branco

É sabido que não concordo com F. J. Viegas, quando ele afirma que «a abstenção é uma arma mais poderosa, infinitamente mais poderosa, do que o "voto em branco": ela significa o desinteresse absoluto».
Imaginemos que em vez de 30% de abstenção – uma taxa hoje considerada aceitável – havia 30% de votos brancos. Não tenho dúvidas de que toda a gente consideraria estarmos perante uma situação muito grave. Quase um em cada três eleitores tinha-se dado ao trabalho de ir às urnas manifestar a sua rejeição dos candidatos.
Quem se abstém não vota, abdica de intervir, renuncia ao seu direito de voto, aliena-se dos mecanismos democráticos. Mas da abstenção não é possível retirar nenhum sentido geral nem unívoco, pois tanto pode significar uma absoluta rejeição dos mecanismos democráticos (um monárquico que se recusa a votar na eleição do presidente da República), como o simples desinteresse (“a minha politica é o trabalho”), como uma atitude de inutilidade (julgar antecipadamente decidido o resultado eleitoral), como o simples impedimento ocasional.
Provavelmente, se tivessem de votar, a maior parte dos abstencionistas votaria numa das candidaturas (em eleições) ou numa das opções (no caso dos referendos). É por isso que nos países onde o voto é obrigatório a percentagem de votos brancos, embora seja tendecialmente maior do que nos países onde o voto é facultativo, fica muito longe das taxas de abstenção destes.
Ao contrário, o voto branco revela sempre uma atitude activa de rejeição, seja dos candidatos e das opções em disputa, seja do próprio mecanismo electivo em si mesmo. Quem vota branco vota ainda, participa no jogo democrático, ao contrário de quem se asbtém. Mas, participando no jogo democrático, recusa-se a exercer uma escolha entre as que lhe são propostas.
É por isso que é discutível a relevância que a nossa Constituição dá à abstenção nos referendos (que só são vinculativos se houver uma participação superior a metade dos eleitores) e a irrelevância dos votos brancos na eleição presidencial (que não contam para o apuramento da maioria absoluta).

Ventos do sul

Uma das vencedoras socialistas nas eleições regionais francesas do passado domingo, Ségolène Royal, mais célebre do que outras, pelo seu curriculum e por ter ganho no círculo do próprio Primeiro-ministro, Pierre Raffarin, anunciou que vai desenvolver na sua região novos métodos de gestão e participação locais, como o do "orçamento participativo".
É sabido que esta é uma experiência importada do Sul, tendo sido pela primeira vez desenvolvida em Porto Alegre, no Brasil, no início da década de 90. Poderá resultar em França, ou não.
É contudo importante que o Norte não cometa os mesmos erros que o Sul tem cometido tantas vezes: o de transplantar sem mais leis e organizações cuja eficácia depende de condições locais, não se preocupando em verificar se elas podem resultar fora do seu contexto originário ou se, pelo menos, necessitam de adaptações prévias para que o sucesso possa ser repetido.
Este caso permite ainda verificar com satisfação que os “transplantes” têm agora duas direcções e não apenas uma. Há ventos que sopram do sul. Há iniciativas do sul que se reproduzem para o norte e não apenas o contrário.
Lembrei-me, a propósito, que, quando o então Ministro da Justiça, António Costa, quis criar os julgados de paz, foi também ao Brasil e à Argentina que mandou uma equipe do seu Ministério estudar as experiências semelhantes que aí estavam a funcionar.
Por essa altura, trabalhava eu em Moçambique, num projecto sobre as reformas do sistema judicial. Quando se pretendia enterrar as experiências dos Tribunais Comunitários ainda em funcionamento – uma forma de justiça de proximidade para pequenos litígios, relativamente desformalizada e pouco dispendiosa – lembro-me de lhes termos recomendado que não deitassem fora aquilo que nós, no Norte, estamos a ter de reinventar. Tanto quanto vou sabendo, é isso que está a acontecer.

Maria Manuel Leitão Marques

quinta-feira, 1 de abril de 2004

Super Bill, Super Mário

A propósito dos meus posts sobre a condenação da Microsoft pela Comissão Europeia (aqui e aqui) recebi bastantes comentários, ora muito críticos, ora de apoio. Todos legítimos, mas alguns com pouco sentido. Três observações breves:
1. É sabido que este caso não reúne um consenso nos especialistas. Há quem seja muito a favor, há quem seja muito contra e há os que esperam para ver o resultado final.
2. Mas de modo nenhum ele pode ser entendido como uma perseguição da Europa contra a América, como certos congressistas fundamentalistas de Washington quiseram fazer crer. Aliás, foi lá, nos Estados Unidos que a Microsoft foi, pela primeira, vez acusada de violar as regras da concorrência, no princípio da década de 90. Além disso, quem poderá vir a beneficiar de mais concorrência neste mercado serão sobretudo outras empresas americanas. (Isto mesmo é reconhecido por alguns especialistas norte-americanos).
3. Muito menos implica demonizar a Microsoft (os maus) e procurar os bons em qualquer outro lado. A decisão visa assegurar a concorrência no mercado de software, em nome da inovação e da liberdade de escolha. Bill Gates e a Microsof fazem o seu papel. E Mário Monti e a Comissão Europeia, também.

MMLM

"Cadeia da Esperança"

O principal serviço de notícias da RTP atribuiu uma importância secundária à visita do Primeiro-Ministro português a Moçambique. A pequena reportagem dedicada ao último dia da visita entrou já cerca de 25 minutos depois do início do jornal nocturno da estação de serviço público nacional. Se é assim que se quer fomentar a CPLP, estamos conversados...
Ainda assim foi gratificante assistir à visita ao Instituto do Coração do Maputo, uma iniciativa não governamental moçambicana que, desde o seu início, conta com o apoio decisivo de uma ONG portuguesa, a Cadeia da Esperança, sedeada em Coimbra (declaração de interesses: sou associado!), juntamente com organizações congéneres de outros países europeus. Apesar de ser um gesto devido, revela sensibilidade política do Primeiro-Ministro o ter incluído essa instituição de excelência no seu roteiro moçambicano, bem como o convite ao presidente da Cadeia para o acompanhar na visita. É também através destes pequenos sinais que se presta o justo reconhecimento aos esforços da “sociedade civil” na cooperação e na ajuda aos PALOP, como os da Cadeia da Esperança.

Deixamos imolar Ramiro Lopes da Silva?

Ele ficou a dirigir a ONU em Bagdad quando Sérgio Vieira Mello e mais 22 funcionários foram assassinados num miserável atentado em 19 de Agosto de 2003. Na altura os nossos media embandeiraram em arco, destacando a «portuguesisse» do Ramiro – muitos escamoteando, parolamente, a «moçambicanisse».
Dia 29 de Março um despacho da «UN News Service» relatou que Kofi Annan «tomou fortes medidas disciplinares depois de um inquérito revelar falhas de segurança em Bagdad»: o Coordenador de Segurança foi convidado a demitir-se da ONU e Ramiro Lopes da Silva, o seu delegado no Iraque, foi acusado de conduta errada e instado a imediatamente demitir-se de Assistente do SG da ONU, regressando ao WFP (PAM).
O despacho também informa que a Secretária-Geral Adjunta, a canadiana Louise Fréchette, que presidia ao «Steering Group on Iraq» (o órgão responsável por aconselhar Kofi relativamente ao Iraque, composto por altos funcionários e pelos chefes das agências que ali operavam, que recomendou que a ONU voltasse a Bagdad depois do derrube de Saddam) pediu a demissão logo que foram conhecidas as conclusões do inquérito. Mas Kofi Annan recusou-a «tendo presente a natureza colectiva das falhas atribuíveis ao SGI».
Ramiro Lopes da Silva subiu na ONU por mérito pessoal, sem apoios do Estado português, que trinta anos depois do 25 de Abril ainda não aprendeu certas coisas.... Não o conheço pessoalmente. Mas conheço muita gente na ONU e nas missões por onde ele passou que louva as suas excepcionais qualidades profissionais e pessoais e a sua dedicação ao serviço da ONU. Qualidades evidenciadas quando ele, ainda não refeito do atentado a que escapou, assumiu a substituição do Sérgio em Bagdad.
Também conheço a ONU e sei como ela funciona. Conheço a Sra. Louise Fréchette, que veio para SG Adjunta e começou a chefiar o SGI no tempo em que eu trabalhei no Conselho de Segurança, onde Portugal tinha a presidência do Comité de Sanções ao Iraque e começou a aplicar o programa «oil for food».
E o que li na «UN News» cheirou-me muito, mesmo muito mal. Eu defendo afincadamente a ONU e isso implica criticá-la quando é preciso e se justifica. As «responsabilidades colectivas pelas falhas» servem para safar alguns. Porque são canadianos ou de outros países que sabem trabalhar nas instituições multilaterais, investindo em colocar, apoiar e promover os seus nacionais nos quadros da ONU. Mas não funcionam para outros, como Ramiro Lopes da Silva. Porque é português e Portugal não sabe respaldar os seus nacionais.
Que fez o MNE? A Ministra terá sido alertada? O Governo não faz nada, deixando tornar bode expiatório um português valoroso?
Como me observou um amigo que trabalha em Nova Iorque, na ONU: «Parece que estão a castigá-lo por não ter morrido no atentado de Bagdad. Será que o Sérgio também estaria a ser punido se tivesse sobrevivido?»

Ana Gomes

Cuide-se Professor!

«Por mim não tenho a pretensão de ter verdades absolutas, ainda que me incline, talvez por reflexo de jurista, para a posição que entende que a intervenção no Iraque, ainda que tenha livrado o Mundo de uma tirania abominável, prejudicou a guerra contra o terrorismo e alimentou este
O Prof. André Gonçalves Pereira que se acautele. Depois deste seu clarividente artigo de hoje no Público sobre a guerra do Iraque, que só peca por tardio, nada -- nem a sua indiscutível independência intelectual, nem o seu conhecido conservadorismo político, nem o facto de ter sido Ministro dos Negócios Estrangeiros de um Governo da AD -- o vai salvar da sanha impiedosa da "patrulha ideológica" que entre nós representa o Pentágono e se encontra encarregada de punir toda a crítica à chamada “guerra ao terrorismo” de George Bush. É pura é simplesmente proibido dizer que a invasão do Iraque foi ilegal e ilegítima, que os pretextos para ela eram falsos, e – ó heresia suprema – dizer que ela nada teve com a luta contra o terrorismo, tendo inclusivamente prejudicado essa luta e alimentado o próprio terrorismo!
Cuide-se Professor!

A Constituição de Madrid

“Tratado de Madrid” em vez de “Tratado de Roma”, como até agora – eis como chamaremos à carta fundamental da UE, se for aceite a proposta aprovada pelo Parlamento Europeu de realizar na capital espanhola a cerimónia de assinatura da Constituição Europeia, agora em vias de ser ultimada. Tendo em conta o fundamento da ideia – homenagem à luta contra o terrorismo –, vai ser difícil ao Conselho Europeu contrariar esta proposta, por mais que isso possa desagradar ao País a quem neste momento cabe a presidência, a Irlanda, que assim se vê “expropriado” dessa glória histórica.

As crianças de Moçambique

O Primeiro Ministro Durão Barroso acaba de visitar Moçambique. Esperemos que tenha aplicado os seus talentos a convencer as autoridades moçambicanas de que é precisa uma investigação a sério, com participação internacional – e eventualmente apoio da UNICEF ou do Centro dos Direitos Humanos da ONU – para esclarecer (e desvanecer, se for caso disso) as alegações de tráfico ou execuções de crianças para lhes extrair órgãos.

É que só isso servirá o interesse de Moçambique – das crianças moçambicanas e não só. Do próprio Estado e autoridades de Maputo. Porque as investigações já levadas a cabo pela Polícia e a PGR de Moçambique, a avaliar pelos relatos da imprensa portuguesa, não parecem credíveis. E a recusa de ajuda externa, nada acrescenta à credibilidade, muito pelo contrário, aguça suspeitas e dúvidas... Alguém tem de dizer isto, muito claramente, ao Presidente Chissano e seus ministros.

Conversei recentemente com Hans Thoolen, que preside ao «Prémio Martin Ennals para Defensores dos Direitos Humanos» (ver post precedente). Sobre as situações em Angola, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe, Cabo-Verde, Timor-Leste, Indonésia, entre outras. Moçambique e as alegações de venda/rapto de crianças de crianças para tráfego ou consumo de órgãos vieram inevitavelmente à baila. Lembramos um filme passado em 1989 na Comissão de Direitos Humanos em Genebra que denunciava estas práticas (eu e a Marta Santos Pais não queríamos acreditar, nem conseguíamos respirar, saímos disparadas para ir chorar e vomitar na casa de banho). Na altura, um dos países referenciados era a Colômbia.

Propus a consideração das religiosas que tiveram a coragem de fazer as denúncias em Moçambique como candidatas ao Martin Ennals Award de 2005. O que exigirá sempre uma rigorosa investigação independente.

Ana Gomes

Prémio Prémio Martin Ennals para Defensores dos Direitos Humanos

Há dias esteve em Lisboa um velho amigo, dos meus tempos de Genebra, Hans Thoolen, que é um respeitado perito em direitos humanos da ONU e foi durante anos o principal conselheiro da Senhora Sadako Ogata, Alta Comissária para os Refugiados da ONU.
O Hans hoje preside ao «Martin Ennals Award for Human Rights Defenders», conferido pelas principais ONGs de Direitos Humanos do mundo (Amnesty International, Human Rights Watch, Comissão Internacional de Juristas, Fédération Internationale des Droits de l’ Homme, Defense for Children International, International Alert, entre outras) a pessoas que se distingam pela sua coragem como Defensores dos Direitos Humanos. Ver o seu website.
O prémio deste ano vai ser entregue no próximo dia 7 de Abril, em Genebra, à tchechena Lida Yusupova, nascida em Grozny em 1961, advogada, professora de Direito Constitucional e representante em Grozny da organização de direitos humanos russa «Memorial», pela sua coragem em denunciar violações dos direitos humanos na República da Tchechénia.
O prémio de 2003 foi entregue ao advogado colombiano Alirio Uribe Muñoz pelo saudoso Sérgio Vieira de Mello, então Alto Comissário para os Direitos Humanos da ONU.
Martin Ennals, quem foi ? Tem muito a ver connosco, portugueses: foi o fundador da Amnistia Internacional e começou-a com uma campanha para libertar dois presos políticos do regime salazarista, nos anos 60.

Ana Gomes

Não aprenderam nada?

Um porta-voz do PS insinuou ontem que, em voltando a ser governo, o PS pode revogar a reforma da administração territorial em curso, que consiste na criação de entidades supramunicipais por meio da agregação voluntária de municípios. No entender do mesmo porta-voz, a alternativa do PS é a regionalização verdadeira e própria, por via referendária, com um mapa pré-definido, tal como prevista na Constituição.
Importa, no entanto, lembrar os seguintes pontos:
a) a criação das entidades supramunicipais não é uma alternativa à regionalização propriamente dita, nem a preclude; trata-se de dois níveis diferentes de organização territorial e de duas lógicas distintas, que se não excluem uma à outra;
b) a reforma em curso não passa da implementação legislativa da faculdade constitucional de criação de estruturas intermunicipais com poderes próprios, introduzida na revisão constitucional 1997, com expressa aprovação do PS;
c) as novas entidades supramunicipais representam, no essencial, a extensão a todo o território da figura das “áreas metropolitanas” que até agora estava reservada para as regiões de Lisboa e do Porto, a qual sempre teve o apoio entusiástico do PS;
d) tal como foi tentada em 1998, a regionalização não tem a mínima hipótese de vingar em novo referendo a curto ou médio prazo; o caminho para as regiões passa agora pela agregação voluntária das novas entidades supramunicipais ou pela progressiva transformação das actuais NUTs II, correspondentes às cinco Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional, em autarquias regionais;
e) A actual reforma contou com a participação activa dos autarcas socialistas em todo o País, pelo que se compreede mal este ataque de última da hora, quando ela está praticamente consumada.
Há assim o risco de percepção de uma atitude dúplice em relação à reforma: benévola e cúmplice no terreno e hostil em Lisboa. A pergunta que se pode colocar é a seguinte: não aprenderam nada com o desaire de 1998 e com a inércia desde então?

E por que não pelo ar?

No Parlamento foi constituído um grupo de trabalho para estudar a possibilidade de a Nazaré poder juntar-se à área metropolitana de Leiria, apesar da falta de contiguidade territorial com ela (como exige a lei), dado que está isolada pelo município de Alcobaça, que resolveu aderir à área metropolitana do Oeste. Trata-se de saber se, excepcionalmente, a noção de continuidade territorial compreeende a ligação... por mar!
Há uma maneira mais simples: por que não a continuidade territorial pelo ar?

quarta-feira, 31 de março de 2004

Negociar com a Al Qaeda ?

Abaixo transcrevo um extracto (por mim reconstituido) de uma entrevista que dei no dia 26 de Março a uma revista semanal. Cujos editores optaram por excluir esta parte, apenas reproduzindo uma frase num outro artigo. Aqui fica, apesar de ser demasiado longa para «post»:
Que comentário lhe merecem as recentes declarações Mário Soares, em que ele defende a negociação com movimentos terroristas?
Penso que a posição do Dr. Mário Soares ficou compreensível para toda a gente. E se houvesse dúvidas, veja-se o que aconteceu dia 25 de Março: o Sr. Blair foi à tenda do Sr. Kadhaffi, que é obviamente um ditador e um terrorista, estender-lhe a mão, depois de meses a negociar com ele. Deu uma explicação política – recompensá-lo por ter abandonado os programas ilegais de armamento nuclear. Para isso bastava lá ter mandado um Secretário de Estado, como sublinhou boa parte da imprensa britânica. A explicação também serve para desviar atenções dos negócios de petróleo e armamento militar que o Reino Unido já tem na calha com a Líbia.
Então concorda com a posição do Dr. Mário Soares?
Concordo que é vital conhecermos o que está por detrás do fenómeno terrorismo nesta modalidade que é a Al-Qaeda. Este fenómeno é diferente dos outros e aqui não se pode negociar, até por uma razão simples: eles próprios não querem negociar. O que é indispensável é perceber como estas redes funcionam, os seus esquemas de actuação, a sua filosofia, os seus argumentos e pretextos para captarem recrutas. Não basta recorrer a meios policiais e militares, nem sequer à insispensável «inteligência» preventiva. É preciso conhecê-los, entendê-los para lhes dar combate ideológico e político. E a linha da frente desse combate faz-se no mundo islâmico, nas comunidades muçulmanas, seja na Indonésia, no mundo árabe ou na Europa.
Então não lhe repugna a hipótese de uma negociação com terroristas que atiram aviões contra arranha-céus?
É preciso negociar o que for possível negociar. Eu sou diplomata e, por formação e deformação profissional, um diplomata faz-se para negociar com o diabo, se for preciso. Ao longo da minha carreira tive de falar com alguns diabos para fazer o meu trabalho, nomeadamente na Indonésia e em Timor-Leste. E alguns eram pessoas tão destituídas de escrúpulos como os terroristas da Al-Qaeda. Se através da negociação se puderem evitar piores males, deve-se negociar. Mas negociar, como sublinhou o Dr. Mário Soares, não é capitular, não implica uma rendição.
Mas acha mesmo possível negociar com estas pessoas?
Neste momento não é possível negociar com a Al-Qaeda, até porque eles não querem negociar. E negociar agora implicaria dar-lhes algum grau de legitimidade, o que nas actuais circunstâncias é inaceitável. Nem sequer há nada de negociável no discurso deles. O que Osama Bin Laden evoca são pretextos oportunistas, que vai mudando consoante melhor lhe serve: combateu contra a URSS no Afeganistão, e assim começou por ser recrutado, armado e treinado pelos americanos, convém não esquecer. Depois voltou-se contra os EUA, por sustentarem no seu país o regime saudita, acusando-os de conspurcarem a península arábica com as tropas lá estacionadas desde a primeira guerra do Golfo. Só mais tarde começou a usar o argumento da injustiça contra os palestinianos. Depois, ficou com o Afeganistão para aproveitar – as atenções gerais desviaram-se rapidamente para o Iraque, o pobre Sr. Karzai que se safe como puder, o Presidente Bush no ano passado até se esqueceu de orçamentar fundos para ajudar o governo de Cabul, foi o Congresso que teve de acudir à pressa.... E entretanto ganhou ainda mais argumentos, terreno, recrutas com a guerra ilegal no Iraque... Não esqueçamos que na Indonésia e em todo o Sudeste Asiático, para tentar cativar os fiéis mais ignorantes e radicais, até esgrimiu o argumento da perda de Timor-Leste, como se os timorenses alguma vez tivessem pertencido à comunidade islâmica...
Também defende que é necessário compreender o inimigo?
Não fazer os cidadãos entender que esta ameaça é real já é mau – e muitos aqui em Portugal, incluindo este Governo, durante demasiado tempo desvalorizaram a ameaça da Al Qaeda, como se este país à beira-mar plantado fosse miraculosamente imune ao que atinge todo o resto do mundo.... Fui ficando abismada com a despreocupação geral que por cá se manteve depois do 11 de Setembro e que, de resto, explica a nossa impreparação para fazer face a eventuais ataques terroristas. Digo-o desde há muito – lembro-me que já numa entrevista ao defunto «Euronotícias», em Dezembro de 2002, acabava eu de passar pelo trauma do ataque de Bali, alertei que os portugueses andavam na lua ...
Mas ainda é pior quando mesmo depois dos atentados de Marrocos e de Madrid, ambos aqui ao lado, não se vê um esforço sério para compreender o que é a Al-Quaeda e quais os seus mecanismos de acção e implantação. Não tenho dúvidas que eles exploram em seu favor, como métodos de recrutamento e financiamento, os imensos focos de conflito que não estão resolvidos por esse mundo fora e que cada vez mais instigam em certos povos, certos grupos étnicos, religiosos, etc... fortes sentimentos de injustiça e desespero. O conflito israelo-palestiniano é, neste contexto, o principal cancro. Vi-o ser utilizado na Indonésia na propaganda das franjas mais radicais ligadas ao atentado de Bali.
Como é que se combate esse inimigo ideológico?
O combate ideológico e político contra a Al Qaeda e as suas teses nihilistas tem de ser feito com os líderes do mundo islâmico progressistas, que os há. Gente que quer a democracia, a modernidade e que quer também defender o verdadeiro Islão. Não são, em muitos casos, os actuais governantes. É preciso que os EUA e a União Europeia deixem de apoiar regimes corruptos e reaccionários no mundo árabe, só porque têm petróleo e compram armas e tudo o mais ao Ocidente (como durante tanto tempo apoiaram Saddam no Iraque). De facto, se há alguma constante nas teses de Osama Bin Laden, é o ódio ao regime saudita – que, paradoxalmente, financiou por todo o mundo as correntes wahabbitas que mais radicais forneceram às fileiras da Al Qaeda...
É também preciso entender que a Al Qaeda representa um desvio completo e perverso do Islão. A versão deles não é a do Alcorão com que eu convivi na Indonésia, o maior país muçulmano do mundo. O Islão é uma grande religião da humanidade, uma religião assente na compaixão, de misericórdia e na tolerância. Eu não alinho, de modo nenhum, na tese do «confronto de civilizações». Quem alinha são os terroristas da Al Qaeda...e quem não percebe que alinhar nessa tese é, de facto, fazer o jogo da Al Qaeda.
E para ter líderes políticos islâmicos esclarecidos na linha da frente deste combate é preciso conhecê-los, apoiá-los e ajudá-los. Isso implica também negociar. Seriamente, intensamente, para resolver os principais conflitos políticos, antes de mais o israelo-palestiniano. Em certos casos a negociação poderá ir até à conversação directa com os terroristas, como foi feito na Líbia com Kadhaffi, como se fez com o IRA e como até já fizeram os israelitas com o Hamas (noutra fase – cabe lembrar que o Hamas começou por ser financiado por Israel, nos anos 80, para disputar terreno à OLP – feitiços que se viram contra os feitiçeiros...). Mas, repito, não tenho dúvidas nenhumas de que, neste momento, não há negociação possível com a Al-Qaeda.

Ana Gomes

Dar relevância à abstenção eleitoral

No Ideias Soltas, Carlos Araújo Alves acusa-me de desvalorizar o significado da abstenção eleitoral como sinal de rejeição política. Mas a crítica é infundada, quer em geral (visto o muito que tenho escrito sobre isso), quer no que respeita ao texto que é por ele visado, sobre o voto branco, pois eu referia expressamente que a abstenção pode ser devida a vários factores, desde o desinteresse até à hostilidade contra a política ou contra os partidos. Limitei-me a dizer – o que mantenho – que, comparada com o voto branco, a abstenção constitui normalmente uma hostilidade de menor intensidade e de menor impacto, sendo por isso que os partidos políticos reagem mais mal ao voto branco do que à abstenção.
Quanto às sugestões de CAA para dar relevância à abstenção – a saber, admitir candidaturas não partidárias e deixar vagos lugares em proporção da abstenção –, não me parece decisiva a primeira nem aceitável a segunda. Quanto à primeira, nas eleições locais entre nós, onde há candidaturas independentes, a abstenção não é menor. Quanto à segunda, não vejo por que é que a dimensão das assembleias electivas deve depender da taxa de participação eleitoral, o que aliás em nada contribuiria para diminuir a abstenção; de resto, a diminuição da dimensão das assembleias proporcionalmente à abstenção representaria uma espécie de punição das instituições representativas, em prejuízo dos eleitores que não se abstiveram e que não têm culpa da abstenção dos outros. A abstenção não deve ser premiada, muito menos com a diminuição da qualidade da democracia representativa.

«Desastre social»

«Sobre o seu artigo - "A corrida para Leste", importa referir que a maioria dos empresários portugueses que neste momento estão a investir no Leste não o fazem para procurar salários baixos, fazem-no para poder competir nesses mercados quando se verificar o natural surto de desenvolvimento que irá ocorrer após adesão. A distância que separa Portugal dessa região da Europa inviabiliza qualquer veleidade de competição a partir de cá.
Aquilo que vai acontecer a Portugal com a entrada das novas nações na UE é exactamente aquilo que causámos aos países do norte da Europa nos anos 70 e 80 do século passado, como é o exemplo da indústria têxtil portuguesa (ver o artigo que escrevi ontem no meu blogue). O seu crescimento explosivo nos anos 70 e 80 deveu-se unicamente à deslocalização (programada) da produção têxtil da Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos.
O que é grave no nosso caso é que a enorme riqueza gerada por esta indústria (nos anos 80 o vale do Ave nadava em dinheiro) não serviu de alavanca para um maior desenvolvimento e maturidade industrial. Essa maior maturidade permitiria hoje ter um tecido industrial moderno e que a deslocalização têxtil fosse assumida como uma estratégia, tal como foi nos países atrás citados.
O desastre social no norte do país vai ser gigantesco, maior mesmo que a situação de Setúbal no início dos anos 80, e contra isso não há nada a fazer, pois os dados foram lançados há muito. Só nos resta esperar que do desastre possa emergir, pela primeira vez, uma classe empresarial digna desse nome.»


(LB)

"Regionalização das Universidades"

1. Contra a seriação das universidades
«(...) O texto sobre a necessidade de se implementar uma espécie de seriação de cursos superiores com o mesmo nome (ou da mesma área científica) surpreendeu-me.
Em primeiro lugar, parece testemunho de uma visão muito limitada do que é a realidade universitária do presente. As universidades não são nem nacionais nem regionais; são, cada vez mais, entidades charneira, motores de cooperação transnacional e, sobretudo, cientificamente transversais. (...) Falar, nesta altura, num qualquer sistema de certificação interna é, de todo, desenquadrado da realidade e – peço desculpa pela franqueza – soa a esgar corporativo. Como seriar um aluno que fez parte da licenciatura em Portugal e parte numa universidade estrangeira? (...)
Em segundo lugar, a haver a tal seriação – fosse ela feita por avaliadores independentes – os resultados talvez surpreendessem. Muitas são as áreas em que as ditas universidades novas há muito que deixaram para trás as ditas tradicionais (...).
Em terceiro lugar, penso não andar muito longe da verdade ao afirmar que, qualquer que seja a área de actividade, um mau profissional é imediatamente detectado pelos seus pares. Isso (aliado aos mecanismos de auto-regulação de cada uma delas) parece-me suficiente como medida de controlo. Mais importante ainda, parece-me mais justo. Quantos exemplos conheceremos ambos de pessoas que tiveram formação de base em instituições de reputação mediana e progrediram com êxito e comprovada competência nas suas carreiras?

(LAS)

2. A minha resposta
No artigo do Público sobre a "regionalização das universidades" defendi, entre outras coisas, que a sua escolha pelos utentes deve ter mais a ver com a sua qualidade do que com a sua proximidade territorial, sendo portanto necessários mecanismos que permitam aferir daquela com suficiente objectividade e remover os obstáculos à mobilidade territorial dos estudantes. Só com a diferenciação das universidades de acordo com a sua qualidade é que as melhores podem atrair os alunos mais qualificados, independemente da sua origem geográfica, contrariando a tendência para a sua regionalização territorial. Os argumentos do leitor não procedem contra esta tese. Entre outras coisas não referi nenhum “sistema de certificação interna”.

Vital Moreira

Voto branco (III)

«Verdadeiramente José Saramago não apelou ao voto em branco. Claro que a autoridade moral e intelectual de que ele está investido dificilmente suporta que se avalie a democracia da forma contundente como ele a avaliou, sem que se corroborem as conclusões de que o sistema precisaria de um cartão amarelo por parte do eleitorado.
José Saramago explicitou o que seria o cartão amarelo; todavia há um pormenor que não é de somenos importância e que ele inadvertidamente (?) esqueceu ou ultrapassou; José Saramago é militante do PCP e integra, ainda que simbolicamente, as listas de candidatos da CDU às eleições para o Parlamento Europeu.
O diagnóstico à "democracia que temos" não peca por inverdades, mas amarrou José Saramago a alguma imprecisão que está a ser dolosamente explorada. Penso que ele se terá precipitado, ou será que ele se esquece que tem muitos inimigos em Portugal?»

(LB)

Voto branco (II)

A história das eleições regista numerosos casos de apelo ao voto branco nas mais variadas situações: o partido que não concorre e que apela aos eleitores para não votarem nos outros; os partidos extremistas que pretendem deslegitimar os “partidos do sistema”; os candidatos que ficam fora de uma segunda volta eleitoral e que desejam impedir os seus eleitores de votar nos candidatos apurados, etc.
Raramente o voto branco assumiu expressão preocupante. Por exemplo, ainda nas últimas eleições presidenciais francesas (2002) houve sectores da extrema esquerda que apelaram ao voto branco da esquerda na 2ª volta, para não votar nem em Le Pen nem em Chirac, sem grande efeito, como se sabe; o mesmo sucedeu em 1975, em Portugal, quanto alguns sectores dos militares revolucionários se pronunciaram pelo voto branco, também sem qualquer êxito.
Mas mesmo fora da ficção literária não é de todo improvável que, verificadas certas circunstâncias (crise aguda da democracia representativa, rigidez do sistema partidário, impasse político grave, etc.), o voto branco possa assumir maior peso. Em Portugal, porém, a sua expressão tem sido em geral negligenciável (abaixo de 2% e por vezes mesmo abaixo de 1%). A abstenção, essa, tem aumentado, revelando uma crescente desafeição em relação à participação politica; mas são proporcionalmente poucos os que, vontando, optam pelo voto branco. Por este critério não se pode dizer que seja elevado o nível de descontentamento activo e intenso em relação ao nosso sistema democrático.

Voto branco e democracia

O novo livro de José Saramago, Ensaio sobre a Lucidez, veio colocar em discussão a questão da “crise” da democracia representativa e do voto branco como instrumento de rejeição e protesto. Na verdade, o voto branco é uma maneira perfeitamente democrática de exprimir descontentamento político. Em geral, ele é uma alternativa à abstenção por parte de cidadãos civicamente empenhados; em certas circunstâncias ele pode ser também uma alternativa ao voto em partidos extremistas, anti-sistema.
Ao contrário da abstenção, que é geralmente produto de uma atitude de desinteresse ou falta de informação, ou de hostilidade de baixa intensidade, o voto branco supõe uma atitude deliberada e uma rejeição de mais forte intensidade, pois implica o esforço de ir votar. Por isso em eleições ele dá expressão em regra a uma das seguintes atitudes: recusa de escolha entre os concorrentes, rejeição de todos os concorrentes, rejeição do sistema democrático ele-mesmo, hostilidade em relação à política. Ora numa democracia pluripartidária, onde exista liberdade de organização e de actividade de partidos, essas situações não são muito numerosas em condições de regular funcionamento do sistema. Salvo quando atingem maior intensidade, o descontentamento e a desafeição em relação aos partidos ou ao sistema ele mesmo exprimem-se mais pela abstenção do que pelo voto branco, que representa um voto activo.
Em geral os votos brancos são legalmente irrelevantes, não contando para o apuramento de maiorias eleitorais, que são calculadas somente com base nos “votos expressos”. Existem mesmo países onde nem sequer se procede à sua contagem separada dos votos nulos (França, por exemplo). Mas é evidente que politicamente seria tudo menos irrelevante uma forte percentagem de votos brancos. Por isso, em certo sentido, sob o ponto de vista democrático, o voto branco pode ser preferível à abstenção, desde logo porque ele reclama maior atenção em relação à qualidade da democracia, dado traduzir a desaprovação de cidadãos interessados, que querem exprimir a sua opinião e participar nas escolhas da colectividade.
Há quem condene em geral o voto branco. Mas uma coisa é cativar os cidadãos para exprimirem uma opção partidária e outra coisa é enterrar a cabeça na areia face aos votos de protesto, fazendo de conta que nada se passa. O voto branco pode ser um excelente sismógrafo da democracia.

A corrida para o Leste

A entrada dos novos países do Leste na UE está a provocar uma corrida às deslocalizações de empresas dos actuais Estados-membros (incluindo Portugal) para esses novos países. Entre os factores de atracção estão naturalmente os salários muito mais baixos, a “flexibilidade laboral” (facilidade de despedimentos) e uma menor força sindical (menos greves), consideráveis ajudas de Estado ao investimento estrangeiro e “last but not the least” a competitividade fiscal ao nível dos impostos sobre as empresas, que nesses países pode ser menos de metade dos valores da Alemanha, por exemplo. Fala-se já mesmo em “concorrência desleal em matéria fiscal”.
Por isso, os países mais desenvolvidos, com impostos mais altos, vêm-se em risco de perder empresas, empregos e receitas ficais, ao mesmo tempo que continuam subsidiar pesadamente os países beneficiários das deslocalizações.
É evidente que a prazo o consequente desenvolvimento dos novos países virá a ter efeitos colaterais positivos, como o aumento das importações e diminuição da necessidade de ajudas da UE. E o consequente aumento da competitividade externa das empresas europeias beneficia a sua economia em geral. Mas entretanto os países de onde as empresas emigram sofrem inevitáveis prejuízos, sobretudo no desemprego e na perda de receita. Em tempos de baixo crescimento, como os actuais, isso só pode agravar a situação.