quarta-feira, 18 de agosto de 2004

De regresso (II)

Também retomei a minha coluna semanal no "Público". O artigo de ontem era dedicado ao escândalo dos últimos dias, ou seja, as repercussões das já célebres gravações de um jornalista do Correio da Manhã com os seus interlocutores, entre os quais o então director da Polícia Judiciária e a assessora de imprensa do Procurador-Geral da República, com informações e comentários sobre matérias que estavam em segredo de justiça. Uma vergonha!
Entretanto, apesar de cada vez mais "chamuscado", o PGR resolveu manter-se em funções,aparentemente confortado pelo oportunista apoio vocal que lhe proporcionado pelo Presidente da República e pelo primeiro-ministro. Até ao próximo incidente! Entretanto o crédito público da justiça levou mais uma forte machadada.

De regresso

Após uma ausência de várias semanas, cá estou de regresso às lides bloguísticas e outras. Estas semanas de propositado recato público serviram para me convencer de duas coisas: que a minha adicção bloguística não é tão fatal como temia e que o CN não depende de mim para singrar... Ainda bem que assim é!

Cassetes que cheiram mal

Entendo que, no limite, é lícito gravar conversas com fontes ouvidas em «on» (para que o jornalista possa prevenir futuros desmentidos e «correcções» ao que efectivamente foi dito). Mas para além da ilicitude de gravações não combinadas com as fontes, para quê gravar testemunhos dados em «off» se não for numa lógica de chantagem subreptícia entre o jornalista e as fontes anónimas?

Uma coisa é prevenir desmentidos quando confrontamos uma fonte identificada com a sua posição ou as suas responsabilidades num determinado assunto. Outra coisa inteiramente diversa é construir uma peça jornalística com implicações graves para terceiros a partir de informações de fontes anónimas sem o jornalista estar efectivamente convicto da sua fiabilidade.

Por outras palavras, se Octávio Lopes, do Correio da Manhã, gravou as conversas com as suas fontes anónimas foi por não estar verdadeiramente seguro de estas serem fiáveis. No entanto, isso não o impediu de publicar manchetes estrondosas visando a reputação e o carácter de figuras públicas e que configuravam autênticos assassinatos de carácter. Ora, um comportamento tão execrável pôde passar sem uma condenação radical de quem se propõe representar oficialmente a deontologia profissional dos jornalistas. Pelo contrário: o Sindicato fez questão de condenar o alegado roubo das cassetes e a sua divulgação à revelia do «repórter» gravador, mas não verberou o repugnante exercício jornalístico por este praticado.

Entretanto, a intolerável leviandade moral de Octávio Lopes (secundada pela direcção do seu jornal) põe outra questão: a da leviandade «funcional», digamos assim, com que expôs material para ele tão sensível à possibilidade de um extravio ou um roubo. A acreditar que este efectivamente aconteceu, é incompreensível que ele não tivesse tomado os maiores cuidados em guardar permanentemente consigo, em lugar a que só ele pudesse ter acesso, tantos registos «secretos» e «explosivos». A não ser que a sua mitomania de intocável «abutre» judicial o tenha levado a descurar a mais elementar prudência de quem é suposto guardar ciosamente os seus segredos. Em qualquer caso, tudo isto cheira a história muitíssimo mal contada, tão mal contada como o jornalismo «investigativo» de Octávio Lopes.

Foi, porém, um jornalista com estas características patológicas, responsável por esse infecto «jornalismo» de sarjeta das primeiras páginas do Correio da Manhã, que conseguiu captar e explorar, durante meses e meses a fio, a confiança de fontes colocadas em lugares estratégicos decisivos (como a direcção-nacional da PJ e a assessoria de imprensa da PGR, esta assegurada, imagine-se, por alguém cujo percurso académico culminou numa tese sobre deontologia jornalística!!!. Desgraçado jornalismo, desgraçada justiça que nele se revê! Se a promiscuidade é sempre detestável, esta dá vontade de vomitar.

A partir daqui, todos os enigmas da violação do segredo de justiça, que o sr. Procurador sempre fugiu a investigar e esclarecer, parecem charadas infantis. Eis-nos assim chegados à incontornável questão: como é que um homem que lava as mãos como Pilatos das suas responsabilidades institucionais e tem demonstrado tamanha falta de carácter (como justamente apontou o Bloco de Esquerda) pode garantir qualquer estabilidade ao funcionamento da Justiça e à isenção da investigação criminal? Quem é que ainda pretende meter a cabeça na areia (seguindo, assim, o próprio comportamento de Souto Moura) e convencer-se de que este Procurador tem condições éticas e políticas para permanecer no cargo?

Vicente Jorge Silva

Justiça e jornalismo de sarjeta

O processo Casa Pia, tal como tem vindo a decorrer desde o início, só remotamente servirá para apurar a verdade e garantir justiça às vítimas indefesas dos crimes pedófilos. Mas, em contrapartida, serviu para tentativas anónimas de assassinato de carácter, perpetradas por um tenebroso conluio entre mentes doentias, mitómanas e ressentidas que reúnem o que há de pior em dois pilares de uma sociedade democrática: a justiça e os media. O reles atrai o reles: eis uma velha verdade nunca desmentida.

Entretanto, como Deus escreve direito por linhas tortas, é sempre possível que, à falta da justiça propriamente dita, se obtenha, pelo menos e para já, uma justiça?poética. É esse o efeito imediato do «caso das cassetes roubadas», através do qual se celebraram as núpcias entre o rebotalho da justiça e o jornalismo de sarjeta.

Depois deste strip-tease, deste cair de máscaras, é preciso que se tirem todas as consequências do caso e se vençam os bloqueios corporativos para que a miséria moral dos comportamentos não fique impune (custe o que isso custar aos seus autores, cúmplices ou encobridores, chamem-se estes Procurador-Geral da República ou Sindicato dos Jornalistas) e para que as aparências da hipocrisia institucional não prevaleçam uma vez mais. É fundamental pôr inteiramente a nu a tramóia de uma justiça que, em vez de investigar, intoxica e difama a coberto do anonimato, e de um jornalismo dito investigativo que vorazmente se alimenta desse anonimato irresponsável e sórdido.

Vicente Jorge Silva

Notícias da Madeira

6 de Agosto -- O Presidente do Governo Regional, Alberto João Jardim, ordena a um agente da PSP que multe uma cidadã estrangeira por alegada infracção de estacionamento na Avenida de Zarco, no Funchal. O agende obedece.

7 de Agosto -- A condutora multada dá a conhecer o acontecimento na secção de cartas do leitor do «Diário de Notícias» do Funchal (o jornal mais lido na Madeira, cujo accionista maioritário é o grupo Blandy, de origem britânica). Interpelado pelos jornalistas durante a inauguração de um caminho rural (foram anunciadas 129 inaugurações até às eleições regionais de Outubro, período durante o qual irá fazer 156 discursos, todos de improviso), Alberto João Jardim confirma que voltaria a ordenar a multa à cidadã estrangeira e, a propósito, mostra-se irritado com as «mentiras» divulgadas pela «folha reles» e «subserviente». E esclarece: «O meu principal inimigo, na Madeira, é o diário dos Blandy».

8 de Agosto -- Durante a entrega de prémios da final dos «Jogos Lúdicos» (sic) promovidos pelo PSD numa freguesia do Funchal, Alberto João Jardim anuncia a intenção de expropriar os grupos económicos estrangeiros, designadamente os Blandy. «Eu entendo - afirma Jardim - que quando um grupo económico está a prejudicar a vida da região, esse grupo económico deve ser expropriado ou deve-se tomar, em relação a ele, qualquer medida que a lei prevê para deixar de perturbar». Jardim adianta que se prepara para, em Outubro, «se o PSD ganhar as eleições, tomar as medidas que se impõem em relação a grupos económicos que são pessoas não gratas aqui na região».

9 de Agosto -- Alberto João Jardim começa as suas habituais férias no Porto Santo. Mal desembarca, logo anuncia o seu propósito de explorar «até ao tutano» as novas competências legislativas que a última revisão constitucional atribui às regiões autónomas. Entre as iniciativas previstas, conta-se a criação de uma polícia regional (seguindo o modelo do País Basco e da Catalunha). Durante um passeio pelas ruas de Vila Baleira, Jardim manda alterar a localização de um cartaz de propaganda eleitoral onde aparece vestido com uma camisa vermelha e branca às riscas e colarinho branco, acompanhado pela frase, sobre fundo verde: «Conseguimos!...e há que fazer mais!». Jardim confidencia que é o autor das frases deste cartaz e de outro que irá ser afixado em Setembro. Deduz-se que será também o responsável criativo pelo «design», a indumentária e a pose fotográfica.

11 de Agosto -- À saída de casa, no Porto Santo, Jardim promete processar judicialmente a autora da carta publicada no «Diário de Notícias» e o próprio jornal (ainda a história da multa). Entretanto, em resposta ao grupo parlamentar do PS, que pretendia convocá-lo a prestar esclarecimentos no parlamento madeirense sobre a anunciada intenção de expropriar grupos estrangeiros, o Presidente do Governo Regional limita-se a afirmar: «Defeco». Mas para que não restem dúvidas, acrescenta: «Tenho um desprezo tão grande pela oposição que podem dizer o que quiserem que não me afectam. Quando insultam, processo-os». E conclui: «Só vou à Assembleia se a maioria, de que eu dependo, me mandar». Nota de indumentária: no seu passeio pela praia, Jardim exibe um boné de um movimento independentista catalão.

14 de Agosto -- Ostentando uma boina com a efígie de Che Guevara, Jardim anuncia que, no comício do próximo dia 21, no Porto Santo, vai desmontar uma tentativa de «golpe de Estado» na Madeira. «Estavam a contar que eu não me recandidatasse e estava idealizado um governo de bloco central. A maçonaria já se tinha perfilado, mas eu surpreendi-os. Vou contar a tentativa de golpe de Estado que se iria fazer nas minhas costas».

(Que eu saiba, nenhuma destas fabulosas notícias mereceu atenção dos media nacionais).

Vicente Jorge Silva

sexta-feira, 13 de agosto de 2004

Cartier-Bresson

Já aqui manifestei, a propósito de Sophia, Brando e Pintasilgo, a minha relutância em escrever sobre mortos que me são queridos. Não me peçam que explique as razões desta reserva. Mas a verdade é que acabo por não conseguir libertar-me do dever de memória (comovida, sofrida) que sinto para com eles. Chego tarde às despedidas, gostaria de adiá-las, mas ainda assim chego. Atrasado, arrastando o remorso da minha cobardia, mas chego.

Cartier-Bresson partiu já há uns dias, com a serena naturalidade de quem se aproximava de um século de vida. Há cerca de vinte anos trocara a fotografia pelo desenho, sua paixão inicial. Mas foi como fotógrafo que ficou como «o olho do século».

Nenhum fotógrafo foi tão decisivo como ele, nenhum como ele soube captar o mistério do «instante decisivo»: a coincidência mágica entre o pulsar da vida e a geometria do real. Como se por detrás de cada situação surpreendida em flagrante pela câmara houvesse sempre uma ordem secreta de linhas, sombras e luz que lhe emprestava um sentido único e a resgatava do caos. A mais extrema simplicidade, o mais genuíno despojamento, a recusa do artifício, conjugavam-se com o número perfeito, a arquitectura do único enquadramento possível.

Tal como Antonioni no cinema, Cartier-Bresson foi quem, na fotografia, me ensinou a olhar. O rigor e a elegância com que compunha espontaneamente as suas imagens eram atributos de um caçador que apanha a presa no momento exacto e faz desse momento um instante de beleza fulgurante. Uma beleza que perdura para além da fracção de segundo em que foi surpreendida e que a deixou suspensa para sempre.

Cartier-Bresson foi um dos meus heróis. Como fotógrafo, como fotojornalista, como referência humana, ele que tornava absurda a separação entre estética e ética, entre forma e conteúdo. E que, por isso, repudiava vigorosamente a instrumentalização da imagem por legendas retóricas que alterassem a evidência singela do que estava lá e se oferecia à liberdade dos nossos olhos. Bastava apenas que soubéssemos olhar. Como ele.

Vicente Jorge Silva
(Por erro meu, o texto acima esteve desaparecido do blogue nos últimos dias. Embora com atraso, volto a colocá-lo em órbita com pequeníssimas alterações. Cartier-Bresson merece-o).

O PGR pêgêerra alguma coisa?

O inefável Dr. Souto Moura, que ainda não se demitiu nem foi demitido de Procurador-Geral da República, produziu mais um indigente comunicado a chutar para canto a propósito deste episódio, só atentando no ilícito cometido pelo jornalista, mas passando à margem de eventuais crimes praticados por agentes do Estado, como o Director e inspectores da PJ nas conversas com o jornalista.
Será pelo desconforto de eventualmente ele próprio, a sua assessora de imprensa e alguns dos magistrados sob a sua tutela e ligados a investigação do caso Casa Pia, terem tido conversas no mínimo tão «insensatas» como as que levaram o Governo a despedir sumariamente o Dr. Salvado? Para esclarecer dúvidas, porque não manda divulgar os registos das gravações de agentes da PGR com o jornalista do «Correio da Manhã»?
Este é o PGR que em Novembro de 2003, quando eu perguntei porque não se sabia nada de investigações sobre a pista lançada pela revista «Le Point» que apontava para dois ministros frequentadores do Parque Eduardo VII e ligados a actividades pedófilas, veio dizer que não havia matéria para investigar! Ora, bastava recuperar memórias da Esquadra da Alegria...
Não vale a pena esperar pelo inquérito sobre as cassetes roubadas que há dois dias o PGR não queria fazer e que o PM aparentemente lhe ordenou ontem que faça e rápido. É que nada do que este PGR pêgêerre tem já qualquer credibilidade. Excepto, claro, demitir-se.

Ana Gomes

Perguntas avulsas sobre as gravações «roubadas»

Eis algumas perguntas que precisamos de ver esclarecidas, a propósito destas gravações alegadamente roubadas e para além delas:
- O que disse Adelino Salvado ao jornalista? Segundo os jornais referiu-se a Ferro Rodrigues. O que disse que tanto incomodou o Governo, a ponto de o despedir sumariamente? E ao dize-lo foi apenas insensato, ou cometeu crime de violação de segredo de Justiça, ou, pior ainda, manipulou informação para manchar a reputação de Ferro Rodrigues e comprometer o PS, o que significa ter conspirado para subverter a democracia? E agiu assim por motu proprio ou a mando de alguém, mancomunado com alguém? De quem? Com quem? E não há responsabilidades politicas a pedir a quem o nomeou e manteve no cargo, designadamente à Sra. Dra. Celeste Cardona e ao Sr. Dr. José Manuel Durão Barroso?
- O que disseram ao jornalista a inspectora da PJ Rosa Mota e outros agentes da PJ que estão referenciados como regulares interlocutores do jornalista ? Uma das primeiras tarefas do novo Director da PJ vai ser investigar os crimes eventualmente praticados pelo seu antecessor e agentes sob as suas ordens, para começar a por a casa em ordem?
- O que disseram outros figurões do processo Casa Pia, como Catalina Pestana, Pedro Namora, Adelino Granja, Pedro Strecht, etc?.
- O que disseram ao jornalista do «Correio da Manhã» magistrados ligados à investigação do caso Casa Pia ? Que magistrados ?
- O PGR, Souto Moura, falou com o jornalista? O que lhe disse? E a sua assessora de imprensa, Sara Pina ?

Ana Gomes



Em causa o Estado de Direito e a Democracia

As cassetes gravadas e alegadamente roubadas podem até não ter nada de especial. Mas criou-se na opinião pública a ideia contrária e o despedimento liminar do Director da PJ ainda mais a reforçou. E o Governo a oferecer subitamente pactos de regime sobre a Justiça ao bloco central dos interesses ainda mais acentuou o cheiro a podre de toda a história. Cheiro para que contribuem também personagens que procuram abafar tudo, defendendo que se reservem os esclarecimentos apenas aos ofendidos, Ferro Rodrigues e PS...
Não, não nos vamos contentar com nada menos do que toda a verdade, nua e crua, sobre o conteúdo das gravações, acessível a todos os portugueses.
Como a mulher de César, à Justiça não importa apenas ser séria, importa parecê-lo. E não parece.
Não basta mandar para casa o Dr. Adelino Salvado. Vai ter de se esclarecer tudo e apurar responsabilidades políticas, profissionais e criminais, doa a quem doer, esteja por detrás ou pela frente quem estiver. E não apenas por Ferro Rodrigues, Paulo Pedroso e o PS vilipendiados. Mas pelas crianças abusadas na Casa Pia. E pela Justiça e pelo Estado de Direito democrático.
Para mim, cidadã da República Portuguesa, está muito em causa, para além da privacidade dos interlocutores do jornalista gravador e roubado.
Está em causa o funcionamento da Justiça, que tem agentes que deviam ser garantes do segredo de justiça e parecem ser os primeiros a violá-lo em conversas com jornalistas.
Está em causa o funcionamento da Justiça, que tem agentes que deveriam ser os principais garantes da imparcialidade e isenção da investigação criminal e sob os quais recaem fortes suspeitas de serem, afinal, manipuladores dela e da informação prestada ao público sobre ela.
Está em causa o funcionamento da Justiça e do Estado quando há fortes suspeitas de que agentes da Policia e da Magistratura, sob instruções da tutela política ou não, manipularam e perverteram investigações criminais e a informação pública sobre ela para por em causa cidadãos que exercem funções políticas e são dirigentes do principal partido da oposição.
Está em causa, em suma, o normal funcionamento das instituições democráticas. Está em causa o Estado de Direito. E a Democracia. Por isso aqui todos temos responsabilidades a assumir. E os mais altos magistrados da Nação não podem continuar a assobiar para o ar.

Ana Gomes

Gravações oficialmente divulgadas, já!

Não, ainda ninguém me fez chegar os CDs com a reprodução das cassetes alegadamente roubadas que andam a circular pelas redacções, apesar de eu ter dito que divulgaria aqui o que me parecesse relevante. Ainda não ouvi as gravações, portanto.
Mas a demora e o despedimento sumário de Adelino Salvado levam a concluir que o que está nelas deve ser realmente explosivo, a ponto de, desta vez, ninguém ter coragem de o divulgar. E que lestos (porventura encorajados por fontes policiais, judiciais ou governamentais) foram antes os media a publicitar transcrições de conversas de Ferro Rodrigues e Paulo Pedroso, apesar de estarem em causa não apenas conversas telefónicas de um jornalista com as suas fontes, mas peças de um processo em segredo de justiça.
A FOCUS ia publicar extractos das gravações, mas foi impedida por uma providência cautelar sustentada em horas, pasme-se, em tempo de férias judiciais, por um tribunal cível, incompetente para se pronunciar sobre a ilicitude das gravações, mas hiper-zeloso do «bom nome» dos escutados - alguns dos quais, nada tendo a temer, logo autorizaram a divulgação. Providência cautelar pedida, pasme-se, pelo jornalista que cometeu o crime de gravar à revelia dos interlocutores (se ele tem atenuante ou isenção da culpa, isso apura-se judicialmente em momento posterior). Jornalista que, na pretensão de impedir a divulgação das gravações, é apoiado, pasme-se, pelo respectivo Sindicato (se um jornalista matar alguém para escrever sobre a experiência de assassinar, o Sindicato impedirá a divulgação das provas do crime, para lhe preservar o material de trabalho?)
Perante o descalabro a que assistimos, o mínimo é exigir a divulgação integral do conteúdo das muitas horas de gravações. E, de preferência, em primeira mão, não por nenhum jornal, canal de rádio, TV ou blog, mas em site oficial, por exemplo o da PGR, que superintende a investigação do caso Casa Pia, ou do Ministério da Justiça que tutela a PJ cujo director foi demitido pelo Governo depois de ter ouvido as gravações.

Ana Gomes

quinta-feira, 12 de agosto de 2004

Que organização é esta?

Quem se dispuser a perder uns minutos numa reflexão sobre o absurdo da actual orgânica governativa, consulte aqui o texto que sobre a matéria hoje escrevi para o Jornal de Negócios.

Luís Nazaré

quarta-feira, 11 de agosto de 2004

Causa Nossa e o estranho caso das gravações roubadas

Estou em pulgas para conhecer o teor das gravações "roubadas" que levaram à demissão do director da PJ, Adelino Salvado. A minha colega de blogue, Ana Gomes, já prometeu que o tornaria público aqui no Causa Nossa, do mesmo modo que personalidades tão diversas quanto Pacheco Pereira, Luís Delgado e Miguel Sousa Tavares defenderam sem reservas a sua divulgação, a bem da decência e do interesse público. Não posso falar em nome do colectivo, impossibilitado de se reunir dado encontrar-se maioritariamente a banhos, mas acreditem que o Causa Nossa vai fazer uma cobertura intensiva dos acontecimentos. Deixem regressar o Vital...

Luís Nazaré

segunda-feira, 9 de agosto de 2004

Novos compromissos

Sei que há quem pense que tenho um preconceito contra o Expresso. E tenho. Não lhe perdoo o facilitismo, a tentação pela intriga cortesã, a perda de qualidade, os links pagos e os três euros que me obriga a gastar todos os sábados (ossos do ofício...). O fair play obriga-me porém a saudar o último artigo de Nicolau Santos no suplemento Economia, intitulado "9 compromissos até 2010". Recomendo vivamente a sua leitura a toda a classe política.

Luís Nazaré

domingo, 8 de agosto de 2004

A Ideia

Quando, há três meses atrás, atribuímos o prémio Causa Nossa "5ª dimensão" ao director do semanário de referência, julgávamos que o Arquitecto tinha finalmente atingido o seu Nirvana e que os novos afazeres celestiais o impediriam de nos deliciar com novas epístolas. Puro engano. É que o Arquitecto arranjou uma maneira astuciosa de continuar a transmitir-nos as suas revelações ao sábado - através dos seus alter-egos. Esta semana, foi Óscar Niemeyer.

Com os casos de sucesso de Islamabade e Brasília como bandeiras, o Arquitecto desenvolve uma sublime argumentação em favor de uma nova capital. Com a visão celestial de que dispõe, já tratou até de escolher o melhor sítio - algures num triângulo cujos vértices são Castelo Branco, Portalegre e Abrantes. Seria "uma cidade construída de novo, (?) moderna, projectada por arquitectos contemporâneos, voltada para o futuro, capaz de ficar como um marco do nosso tempo".

Na reunião dominical do Clube de Reflexão Expresso, alguns dos meus amigos mais simplistas não alcançaram a elevação intelectual do Arquitecto, ridicularizando-lhe os propósitos e as justificações. Mas quando alguém tentou equipará-lo ao célebre Mr. Chance, aí insurgi-me. Com que direito punham em causa a omnisciência do Arquitecto? Ou será que não tinham pura e simplesmente percebido a fina subtileza das suas razões, confundindo-as com um rol de tontices infantis? Esperem para ver.

Por mim, não duvido por um instante da visão do Arquitecto. Como ele humildemente relembra na sua mensagem de ontem, quantas ideias originais e grandiosas não foram já anunciadas em epístolas anteriores, para bem do país? Vou mais longe: o projecto da nova capital deveria ser entregue ao único espírito capaz de apreender o seu alcance, o próprio Arquitecto. Para começar, trataria de convencer os críticos com um projecto-piloto. Através de outro dos seus alter-egos, o de director do semanário de referência, é só mudar a sede do Expresso - talvez mesmo da Impresa - para Alcains. Vão ver como todos ficarão rendidos à Ideia.

Luís Nazaré

sábado, 7 de agosto de 2004

Casa ImPia

Tudo indica que a «silly season» do Circo Santaneli vai ser agitada por mais um episódio da saga Casa ImPia. É ver o relato do PUBLICO on line de hoje, sobre o roubo dos suportes de dezenas de horas de gravações que o jornalista do CM Octávio Lopes foi fazendo com interlocutores da PJ e outros ligados à investigação, à revelia deles aparentemente.
Confesso aguardar com expectativa que a SIC, tal como fez com as gravações que envolviam Ferro Rodrigues, comece a pôr no ar as transcrições desses registos, para ver o que era confidenciado ao jornalista e se o Director da PJ e sua rapaziada só usam linguagem elevada. Se não, não é SIC não é nada! É que o segredo de justiça há muito que é uma balela - e a SIC e o CM foram dos orgãos de comunicaão social que mais ajudaram a demonstrá-lo.
Já agora a SIC também podia entrevistar a jornalista Felícia Cabrita, para ela explicar de viva voz o que diz na entrevista à CARAS desta semana:
«Há uma coisa curiosa: inicialmente todos os nomes que me apareceram eram pessoas de direita, políticos de direita, que ainda não vieram a lume. Provavelmente serão crimes prescritos, sabemos que há investigações em curso, portanto ainda é cedo. E há uma coisa fundamental: este é o processo da Casa Pia, mas muitos outros miúdos foram ouvidos no meio disto. Havia ligações, nomeadamente 'amigos' do Parque Eduardo VII que falaram seguramente de outras pessoas. Não tenho dúvida de que o Parque está a ser investigado.
QUE NOMES ERAM ESSES? Eram pessoas até do governo da época, de 1982, que continuam a ter peso. (...) neste teste à democracia vimos como o PS reagiu, que foi muito mal. (...) Mas estou ansiosa, gostava de saber como reagiria o PSD ou o PP se isto lhes batesse à porta.»
Eu também. E porque é que não bate? Quem estava no governo em 1982? Porque é que nada se sabe da investigação do Parque?
Em Novembro de 2003 incomodei muita gente ao berrar que tudo estava a ser feito para descredibilizar o processo, em detrimento das crianças abusadas, tudo para proteger e encobrir criminosos, desviando atenções de alguns deles através de pistas falsas, calúnias e urdiduras ignóbeis como as lançadas sobre Paulo Pedroso e Ferro Rodrigues. Pois não retirei, nem retiro, uma palavra do que então disse.

Ana Gomes

A ressaca

Na ressaca do meu aniversário, gostaria de agradecer a todos os leitores que tiveram a amabilidade de, como diria um treinador brasileiro comum, "me parabenizar". Fico sempre emocionado com a bondade dos desconhecidos. Obrigado por perderem tempo só para cumprimentar um tipo deste lado. A plateia pode, de facto, não existir mas, de quando em vez, revela uns bem simpáticos fantasmas.
Já agora, aproveito a boleia para fazer outras considerações avulsas sobre o correio que tenho recebido nestes meses de Causa. Volta e meia, coisa que também me espanta pela positiva, aparece uma alma saudosa do Desejo Casar, rogando-me que escreva sobre amores e devaneios ilhéus. Tenho imensa saudade desse tempo mas, por uma série de motivos, não me apetece voltar a escrever sobre as mesmas coisas. Havia um contexto próprio no DC que agora já não sinto, além de que - como muito bem tinha o Pedro Lomba na sua epígrafe do FLOR DE OBSESSÃO - "growing up in public" (Lou Reed) não é fácil. Se me voltar a dar para isso, e de vez em quando tenho aqui uns tímidos fogachos, de certeza que o notarão.
Por outro lado, fico sensibilizado com a impaciência dos revoltados que não apreciam os socialistas. Também eles perdem um tempo precioso a escrever mails. Mas, e tenham santa paciência, deixei de responder a insultos - sobretudo quando me insultam por ser socialista. É que dá-se a pequena particularidade de o não ser. Não sou socialista, não sou militante de nenhum partido, não tomo café com o Ferro nem vou ao ténis com o Sócrates, não tenho livros do Alegre nas estantes da minha casa, desamparem-me a loja.
Última consideração, de teor mais prático: por favor, não percam tempo a enviar-me mails demonstrando preocupação com a política de pescas em Portugal ou com dúvidas sobre as revisões constitucionais. Não sou a pessoa indicada. Estou tão à vontade na hard-politik como o Luís Filipe Vieira está na Literatura Comparada. Ok?

O hooligan que compunha baladas


David Gray é um inglês criado em Gales que a Irlanda adora. Tem um daqueles rostos raros, de idade indefinida, mas andará algures entre os 29 e os 41 (prefiro manter o mistério em vez de me dar ao trabalho de pesquisar). Descobri o álbum "White Ladder" depois de ver uma pequena reportagem sobre o singer/songwriter no "Music Room" da CNN, num daqueles felizes acasos do zapping. Agora, um amigo atento descobriu o DVD com a actuação de David em 2000, no The Point, em Dublin. Um concerto memorável de um homem que "just sings his heart out". Como diz um amigo de Gray no documentário que acompanha o concerto, David "parece um hooligan". E parece mesmo. No documentário, aparenta ser um homem rude, com pouco a dizer. Depois, ao vivo, surge a poesia e a voz terna que pareceram religiosamente guardadas para aquele momento. E David Gray escreve assim:

SHINE

I can see it in your eyes
what I know in my heart is true
that our love it has faded
like the summer run through
so we'll walk down the shoreline
one last time together
feel the wind blow our wanderin' hearts
like a feather
but who knows what's waiting
in the wings of time
dry your eyes
we gotta go where we can shine

Don't be hiding in sorrow
or clinging to the past
with your beauty so precious
and the season so fast
no matter how cold the horizon appear
or how far the first night
when I held you near
you gotta rise from these ashes
like a bird of flame
step out of the shadow
we've gotta go where we can shine

For all that we struggle
for all we pretend
it don't come down to nothing
except love in the end
and ours is a road
that is strewn with goodbyes
but as it unfolds
as it all unwinds
remember your soul is the one thing
you can't compromise
take my hand
we're gonna go where we can shine
we're gonna go where we can shine
we're gonna go where we can shine

(and look, and look)
Through the windows of midnight
moonfoam and silver.


De resto, o homem veste todo de ganga, com uma camisa de turista pé-descalço dois números acima do devido, e toca um violão esfarrapado e com nódoas de cerveja. É um cruzamento entre Bob Dylan e Bryan Ferry com uns pózinhos de Zeca Afonso. Tão difícil de catalogar como isto, e absolutamente fora de moda - nas suas baladas épicas e charme de emigrante que retorna à vila. E isso, nos tempos espectaculares que correm, é bom, muito bom.

sexta-feira, 6 de agosto de 2004

uma prenda de uma leitora

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui --- ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça,
com mais copos,
O aparador com muitas coisas ? doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado---,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


Álvaro de Campos, 15-10-1929

quinta-feira, 5 de agosto de 2004

José Sócrates

Quando há vinte e cinco anos atrás me filiei no PS, fi-lo em nome de uma matriz de valores e de um ideal de sociedade. Revia-me no exemplo de figuras grandes da democracia e da liberdade, como Mário Soares, Manuel Alegre ou Salgado Zenha. Acreditava num mundo melhor, mais justo e mais igual nas oportunidades, onde a humanidade se pudesse exprimir de modo livre, solidário e empenhado na procura da paz e do bem-estar geral. Nada mudou nos meus ideais - como nada de essencial muda nos dos crentes -, mas seria tolo se não percebesse que a vida na Terra se transformou por completo neste último quarto de século. Ou a esquerda o entende e arquiva alguns dos seus mitos na secção dos registos simbólicos, como sempre souberam fazer os crentes não-fundamentalistas, ou arrisca-se a integrar o capítulo das ideologias perdidas na história do século XXI.

É sobretudo este o combate que hoje se trava no PS entre os três candidatos à liderança, embora muitos creiam que tudo se resume a uma questão entre a "pureza de princípios" e o "artificialismo mediático". Não o é, ou pelo menos, não é essa a causa principal. No próximo congresso do PS, é o futuro do seu projecto político que está em jogo, não os seus valores. Para mim, José Sócrates é quem melhor poderá dar resposta aos desafios que se apresentam aos socialistas e aos portugueses em geral.

Ao contrário do que dizem, não consigo distinguir nos restantes candidatos melhores conteúdos nem melhores estratégias. As únicas "ideias" que vi desenvolvidas foram a suspeita de chapelada eleitoral e o ataque à "falta de ideias" do seu antagonista. Pois bem, só tenho visto e lido ideias desenvolvidas por um candidato - José Sócrates. O seu artigo de ontem, no Diário de Notícias, enuncia com clareza a estratégia que pretende para o PS. As prioridades políticas que avançou, numa via de modernidade e progresso, não foram, que se saiba, objecto de qualquer comentário ou oposição por parte dos seus antagonistas. Será um problema de dotes mediáticos?

Compreendo que, nos tempos santanistas que correm, grasse um forte sentimento de rejeição da superficialidade. Mas em nome de que princípio se poderá criticar quem melhor sabe transmitir as suas ideias? Sócrates é telegénico, bem-parecido e bem vestido? Ainda bem. Lembram-se das críticas ao ar sorumbático e intrincado de Ferro Rodrigues? Em que ficamos?

PS - Manuel Alegre também não deixa os seus dotes de marketing por mãos alheias. Nenhum underwriter famoso desdenharia de contar no seu portfolio com uma frase tão exuberantemente publicitária quanto a tirada "Não sou um animal feroz, mas sou bom atirador". Temos show.


Luís Nazaré

27

Hoje faço 27 anos. Ninguém acredita mas celebro-os em plena crise de meia-idade. Já não tenho vontade de abrir prendas mas, ao mesmo tempo, sinto nostalgia de um Cartão Jovem que praticamente nunca usei. Hoje vou festejar em Lisboa pela primeira vez. A cidade está mais ou menos como eu: semi-deserta, à procura de si. A minha mãe não se lembra se nasci às 3 e um quarto ou a um quarto para as 3. Talvez isto explique qualquer coisa.

Regresso às lides

Após dezassete dias de viagem e de black-out cibernético, é bom regressar à Causa. Já sei que perdi todos os episódios da pré-silly season, da constituição do governo ao espectáculo da tomada de posse, das discursatas do primeiro-ministro às novas tergiversações intelectuais do arquitecto Saraiva. Vou procurar actualizar-me rapidamente, embora nada possa substituir a emoção do directo. Fica a satisfação de os meus colegas de blog terem feito uma cobertura completa dos acontecimentos, numa manifestação clara de que o team spirit e a técnica da dobra fazem milagres, até mesmo compensar a ausência veranil de Vital Moreira.

Luís Nazaré

Dedicado à Rosa

A Rosa escreveu-nos incomodada com as imagens gratuitas de mulheres que tenho publicado aqui no blog. Não é, de facto, essa a "nossa causa". Por isso mesmo, e como somos democráticos - e a democracia também vale para as questões estéticas -, pedi aos meus amigos Hugh Jackman, Christian Bale e Jude Law para enviarem as suas melhores fotografias gratuitas. Espero que goste.

quarta-feira, 4 de agosto de 2004

Boston IV - Outras linhas demarcadoras

Além da guerra no Iraque e da segurança, há outros domínios relevantes para a capacidade dos EUA exercerem a hegemonia no planeta em que o campo Kerry procura demarcar-se das políticas desastrosas dos neo-conservadores por detrás de Bush. Especialmente importantes para os EUA, e para todo o mundo, são a defesa e o ambiente.
No primeiro, os Democratas anunciam ir parar com os programas e orçamentos astronómicos de construção de mais e mais sofisticadas armas nucleares, lançados por Bush e as indústrias que o sustentam (e que ele sustenta). Kerry, pelo contrário compromete-se a canalizar os recursos para um esforço de desarmamento, aplicando-se no controle nos EUA e em todos os países (ou grupos) produtores ou detentores. Uma das maiores preocupações da equipa de política externa de Kerry é o controlo e destruição do arsenal nuclear, incluindo matéria físsil, antes na posse da URSS e países satélites e hoje sabe-se lá em que mãos (como era de esperar, não ouvi nunca aludir a Israel...).
Madeleine Albright (mais uma vez só ela) frizou também o objectivo de controlo do tráfico das «small arms» - as que as potências ocidentais mais vendem e que mais matam por esse mundo fora.
2. Quanto ao ambiente, Kerry promete não apenas ratificar o Protocolo de Kyoto, mas reestruturar as políticas de abastecimento e consumo de energia, para reduzir drasticamente a dependência dos EUA do petróleo. Para isso advoga apostar no desenvolvimento das tecnologias assentes em energias limpas e renováveis. E aqui sente-se que há a marca empenhada, convicta, do candidato a Presidente e da mulher, Teresa, cuja Fundação Heinz tem financiado prioritariamente projectos ambientais.
3. Kerry quer também fazer uma viragem no orçamento e na política fiscal em particular. Os democratas não se cansam de lembrar que quando Clinton saiu da Presidência, os EUA tinham um considerável superavit, como há muito não acontecia; e agora sob Bush, o défice dos EUA não pára de se aprofundar. O campo Kerry está contra os cortes nos impostos que Bush está a aplicar, afirmando que ele beneficia apenas os mais ricos dos ricos (Clinton enfatizou-o), à custa da classe média e sobretudo dos mais pobres e mais desprotegidos socialmente. Kerry diz que vai sobretudo investir no sistema de saúde e na educação.
4. O último grande tema de demarcação é reconduzível aos chamados «valores» - e neste cesto cabe muito do que pode distinguir um liberal, um progressista, de um conservador ou de um reaccionário, em geometria variável, consoante os grupos de interesse, os Estados, os activistas, as igrejas, etc. Aborto e saúde reprodutiva incluem-se. Mas também a questão da igualdade, o casamento gay e adopção por gays. E o tema por que milita agora Nancy Reagan e até levou o filho à Convenção Democrática - a investigação sobre células estaminais, decisiva para a cura de doenças como Alzheimer ou Parkinson.
Aqui também arrumo a questão da Constituição - e a raiva é profunda nos Democratas, que acusam Bush e seus acólitos de a violar, com Guantanamo e medidas coarctantes dos direitos humanos e liberdades públicas, à pala do combate ao terrorismo. O Secretário da Justiça, John Ashcroft, é particularmente responsabilizado e odiado.
Em todas estas áreas, foi para mim estimulante sentir como vai alta a vaga reformadora e progressista nos Democratas. E, ao mesmo tempo, fiquei com um travo amargo, por sentir que cá no burgo (PS incluído) não tem havido suficiente sentido crítico e auto-crítico e iconoclastia para darmos o salto nas verdadeiras questões da modernidade que a nossa sociedade enfrenta. E muitas são as mesmas. É por estas e por outras que a América lidera, concorde-se ou não, goste-se ou não.

Ana Gomes

Boston IIIa - Ainda o Iraque

Quanto à guerra no Iraque e à luta contra o terrorismo, os porta-vozes de Kerry para a política externa são claros: discordam do que a Administração Bush fez e de como o fez, criticando-lhe sobretudo a incompetência, a ineficácia e as consequências desastrosas delas para a credibilidade dos EUA no mundo e para a segurança dos americanos em casa ou no estrangeiro.
Mas quanto à análise do que há a fazer no presente e para futuro, não divergem no fundamental: 1) combater a Al Qaeda - de forma mais inteligente e isso passa por mais empenho americano no Médio Oriente pela paz entre Israel e Palestina (mas só ouvi Madeleine Albright frizá-lo); e 2) estabilizar, reconstruir e conseguir a democratização do Iraque; e isso passa por falar verdade ao povo americano e admitir que a tarefa vai levar muito mais tempo, mais tropas e vai sobretudo custar muito mais dinheiro.
Tudo feito ao «estilo democrático», envolvente da ONU, respeitador e consultante dos aliados e países relevantes - até para mais eficácia em convencê-los a partilhar encargos e a fazer diferença qualitativamente no Iraque. O Senador Joe Biden foi nisto particularmente «blunt», num seminário dia 25 para os convidados estrangeiros, na magnifica JFKennedy Library - «Não pensem que uma Administração Democrática vos vai pedir menos. Vai pedir mais. De tudo. Sobretudo responsabilidades».
Preparando-nos para o que der e vier, que tal em vez dos 128 GNRs entaipados no quartel dos italianos e agora sob o espectro do urânio empobrecido, oferecermos os mais «committed», os políticos e comentaristas que tão galhardamente, no parlamento e nos media, defenderam a invasão do Iraque ? Para irem ensinar democracia aos iraquianos, evidentemente. Decerto que não se furtarão a sacrificar-se pela Pátria, pelo Iraque e pela democracia, sobretudo depois do exemplo pioneiro do Dr. José Lamego. E «pró-americanos» incondicionais como são, está-lhes na massa do sangue deitarem-se ao poço que Washington mandar, seja a Administração Bush ou Kerry!
A lógica de Biden é, de resto, imbatível: concorde-se ou não com a invasão, deixando o passado para trás, forçoso é reconhecer que a cimeira da guerra nos Açores, acolhida pelo PM que já não temos e sancionada pelo PR que ainda temos, implica para Portugal especiais responsabilidades. E eu não contesto que Portugal e a Europa têm também interesse na estabilização e democratização do Iraque.

Ana Gomes

Um blog à frente do seu tempo

Por algum motivo que manifestamente desconheço, e tendo em conta que quando acordei - há poucas horas - era dia 3 de Agosto, estranho o facto do último post ter aparecido com a data de... amanhã. Talvez a nossa mania, aqui no CN, de fazer celebrações em solstícios e equinócios tenha confundido os deuses electrónicos. Beats me. Mas é a primeira vez que me vejo como um homem à frente do meu tempo. É desopilante.

O avô Jorge Luís Borges

Hei-de ouvir esta piadinha para sempre. Tem várias variações: podem chamar-me simplesmente "Jorge Luís", podem tratar-me por "Borges II", dizer que tenho "uma pesada herança", ou gracejar sobre o meu "avô". Pior ainda, gosto do argentino. Antes de começar a ler, a única coisa que conhecia e apreciava da Argentina era a Gabriela Sabatini. Sim, salivem à vontade os que se recordam. Mas depois surgiu o caga-olho genial que escreveu sobre tudo. Contudo existe uma vantagem na semelhança dos nomes. Sempre que uma relação está na corda bamba, faço o teste fatal. Levo a "cara-metade" a uma livraria, procuro um dos 1500 livros de JLB e digo, entre o mórbido e o canastrão blasé:
- Ah!, cá está o livro do meu avô...
Sei que está tudo acabado quando ela responde, interessada:
- A sério?!

terça-feira, 3 de agosto de 2004

O bebé que vai mudar a minha vida

O maior sonho que tenho na vida é ser pai. Se possível, um daqueles pais com uma mesa da sala-de-estar colossal, onde sentar um número de filhos que dê para fazer uma equipa de futebol e respectivo banco de suplentes. Os putos viriam, um a um, para a refeição, envergando uma t-shirt com nome e número de forma a facilitar a minha chamada e contagem das presenças. Gostava de ser pai por uma miríade de razões, a esmagadora maioria não vem agora ao caso. Mas a razão principal ouvi-a descrita na perfeição pela boca de um professor de Direito, corria o 2ºano da faculdade. O homem, que era normalmente sisudo e compenetrado na aula, chegou um dia preocupado e esbaforido. Nunca antes se atrasara. O motivo era uma doença do filho. Tinha-o levado para o hospital e ainda vinha com o peso das angústias. Desabafou num minuto. Disse que, desde que a criança nascera, perdera o medo de morrer.
É isso mesmo. Perder o medo de morrer. Abandonar os receios humanos de não ser amado. Conquistar a imortalidade. Quero ser pai por estes tão egoístas motivos. E, agora, no final do mês, vai nascer um Leão como eu que vai mudar quase tudo na minha vida. Um bebé. Caramba. Um be-bé. Como falarei com ele? Como será a sua cara? Será daqueles felizes anafados ou uma ratazana choramingas que não deixa dormir toda a freguesia?
Não sei. Aguardo serenamente. É que o bebé não é meu mas de um dos meus melhores amigos. E é isso que me lixa. O nascimento deste bebé, a paternidade do meu amigo, só me virão transmitir uma bem clara e definitiva mensagem: tenho andado a fazer qualquer coisa de muito errado com a puta da minha vida.

segunda-feira, 2 de agosto de 2004

Boston III - além do factor ABB, o primeiro demarcador é a guerra

O factor ABB é sobretudo emocional. Como me dizia, fora de si, uma amiga, hoje professora na Columbia e top diplomat na Administração Clinton: «How come we are being ruled by this moron, this C-level student or, actually, by the bunch of gangsters around him?».
Inclui, mas ultrapassa, a condenação da guerra no Iraque - que o establishment da política externa democrata, Clinton, Madeleine Albright, Joe Biden, Richard Holbrooke entre outros (dos dois ultimos sairá o State Secretary de Kerry, disseram-me amigos do NDI-National Democratic Institute) vituperam por ser uma «guerra de escolha, não de necessidade», por se ter baseado em informação falseada, por ter alienado os aliados em vez de os congregar, por falhar estrondosamente a preparação do pós-guerra, por a estabilização e reconstrução custar muito mais tempo, dinheiro e homens do que a Administração Bush admite diante da opinião pública e por desviar recursos da guerra contra o terrorismo, a ponto de negligenciar o combate à Al Qaeda no Afeganistão (Biden explicou como Karzai não passava de mayor de Kabul, e mesmo assim porque o Congresso lhe tinha arranjado dinheiro in extremis, face a clamorosa negligência da administração Bush).
Esta ultima vertente é indissociável da aventura no Iraque. Impressionou-me como os democratas estão conscientes do efeito devastador que o desastre no Iraque teve e está a ter na imagem da América no mundo, no abalar da sua credibilidade moral e política e nos riscos de segurança dramaticamente acrescidos que correm no seu território e todos os cidadãos americanos que trabalham e viajam por esse planeta fora. E a ruína da autoridade moral da América ainda dói mais quando há consciência de que no dia 12 de Setembro de 2001 ela atingira apogeu nunca visto, «com o Le Monde a berrar - somos todos americanos» (cito Joe Biden).
Kerry e seus apoiantes não querem apenas demonstrar que ele, o veterano do Vietname, pode ser um «commander in chief» mais sério e determinado do que o cobardolas George W. Bush que arranjou estratagemas para se furtar à guerra do Vietname. Querem também que os americanos percebam, face ao descalabro em que está enredada a administração Bush no Iraque, no Afeganistão e perante as ameaças de ataque que continuam iminentes sobre o território americano, que Kerry será um líder politicamente muito mais esclarecido, avisado e competente para fazer as escolhas correctas na luta contra o terrorismo. «Strenght and wisdom are not opposing values» sentenciou Clinton, desencadeando aplausos vibrantes na Convenção.
E essa sabedoria passa por congregar aliados, usar os mecanismos multilaterais e os instrumentos do direito internacional. Isso é que é «American», por oposição à «Unamerican» política de Bush. «The world does not need an America that leads by fear, but by commanding respect» declinaram em diferentes versões Kerry e as principais estrelas na Convenção, sem deixar de ecoar a visão mitificadora dos EUA, potência do bem contra o mal, que é indispensável ingrediente de feel good para qualquer americano.
Importante para todos e para a Europa em particular - e até para tirar da enfermaria de reanimação a NATO - o relevo que assumiu nos discursos democratas o imperativo de reconquistar os aliados, o compromisso de os consultar e envolver o mais possível para resolver os problemas que a América e a comunidade internacional defrontam, de voltar a uma política externa que ajude Washington a fazer amigos por esse mundo fora.
Será em relação ao Iraque, por exemplo, apenas uma mudança de estilo. Mas em política externa, o estilo é substância. Pode fazer a diferença. Entre a guerra e a paz.

A seguir, mal tenha tempo para escrever:
Boston IV - Outras linhas demarcadoras: defesa, ambiente, impostos, saúde, educação e «valores»
Boston V - Teresa, the loose cannon, acerta na mouche
Boston VI - The rising stars: John Edwards e Barack Obama
Boston VII - Revolutionary Women: «Give 'em Hill»
Boston VIII - Segurança- valha-lhes a Virgem do outro...

Ana Gomes

domingo, 1 de agosto de 2004

Boston II - Kerry ultrapassa o factor ABB

O sentimento anti-Bush a alastrar além do campo democrata levou os estrategas da campanha de John Kerry a impor a moderação nos discursos na Convenção - nada de ataques pessoais, nada de beneficiar Bush com um efeito de underdog que fizesse hesitar os dependable voters. O mais cerebral e demolidor requisitório contra as políticas de Bush, designadamente quanto ao Iraque e luta contra o terrorismo, foi feito por Jimmy Carter, na primeira noite da Convenção, sem precisar de pronunciar o nome do Presidente. Clinton, uma hora mais tarde, encarregou-se de electrizar a audiência, mostrando sobretudo como os Republicanos são os dividers e só os Democratas poderão unir a América.
Nos primeiros dias da Convenção percebia-se que, mais do que o apoio a Kerry, o factor ABB - Anything But Bush - era o grande aglutinador de todo aquele activismo organizado, determinado, frenético! Impressionou-me sobretudo o rol de profissionais dos media e das artes e espectáculos envolvidos na campanha de Kerry e o nível de empenhamento que estão a assumir (e com custos profissionais, que o digam Whoopi Goldberg e Linda Ronstadt).
Todos estavam suspensos do impacte do discurso de Kerry, no último dia, de ele ser ou não capaz de desmentir a imagem aloof que mesmo os mais indulgentes lhe colavam.
David Gergen (editor at large do US News & World Report, que foi conselheiro de Clinton e Reagan e colaborador das administrações Nixon e Ford), num seminário a que assisti, lembrou que nas Convenções Democráticas em que foram indigitados, Carter e Clinton eram ainda menos conhecidos e estavam muito pior em termos de adesão emocional dos militantes. E outros calejados analistas sublinham que nunca foi um discurso na Convenção que convenceu os swing voters - eles decidem à boca das urnas, tudo depende do que se passar até lá. E, sobretudo, quase tudo depende dos debates televisivos entre os candidatos.
O teste da televisão é também o fundamental num evento orquestrado como a Convenção. E Kerry soube combinar o tom presidencial e o apelo emocional. Correspondeu à aposta da campanha durante toda a semana, no sublinhar do carácter do homem, do líder, do futuro commander-in-chief, do veterano do Vietname tão decidido a salvar a vida a subordinados (um deles, o negro Reverendo Alston, fez na Convenção um vibrante elogio da fibra do Kerry reporting for duty), como depois a contestar a estupidez daquela guerra.
Se o sentimento anti-guerra Iraque é o mais poderoso componente do activismo determinado pelo factor ABB, Kerry aí não surpreendeu nem empolgou, mas também não decepcionou.
A prestação de Kerry acabou por ultrapassar as expectativas, tanto dos militantes reunidos no Fleet Center, como dos comentaristas televisivos não arregimentados pelo campo Bush.

Ana Gomes

Boston I - great to be back and feel USA is back !

Soube-me bem estar em Boston, apesar de a dormir num hotel a milhas, middle of nowhere, onde o Partido Democrático enfiou quase todos os convidados estrangeiros (António Guterres, superstar, ficou com os Clinton no Charles Hotel em Cambrigde, do outro lado do Charles River). Foi impossível encontrar sequer um bed and breakfast na cidade, tal a enchente de congressistas vindos de todos os States. É que à margem da Convenção Nacional do Partido Democrático, há centenas de debates, conferências, exposições, seminários que mobilizam ainda mais milhares de militantes e activistas de todas as causas.
Mais do que em qualquer outro dos países estrangeiros onde vivi, é na América daqui da frente do Cabo da Roca, urbana ou rural, mas cosmopolita, pluralista, liberal, east-coaster, de New York a Boston, de Sag Harbour a Provincetown, que me sinto «at home». E por isso me divertem as acusações de «anti-americanismo» que me lançam parolos e avençados da direita (incluindo alguns PS), pelo lesa-majestade de me atrever a criticar a hiperpotência que rege o mundo e a desastrosa política externa da Administração Bush em particular. Lá, isso é tão natural como o ar que se respira.
Se essa gente cheirasse os ares de Boston, na semana passada, ficaria escandalizada pela violência do ódio a Bush e ao bushismo que destilam os democratas. E pela veemência contra as políticas de Bush (do Iraque à pesquisa das células estaminais) por parte de uma crescente parcela da sociedade americana não afecta aos democratas. Por muito que pese a Luís Delgado, que no DN de 30.7 critica o filme «Fahrenheit 9/11» confessando inefavelmente não o ter visto, cada vez mais americanos - dos 15 a 20% de swing voters que as campanhas rivais cortejam - estão a ir vê-lo e a sair de lá a vomitar Bush e seus capangas.
Se os anos lá vividos, os conhecimentos e os muitos amigos americanos me valem alguma coisa, voltei dos EUA com a forte sensação de que Kerry tem todas as condições para ganhar em Novembro. E uma América com Kerry será, sem dúvida, mais «home, sweet home» para pró-americanos saudavelmente críticos como eu.

Ana Gomes